31.3

Pluralismo judaico

João Carlos Assumpção 10 de janeiro de 2012

Em 2010 fui com três amigos acompanhar a Copa do Mundo em Israel e nos territórios palestinos para fazer um documentário que tende a gerar polêmica e muita discussão dos dois lados. Em “Sobre Futebol e Barreiras”, título que demos para o filme e para o projeto, mostramos como judeus e palestinos assistem ao Mundial, discutimos problemas de identidade nacional, entramos na vida de cidadãos comuns e vimos como o futebol pode aproximar ou não os dois povos. Aproxima se pensarmos que tendem a torcer para os mesmos países, a maioria era favorável ao Brasil, à Argentina e à Espanha. Dos dois lados o jogador preferido, sem dúvida, era Messi. Era só andar com a camisa do Brasil que você abria portas e era bem recebido. Impressionante como conhecem o futebol brasileiro e como Dunga podia ser considerado uma unanimidade, criticado por todos por não ter levado jogadores como Ronaldinho Gaúcho e especialmente Neymar e Ganso, as revelações do Santos. Por defender um futebol burocrático, um futebol de resultados, que deu certo em 1994, mas não obteve sucesso em 2010, na Copa da África. Ao mesmo tempo, porém, as diferenças ficam mais evidentes. Na goleada da Alemanha contra a Argentina, apesar de a grande parte de judeus e palestinos estar torcendo pela segunda, enquanto num assentamento judaico estavam hasteadas várias bandeiras argentinas, só para provocar a vila palestina, vizinha, ostentava bandeiras alemãs.

Garoto com a camisa do Messi. Foto: Sobre Futebol e Barreiras (Divulgação).

Para mim, que sou descendente de judeus (minha avó materna era judia, sobrinha-neta de Lasar Segall, um dos principais artistas que o Brasil conheceu), a experiência de fazer o filme foi muito difícil, embora estimulante. Conflitos internos surgiram e externos também. Afinal éramos quatro, cada um com uma opinião diferente e o assunto Oriente Médio gera mais polêmica do que qualquer partida de futebol. A causa palestina tem muito apelo no mundo todo e senti que tinha que fazer um contraponto quase o tempo inteiro, embora seja da opinião de que os dois lados têm de ceder, especialmente os judeus, que têm a força na região. Como um dos integrantes do grupo já havia estado na região pouco antes do início do documentário e tinha vários contatos do lado palestino, resolvi ficar apenas em Israel. Mas não só por isso. Porque lá me sentia em casa. Sentia-me mais confortável. Acolhido. Não foi a primeira visita que fiz ao país e espero que não tenha sido a última. Adoro Israel, especialmente Jerusalém, onde alugamos uma casa, e pude encontrar pessoas interessantes, algumas das quais mantêm contato comigo até hoje.

Fazer o filme, porém, foi um árduo processo de tolerância. E tolerância é a palavra-chave para a região. Muitas vezes pensei: se está difícil chegarmos a um acordo sobre que linha seguir, imagine como é complicado (embora não considere impossível) chegarmos a um consenso no Oriente Médio. Tudo gerava discussão. O próprio blog que criamos (http://sobrefutebolebarreiras.blogspot.com) mostrava a diversidade do grupo e das opiniões de cada um. Talvez eu tivesse seguido outra linha no filme. Certamente teria em vários e vários pontos, mas segui com a maioria. Ganhei algumas vezes, perdi em diversas ocasiões, sigo defendendo minhas ideias e o filme está aí, inscrito em festivais do mundo todo, tendo sido, inclusive, aprovado no Festival de Cinema Judaico de São Paulo.

Homem brinca com a bola em sua barbearia. Foto: Sobre Futebol e Barreiras (Divulgação).

Entrevistamos e mostramos a visão, o dia a dia, as esperanças, os sonhos, os conflitos e a torcida de diversos personagens. Em Israel e na Cisjordânia. O personagem de que mais gostei e com quem mais me identifico é o Gregory, um judeu israelense que torcia pela Alemanha. Não, não torço pela Alemanha e mesmo no jogo contra a Argentina, jogo em que muitos brasileiros torceram contra “los hermanos”, fiquei ao lado do time de Maradona. Mas Gregory se diz um provocador e justifica que o futebol é só um jogo e que gosta do time da Alemanha. Um direito democrático que tem de ser respeitado, embora muitos compatriotas não concordem com sua escolha lembrando-se da Segunda Guerra Mundial. Mas como disse Shy, outro dos personagens judeus que aparecem no filme, se Hitler estivesse vivo teria um treco ao ver a seleção alemã, que hoje, felizmente, tem jogadores negros defendendo suas cores.

Gregory dá um depoimento comovente quando conta sua chegada a Israel, ainda menino, com o pai sionista querendo distância do regime soviético. Chega a dizer que ao pisar no aeroporto Ben Gurion sentiu como se estivesse no paraíso. E que considera o mundo antissemita, o que justificaria a existência de um país para os judeus.

Mas no filme há de tudo. Há judeus, por exemplo, que não pensam como ele. Caso de Eytan, que propaga um movimento (o Zochrot) para combater o que chama de “memória suprimida” do povo de Israel, que deveria lembrar o que aconteceu em 1948, quando muitos palestinos saíram de suas terras com a fundação do país. Mas a origem do Estado de Israel não está em 1948, ela vem de muito antes, vem do famigerado Holocausto, da perseguição aos judeus que acontecia muito antes dos anos 30 e 40. Judeus que viviam em guetos no Leste Europeu, que foram perseguidos na Espanha e em Portugal, nos países árabes, judeus, como meu bisavô, que nasceram na comunidade judaica de Vilna no final do século retrasado e sofreram com o domínio da Rússia czarista. Que foram parar em outros países e em outros continentes.

O filme traz a discussão sobre como tornar o Estado de Israel verdadeiramente democrático, já que há muitos palestinos que dizem ser tratados como cidadãos de segunda categoria. Reclamam dos checkpoints, reconhecem que podem comprar roupa, trabalhar, ganhar dinheiro, mas que não têm liberdade. Para a historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco em “Retorno à Questão Judaica”, “os israelenses estão confrontados com uma escolha: ou fazer de seu Estado uma democracia ainda mais laica e igualitária, admitindo que um Estado de direito tem de ser não judeu para ser verdadeiramente democrático ou afirma o caráter judeu de seu Estado, aceitando que deixa de ser israelense e democrático e se torna religioso e racista”. O personagem Gregory, por exemplo, aborda o assunto e prefere que o Estado siga judeu, lembrando das dificuldades que passou na Europa, um continente cada vez mais fechado para os estrangeiros e que não vê com bons olhos a chegada de muçulmanos e mais muçulmanos, voltando a discutir como fechar ainda mais suas fronteiras.

Outro personagem que está no filme, um dos principais jogadores da história de Israel, o palestino Zahi Armaly também toca na questão e explica o porquê de, quando defendeu a seleção local nos anos 80, recusar-se a cantar o hino. É que, mesmo sendo israelense, diz que nem o hino nem a bandeira o representam, pois contêm símbolos do judaísmo. E ele é árabe e considerado traidor por muitos palestinos que moram em Gaza ou na Cisjordânia ou mesmo em Israel por ter defendido a seleção israelense. O que mostra a complexidade do problema. Pois Zahi é israelense. Ia defender a seleção do Brasil, da Espanha, da Itália?

Como diz Reut, cuja família emigrou para Israel da República Checa e do Marrocos, países onde seus pais foram perseguidos, onde tinham que ver uma suástica pichada diante de suas casas, um Estado para o povo judeu se faz necessário. Mas todos vivem numa sociedade que ela define como pós-traumática. É radicalmente contra o muro que os separa dos palestinos, embora reconheça que ele trouxe mais segurança aos israelenses, diminuindo radicalmente o número de atentados e ataques a bomba. Tudo é um paradoxo. Tudo é confuso.

Há palestinos que dizem viver na sociedade do apartheid e que querem acabar com isso. Alguns optam por entrar no sistema, outros resistem de forma pacífica, outros partem para o ataque e matam inocentes. O terrorismo é uma realidade na região.

Fico pensando ainda numa declaração de Elisabeth Roudinesco, para quem a universalidade do povo judeu e sua capacidade de resistência a todas as catástrofes é uma maneira única de transmitir à humanidade a ideia de que nenhum homem pode ser reduzido à sua comunidade, a suas raízes e a seu território.

Isso serve para o mundo todo. Pois vejo a sociedade do apartheid em países europeus, nos Estados Unidos e no seu trato com os imigrantes, na China, nos países árabes fundamentalistas, no Brasil, onde temos um tremendo apartheid social…

A solução para o conflito é difícil, pois o que diz Roudinesco pode ser bonito (e considero que seja mesmo), mas utópico. O que fazer? Não tenho resposta. Se tivesse, resolveria os conflitos do Oriente Médio e do mundo. Como diz o próprio Zahi, um dos personagens que entrevistamos, “sou um ser humano antes de mais nada”. É verdade. Todos somos. E o bom é podermos expressar nossas opiniões, como fazem todos no filme. Focando do lado judaico, deu para perceber o pluralismo de opiniões. De quem se recusou a servir o Exército, de quem ataca os políticos locais, de quem responsabiliza a atual situação pelo que chama de erros cometidos em 1967, de quem considera o país racista. Mas também de quem quer apenas e tão somente viver em paz, como Gregory e a própria Reut. Que sabem que a história de Israel não começou em 1948, como insiste Eytan, do movimento Zochrot. Começou, como insisto, muito antes disso. Para entender Israel não podemos jamais esquecer o Holocausto, essa grande vergonha na história da humanidade, cuja origem não está nos anos 30. Está bem lá atrás, bem antes disso. Pois a perseguição aos judeus é histórica, data de séculos e séculos e séculos. E talvez “só” isso já justifique a existência de Israel. É pouco? Acho que não. Mas cada um tem sua opinião. Opinião que pode mudar com o tempo e com as circunstâncias. O que sei é que vivi uma experiência muito rica em Israel e percebi que não sou isento. A nada. Mesmo voz vencida em muitos e muitos pontos do filme e tendo optado por permanecer o tempo todo em Israel, o que pode ser contraditório e é, sou um ser humano como qualquer outro. Cheio de contradições. Minhas raízes judaicas (mesmo que minoritárias 25% da minha origem) talvez tenham falado mais alto, mas tentei entender o outro lado. Que é nosso também, pois somos um só ou pelo menos deveríamos ser.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

ASSUMPçãO, João Carlos. Pluralismo judaico. Ludopédio, São Paulo, v. 31, n. 3, 2012.
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