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Por amor à camisa

Marco Lourenço 2 de junho de 2014

Em uma casa do interior de São Paulo, a camisa chegou pela primeira vez em janeiro de 1995. Ficava muito larga no garoto de 10 anos, que a vestia de teimoso. Feita 100% de poliéster, ela chamava atenção entre suas velhas camisas de futebol, e não era pelo mesmo motivo pelo qual se destacou neste ano a nova camisa da torcida holandesa: graças a um sistema de termossensibilidade, ela muda da cor marrom para a laranja conforme o corpo do torcedor vai ficando mais quente.

Os uniformes mais antigos, ainda feitos de algodão, “pesavam uma barbaridade”, lembra o ex-jogador Valdir de Moraes, que foi goleiro e hoje é auxiliar técnico do Palmeiras. Por isso, a partir dos anos 1980, o poliéster passou a ser o material mais utilizado na confecção dos trajes esportivos. Na Itália, país de vanguarda na moda, o futebol não escapou das agulhas da alta-costura. As camisas mais justas, coladas ao corpo, vestem jogadores de diversos clubes da série A do Calcio – primeira divisão da liga italiana de futebol – e outrora da própria seleção nacional.

Nova, a camisa foi poupada à revelia do garoto. Para os treinos no campinho de futebol de seu bairro teve de se contentar com uma camiseta comum. No entanto, o que ele mais precisava para jogar era de suas chuteiras, acomodadas embaixo do braço até que seus pés descalços pisassem o espaço de terra e grama que o aguardava. Calçá-las era um pouco incômodo, mas tolerável.

Sobre as chuteiras antigas, o comentarista da CBN e ex-jogador José Elias Moedim Júnior, o Zé Elias, conta que no início de sua carreira, nos anos 1990, precisava passar sebo nelas para amaciá-las, e até um pouco de álcool para lassear e encaixá-las melhor nos pés. Ainda assim, era um ritual suportável se pensarmos no que já se calçou para jogar futebol profissional. As primeiras chuteiras eram sapatos e botas comuns, que com o tempo ganharam as travas para melhor fixação no terreno.

A variedade de tipos de chuteira atualmente faz parte de um mundo diferente daquele vivenciado pelo ex-arqueiro palmeirense Valdir de Moraes, entre 1947 e 1969. “Joguei numa época em que chuteira só tinha uma, ou duas com muito sacrifício”. Ele explica que eram calçados feitos de um modelo apenas, pretos e cujos cravos eram batidos com martelo pelo roupeiro, por um sapateiro ou pelos próprios jogadores.

Um divisor de águas na evolução das chuteiras veio com Ronaldo Fenômeno, durante sua passagem pela Internazionale de Milão, entre 1997 e 2002. Motivado por seu patrocinador, o atacante passou a utilizar chuteiras de material sintético e feitas sob medida. Desde então, houve grande salto na diversificação de formas, cores e materiais desse objeto. No entanto, os novos modelos que atenderiam a demandas de conforto, performance ou mesmo estilo produziram um equipamento perigoso. As travas transversais, conhecidas como barbatanas de tubarão, que prometiam maior estabilidade, mostraram-se inadequadas à mecânica do corpo do jogador, e lesões de joelho passaram a ocorrer com frequência. Por sorte, a chuteira de couro rígido que o garoto do interior calçava quando criança ainda tinha os cravos redondos comuns.

Esferas de couro

Nos jogos com os outros jovens do bairro havia sempre uma bola de boa qualidade. Mas o garoto nunca deixou de levar a sua, que era quase oval de tanto ser usada como banco. Em uma comparação, sua companheira era certamente mais estranha que a bola oficial da Copa da África, em 2010. A Jabulani não tem, por exemplo, a permeabilidade das antigas bolas de oito gomos usadas na primeira Copa do Mundo, em 1930, as quais ficavam encharcadas quando chovia e pesavam o dobro. Ela também é mais leve que as esferas de couro costuradas à mão, que Charles Miller trouxe para São Paulo, em 1894, ou Oscar Cox para o Rio de Janeiro, em 1897. E é muito mais redonda do que os projetos de bola que os padres jesuítas e seus alunos chutavam no Colégio São Luís, em Itu (SP), em 1870, apontam estudos.

No entanto, a Jabulani não agradou – principalmente aos goleiros, que deram declarações exaltadas à imprensa sobre o objeto. Polêmicas entre as marcas esportivas concorrentes à parte, o comentarista Zé Elias faz uma defesa dessa bola referindo-se às novas exigências técnicas que ela demanda dos jogadores. “Numa partida com ela, a cada dez finalizações de longa distância, somente duas ou três vão em direção ao gol.” Assim, o atleta de linha necessita ter mais precisão. Valdir de Moraes ressalta que “as bolas mais modernas só complicam para o goleiro”. No entanto, pondera que esse é o fardo que os jogadores dessa posição carregam.

A evolução da bola cumpriu um dos papéis mais decisivos na transformação do futebol. As possibilidades no jogo se ampliaram enormemente. Arremates e lançamentos de longa distância eram quase impossíveis com as características das bolas antigas, pesadas e que ganhavam pouco efeito e velocidade. O chute antológico de Pelé contra a Tchecoslováquia na Copa de 1970, por exemplo, não teria sido possível se naquela competição a bola fosse mais pesada que a então inédita bola de 32 gomos. Tampouco aquela patada de Branco contra a Holanda na Copa de 1994 teria sido tão forte com uma bola que tivesse mais de 450 gramas. Agora, se “nada melhora para o goleiro”, como diz Moraes, fica difícil tirar sua razão. Afinal, para que direção se chuta a bola mesmo?

Iluminação de boate

A camisa que o garoto ganhou aos 10 anos morou no cabide por mais de um ano, até que ele pudesse levá-la a um estádio, em 1996. A ansiedade era grande, claro. A arquibancada lotada e os gritos da torcida chamaram sua atenção. Mas as bandeiras não eram mais hasteadas, pois com os episódios de violência entre torcidas organizadas uma lei estadual proibiu o uso de varas de bambu nos estádios paulistas, no início dos anos 1990 – assunto que voltou a ser debatido na Assembleia Legislativa no começo de junho deste ano. Apesar dessa proibição e à sombra da animosidade, as torcidas continuaram se reinventando e produziram, além de um festival de bexigas, faixas e fumaças, a maior bandeira do mundo. Criada pela Gaviões da Fiel, ela mede 250 metros de comprimento por 60 de largura e pleiteia crédito no livro dos recordes.

O gramado não era o tapete que o garoto via na TV, mas, sim, um estádio de verdade. As dimensões que delineiam a pequena área e o círculo central, definidas em 1902 pela International Football Association Board, primeira instituição que legislou sobre o futebol, estavam naquela ocasião bem marcadas pelas linhas de cal. O campo do estádio Paulo Machado de Carvalho, o Pacaembu, em São Paulo, que mede 104 por 70 metros, é bem menor que os 180 por 90 metros do padrão inglês de 1863. Isso ocorre porque os espaços do campo se reduziram ao longo da história. Mas, no caso da partida a que o menino assistiu em 1996, a redução se deveu a outro motivo: à medida que a garoa paulistana se tornava um temporal, o gramado virava uma grande piscina, trazendo, além do frio, a falta de energia. Quase 30 minutos se passaram para que a luz voltasse e a partida recomeçasse, ainda parcialmente escurecida e sob uma chuva torrencial. O cenário vislumbrado pelo jovem torcedor parece o mesmo de uma partida que Moraes jogou nos anos 1950, com pouca grama na pequena área, o que o obrigava a usar mangas compridas e joelheiras, e sob uma “iluminação de boate”.

Apesar dos cem anos de futebol no Brasil – considerando-se a introdução do esporte por Charles Miller em 1894 -, coroados com a conquista do tetracampeonato mundial, problemas como drenagem ruim do gramado, água empoçada pela arquibancada e falta de energia eram comuns – e continuam sendo – nos estádios brasileiros. Para resolver o déficit de infraestrutura dos espaços esportivos nacionais, algumas empresas de construção civil adotaram o modelo de Arena Verde (Green Building) para as futuras obras de construção e reformas de ginásios e estádios, sobretudo para a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016.

Seca e derrotada, a camisa que o garoto vestia retornou para a gaveta em meio a outras, e com o tempo descansou em proveito dos lançamentos de outros modelos. Quinze anos se foram e, agora adulto, o jovem do interior teve a oportunidade de mostrar sua camisa, de número 5, ao jogador que a vestiu dentro de campo. Às 10 horas da manhã de uma quarta-feira, “Zé da Fiel”, como era chamado em meados dos anos 1990, recebeu este repórter em sua casa. “Para mim é uma honra. É sinal de que tudo que fiz foi feito de coração, puro coração”, disse ele, ao registrar na gola: “Aos amigos de Pindamonhangaba um abraço, Zé Elias.”

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Marco Lourenço

Professor, Mestre em História (USP), Divulgador Científico (Ludopédio) e Produtor de Conteúdo (@gema.io). Desde 2011, um dos editores e criadores de conteúdo do Ludopédio. Atualmente, trabalha na comunicação dos canais digitais, ativando campanhas da Editora Ludopédio e do Ludopédio EDUCA, e produzindo conteúdos para as diferentes plataformas do Ludo.

Como citar

LOURENçO, Marco. Por amor à camisa. Ludopédio, São Paulo, v. 60, n. 1, 2014.
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