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Premier League S/A

Marcos Alvito 7 de outubro de 2012

Ao mesmo tempo em que as reformas pós-Taylor davam nova vida ao futebol inglês, ia chegando ao fim o sistema estabelecido pela Football League desde a sua fundação em 1888. Já vimos que os fundadores da Football League haviam buscado evitar que a liga fosse monopolizada pelos maiores clubes, adotando o teto salarial e estabelecendo um rígido sistema de transferência que na prática prendia os jogadores aos clubes.

Estas medidas prejudicavam os jogadores mas impediam que os grandes clubes fizessem uso do seu maior poder financeiro. Mesmo quando o teto salarial é abolido no início da década de 1960 e o sistema de transferências começa a mudar, havia ainda dois mecanismos de redistribuição. O principal era a divisão das rendas entre os clubes – uma prática estabelecida desde a Primeira Guerra Mundial. Não somente as bilheterias eram divididas, mas também os recursos provenientes da venda de direitos para a televisão e de patrocínio. Além disso, havia também um fundo de 4% sobre as rendas dos jogos para ser igualmente dividido entre os clubes. É claro que os clubes mais poderosos gostariam de por fim a isso.

Em 1983, Arsenal, Everton, Liverpool,  Manchester United e Tottenham, os chamados “Cinco Grandes”, pressionam e conseguem por fim à divisão da renda das bilheterias com o clube visitante. Antes, se um pequeno clube como o Luton Town ou o Bristol Rovers ia jogar em Anfield ou em Old Trafford a renda era parcialmente dividida, gerando recursos essenciais para a sobrevivência dos clubes menores. Agora os grandes clubes passaram a embolsar toda a renda dos jogos em casa. A esse severo golpe contra os clubes menores seguiu-se outro poucos anos depois.

Em 1986, um ano após a tragédia de tragédia de Heysel, os “Cinco Grandes”, depois de ameaçarem fundar uma liga própria, acabam com a divisão igualitária do dinheiro vindo da televisão pelos 92 clubes da Football League. Doravante, os vinte clubes da Primeira Divisão passam a ficar com 50% da venda dos direitos, sendo a outra metade dividida pelos setenta e dois clubes das três divisões restantes, também de forma desigual: 25% para a Segunda Divisão e os restantes 25% a serem divididos pelos clubes da Terceira e da Quarta Divisões. Como resumiu muito bem o historiador Dave Russell, “O abismo entre ricos e pobres no futebol inglês iria ampliar-se, da mesma forma que estava ocorrendo na sociedade inglesa como um todo.” E mais: o fundo sobre a renda dos jogos encolhia de 4% para 3%. Além disso, a maioria necessária para aprovar propostas recuava de três quartos para  dois terços, o que na prática legava aos clubes grandes um maior poder de voto dentro da Football League.

Quando a Football League completava um século de existência, em 1988, o dinheiro proveniente da televisão, cada vez mais significativo, voltaria a ser o pomo-da-discórdia. Neste ano os  clubes mais poderosos ameaçam novamente criar uma liga independente. E mais uma vez são bem sucedidos: agora a Primeira Divisão passa a dispor de  75% do total da venda dos direitos televisivos. Para muitos, esse acordo selava a morte da filosofia proposta pela Football League, que enfatizava a interdependência entre os clubes. Os pilares desse sistema haviam sido desmontados um a um. Em uma sociedade neoliberal fascinada pela “racionalidade econômica” e pela “eficiência” os ideais da Football League não tinham mais lugar.

É preciso notar que nem mesmo no interior da Primeira Divisão a partilha das riquezas vindas da telinha era igualitária. Os “Cinco Grandes”, mais atraentes do ponto de vista dos anunciantes, tinham seus jogos transmitidos a cada semana, abocanhando uma parcela maior dos recursos. Isto lhes permitia contratar melhores jogadores, ter um melhor desempenho e, consequentemente, tornarem-se produtos ainda mais cobiçados pelo mercado publicitário, o que gerava mais renda e assim por diante.

Este processo de concentração de riquezas seria radicalizado através da formação de uma liga à parte, o que vem a ocorrer a partir de 1991. O rompimento definitivo com a Football League, tantas vezes ameaçado pelos grandes clubes, tornava-se uma realidade. Os vinte e dois clubes da Primeira Divisão, aproveitando uma disputa política entre a Football Association e a Football League, conseguiram o apoio da primeira para a formação de uma liga independente, a Premier League. O momento era crucial, um ano antes de firmar um novo contrato de televisão a partir da temporada 1992-3. Com a criação da nova liga os recursos não precisariam mais ser divididos – nem mesmo de forma parcial – com os clubes das divisões inferiores.

Enquanto isso, duas redes de televisão estavam dispostas a pagar muito bem pelos direitos de transmissão do campeonato da nova liga. De um lado a TV aberta ITV, interessada em renovar o contrato por mais quatro anos, topava  subir  o valor do contrato de quatro anos de 52 para 262 milhões de libras. Do outro lado a TV por satélite BskyB, pertencente ao polêmico magnata da mídia Rupert Murdoch, dono do tablóide The Sun e do prestigioso The Times entre outros.

A BskyB vinha atravessando dificuldades financeiras, com um pequeno número de assinantes dispostos a pagar por sua programação exclusiva. O futebol passa a ser a última esperança: se os direitos dos jogos antes transmitidos gratuitamente pela televisão aberta fossem controlados pela Sky, a empresa tinha uma chance de recuperação. Alertada por Alan Sugar, que era ao mesmo tempo chairman (presidente) do Tottenham e parceiro comercial da empresa de Murdoch, a BskyB cobre a oferta da ITV e oferece 304 milhões de libras por quatro anos. Em uma votação apertada, em que o anti-ético voto de Alan Sugar foi essencial, os clubes decidem aceitar a proposta da TV por satélite. A empresa de Sugar, responsável pela fabricação dos discos-antenas de recepção, lucrou 6 milhões de libras com o acordo.

Na prática, a Premier League continuava a ser, efetivamente, a Primeira Divisão, pois continuava a existir o mecanismo de rebaixamento e de subida entre ela e as outras três divisões da agora mutilada Football League. O importante era que a montanha de dinheiro vinda do contrato com a BSkyB passava a ser exclusividade dos vinte e dois clubes que fundaram a nova liga. A empresa de Murdoch deixou de fazer prejuízo e começou a acumular lucros anuais cada vez mais expressivos: o futebol funcionara como isca perfeita para novos assinantes, maior audiência e mais dinheiro vindo dos anunciantes. Em 1996, o segundo contrato da BskyB com os clubes – para vigorar quatro anos a partir de 1997 – mais do que dobra de valor, passando a significar 670 milhões de libras. O “novo futebol”, como a rede de televisão passou a chamar o esporte, era vendido de forma agressiva e hiperbólica, ajudando a apagar a imagem de um esporte em decadência após décadas de problemas.

Com os novos recursos e uma audiência mundial, contratam-se técnicos e atletas estrangeiros, melhorando o nível técnico e gerando maior interesse junto ao público. Havia  apenas onze jogadores não-britânicos na primeira temporada em 1992-1993, tornam-se 66 em 1995-1996 e 400 em 2000-2001, ano em que a Premier League já era transmitida para 141 países e tinha uma audiência acumulada de 1,3 bilhões de pessoas. O futebol inglês, antes fechado sobre si próprio, passava a ser vendido como uma mercadoria valiosa no mercado global da indústria do lazer.

Alguns clubes, obviamente os gigantes, com maior apelo e glamour, não perdem a chance de se transformarem em corporações transnacionais, como é o caso principalmente do Manchester United, que passa a adotar uma estratégia de “conquista” do mercado asiático, disputando torneios e amistosos no Oriente e abrindo megastores do clube em Cingapura e em Kuala Lumpur (Malásia). 

Para os torcedores o preço dos ingressos não para de subir, aumentando 300% somente entre 1992-1999, mas o público de maior poder aquisitivo agora passa a frequentar o “novo futebol”, glamourizado pela televisão e transformado em um produto “respeitável”, um ramo privilegiado da indústria do entretenimento.

Em meio a este turbilhão de mudanças, muitos clubes deixam de ser companhias limitadas e lançam suas ações na Bolsa de Valores, em um processo que iria enriquecer antigos diretores e empresários atraídos pela nova mina de ouro. Alguns destes, de reputação duvidosa e sem nenhuma ligação anterior com os clubes, ficaram milionários da noite para o dia.

Os clubes maiores, com estádios com maior capacidade e mais torcida, tendem a ficar cada vez mais ricos. Nem mesmo dentro da Premier League a divisão de recursos provenientes da televisão é igualitária: os clubes com mais jogos retransmitidos recebem mais recursos. Tudo passa a ser motivado pelo lucro, sem nenhum respeito pela tradição. Ou seja, agora o futebol inglês passava a ser dirigido pelas “forças do mercado”, que sempre tendem a tornar os ricos mais ricos e os pobres mais pobres.

Foi esse “novo futebol” que eu fui conhecer em pessoa durante a temporada 2007-2008. Aqui termina a primeira parte da Rainha de Chuteiras, dedicada à História do Futebol Inglês. Agora começa a segunda parte, que relata minhas aventuras futebolísticas na terra da Rainha.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marcos Alvito

Professor universitário alforriado. Escritor aprendiz. Observador de pássaros principiante. Apaixonado por literatura e futebol. Tenho livros sobre Grécia antiga, favela, cidadania, samba e até sobre futebol: A Rainha de chuteiras: um ano de futebol na Inglaterra. O meu café é sem açúcar, por favor.

Como citar

ALVITO, Marcos. Premier League S/A. Ludopédio, São Paulo, v. 40, n. 2, 2012.
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