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Protestos olímpicos: mulheres atletas contra roupas que sexualizam corpos

Wagner Xavier de Camargo 1 de agosto de 2021

Os Jogos Olímpicos de Tóquio não tinham nem bem se iniciado e uma apresentação de atletas alemãs de ginástica artística provocou uma reflexão geral. Elas apareceram vestindo modelitos inteiriços de um macacão que deixava apenas os pés, antebraços, mãos e cabeça descobertos, uma opção bem diferente do tradicional “collant cavado com lantejoulas”. O motivo: um redondo e consciente “não” para a sexualização de corpos de mulheres nos esportes. O protesto não é novo, porém no palco olímpico começa a se impor timidamente.

Ginástica Tóquio 2020
Foto: Reprodução/Instagram

Antes mesmo do deflagrar desta competição, na mesma semana inclusive, a equipe feminina do handebol de praia da Noruega havia sido multada em 1.500,00 euros por descumprir o código de vestimenta da modalidade (e da respectiva federação nacional) quando as atletas optaram por jogar com shorts curtos, parecidos com bermudas, ao invés dos micro-biquínis, tudo com o propósito de bem-estar (sentir-se confortável) e provocar um desvio da sexualização de seus corpos.

Essa decisão acabou se tornando o epicentro de um debate que está longe de se esgotar. Até onde vão as diferenças entre homens e mulheres no campo esportivo? Em que medida roupas e implementos distintos para eles e elas (ou elus, se considerarmos atletas não bináries) não apenas denotam especificidades, mas escancaram tratamentos discriminatórios, olhares sexualizadores e mesmo discriminações de gênero.

Vou me deter aqui neste aspecto que diz respeito à sexualização do corpo de mulheres atletas e no fato perigoso da imputação obrigatória de uma única “forma de se vestir”. Em que pese hajam mudanças em curso no campo esportivo, como introdução de narradoras e comentaristas esportivas, jornalistas mulheres e mesmo cada vez mais técnicas, árbitras e juízas, sabemos que o olhar orientado ao esporte é o do homem, que o criou lá em fins do século XIX, para se (auto)entreter.

Mais de cem anos se passaram e reproduzimos ainda os mesmos valores, escolhendo ou excluindo elementos a partir de uma ótica androcêntrica (do ponto de vista do homem). O esporte é mais do que um espaço reservado ao masculino, como certa vez disse o sociólogo britânico Eric Dunning. Ele está a serviço do gozo do macho, generificando e sexualizando corpos de mulheres. É no esporte que corpos são marcados para serem consumidos e lá, igualmente, que se tornam produtos consumíveis, inclusive sexualmente. A libido construída pelos meios de comunicação, que pactuam com tal visão, é predatória às mulheres, que são as “carnes mais apreciadas”.

As atletas da ginástica ou do handebol não são as únicas a sofrerem com assédios em relação ao seu vestuário. Pode-se lembrar da polêmica instaurada no vôlei de praia, nos Jogos Olímpicos do Rio, em 2016. Quando as jovens jogadoras egípcias Doaa Elghobashy e Nada Meawad entraram na areia contra as alemãs Laura Ludwig e Kira Walkenhorst, o que se comentou não foram suas partidas anteriores e suas performances, e sim suas vestimentas. Ambas usavam roupas que cobriam todo o corpo e Elghobashy ainda vestia o hijab (ou véu islâmico). Houve narrador esportivo que tratou tais vestes como “pouco atraentes” para uma mulher.

Essas considerações oriundas de comentários aleatórios, tanto de especialistas quanto do senso comum das pessoas, não têm nada de insignificantes. Muito pelo contrário. Elas dizem respeito aos estereótipos de gênero arquitetados socialmente, que respondem a lógicas desejantes de homens – e exclusivamente deles. Por mais que conquistas feministas se coloquem na esteira das histórias de mulheres, elas ainda continuam objetificadas pelo olhar social do macho da espécie.

Atletas brasileiras do vôlei de praia também já passaram algo semelhante. Quem não se lembra, ainda nos Jogos de Atlanta-96, das duplas Sandra Pires/Jaque(line) Silva e Adriana Samuel/ Mônica Rodrigues. Elas ganharam, respectivamente, a medalha de ouro e prata no vôlei de praia naquela competição. No momento do pódio veio a orientação para aparecerem de biquínis, porque era “mais sexy”. Segundo consta, Adriana estranhou o pedido, visto que havia um consenso que atletas deviam vestir seus uniformes (agasalhos) completos antes de receberem medalhas. No entanto, acatou-se a informação e houve até um registro fotográfico icônico das quatro no pódio, apenas de biquínis.

Vôlei 1996
Foto: divulgação COB

Como disse Karl Marx, ao corrigir a ideia de Hegel de que a história se repetiria duas vezes da mesma maneira, os fatos que ocorrem na humanidade se processam duas vezes, porém a primeira como tragédia, a segunda como farsa – para quem tem interesse em saber disso, leia O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Fatos como esses das vestes e da objetificação/erotização do corpo de mulheres vão continuar a se repetir, pois isso reforça o establishment esportivo, ou àquilo que caracteriza a sociedade ocidental. Num social construído de homens para homens, mulheres ainda servem como objetos de prazer e, portanto, suas roupas devem sensualizar gestos (por exemplo, nas ninfetas ginastas) e sexualizar corpos (como nas atletas torneadas e bronzeadas do vôlei de praia, em corredoras de atletismo, em jogadoras de futebol, etc.).

Há consequências nisso tudo e uma delas é o disparar de condutas inadequadas em relação a esses corpos. Como se descobriu acerca de Larry Nasser, médico da seleção de ginástica dos EUA, que encontrava brechas em sessões de massagens para burlar vãos e folgas em collants para penetrar (o pênis ou os dedos) em vaginas de jovens atletas. Isso é, de longe, inadmissível e inaceitável, dentro ou fora do esporte.

Contudo, há transformações em curso, como esses protestos pontuais e que se proliferarão de tempos em tempos (tomara que com mais frequência!). Há, igualmente, esperanças em despadronizações, de vestimentas e condutas, oferecidas pelas meninas do skate ou pelas do bicicross (ciclimo BMX). Com roupas largas e confortáveis, ou com macacões que as indistinguem de competidores homens, elas apenas competem, encarando desafios como qualquer atleta, mostrando suas desenvolturas e testando seus limites.

Que novas gerações, das jovens jogadoras muçulmanas à menina Rayssa Leal, passando pelas ginastas e handebolistas, em Jogos Olímpicos ou não, encontrem outros modos de vestir, esportiva e socialmente, e que isso signifique um novo começo, nada androcêntrico ou machocentrado, de performances que vão importar menos pela roupa e mais pelo gesto técnico. Roupas podem (ou não) sexualizar corpos, mas não podem, jamais, transformar corpos em objetos consumíveis para apenas uma parcela da população, aliás, em franca minoria.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Protestos olímpicos: mulheres atletas contra roupas que sexualizam corpos. Ludopédio, São Paulo, v. 146, n. 1, 2021.
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