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Puerta 7 – as barras bravas no streaming

Arlei Sander Damo 30 de abril de 2020

Gravada na Argentina e tendo os bastidores do futebol como tema – o que inclui dirigentes esportivos, torcedores organizados, empresários de várias cepas, entre outros -, Puerta 7 é uma série com 8 episódios lançada no final de fevereiro de 2020. Esta ficção produzida pela Netflix dialoga com a vida real, como parece ser uma tendência recente de sucesso de público e crítica. Pelo fato da trama ser ajustada ao gênero policial é mais provável que encante o público aficionado por este estilo de narrativa do que cinéfilos que procuram entretenimento em ficções mais densas e sofisticadas. A quem trabalha com a temática esportiva, deve interessar apesar do formato.

Um dos criadores de Puerta 7 é Martin Zimmerman – de Narcos e Ozark –, o que explica as tantas afinidades, incluindo-se as reiteradas cenas de violência. Puerta 7 segue o estilo de Narcos e alguns críticos já chamaram a atenção para o aspecto comercial da produção, arrastando os bastidores do futebol para o lugar comum de um roteiro policial. Afora isso, não teria dúvidas em recomendar Puerta 7 para quem dialoga com o esporte de um ponto de vista antropológico. As gravações foram ambientadas num bairro de periferia de Buenos Aires tendo o Ferroviários – nome fictício para o Independiente, de Alvejaneda – como cenário das principais ações. O ponto de partida e o eixo central da narrativa desta primeira temporada é o chefe da Barra, Héctor “Lomito” Baldini – interpretado por Carlos Belloso – que além da torcida gerencia outros negócios no bairro, num amplo espectro que vai do legal ao ilícito (imoral).

Lomito é um chefe de torcida distinto dos que estamos habituados no Brasil – quiçá dos próprios argentinos, dado que Puerta 7, não custa repetir, é uma ficção – mas não por completo. Trata-se de um excêntrico homem de negócios, em cujo portfólio inclui-se um restaurante convencional, quiosques no entrono do estádio, apostas ilegais, um jogador de futebol, entre outros. Por um lado, um empreendedor – para usar um termo da hora -; alguém que se fez por si, vindo “de baixo”. Por outro, um mafioso à moda antiga – sem o charme de Dom Corleone, pois os gostos de Lomito combinam mais aos dos novos ricos. Seus negócios provêm do controle do território e não de um ramo de atividade em particular, como é o caso dos narcotraficantes, que estão se instalando no bairro e com os quais Lomito acaba associando-se.

Deliberadamente, vou me distanciar da questão dos narcóticos para me fixar na de território. De maneira geral, território não é um marcador tão central para as nossas torcidas quanto o é para as argentinas e isto tem a ver, em boa medida, pela expansão extraordinária das cidades brasileiras, que fizeram com que os clubes, mesmo aqueles centenários, ampliassem espacialmente a adesão diluindo os vínculos territoriais originários. Não menos decisivo foram as variáveis urbanísticas, com os clubes mudando a localização das suas sedes e de seus estádios, além do alargamento do circuito de competições, de modo que no Brasil a ideia de região ou estado foi adquirindo maior importância do que a de cidade, distrito ou bairro.

Temos bons exemplos em contrário, como em Recife, onde as rivalidades clubísticas ainda implicam os territórios urbanos da capital – especialmente o Náutico, identificado com o bairro de Aflitos e adjacência – ou mesmo em Florianópolis, com o Avaí representando o arquipélago e o Figueirense o continente. Em São Paulo se diz que os corinthianos predominam na zona leste da capital; no Rio temos a “barreira do Vasco”. Outros contraexemplos desse tipo poderiam ser elencados; contraexemplos porque a tendência hegemônica no Brasil foi a expansão da predileção clubística com um número restrito de clubes “invadindo” o território de outros, extintos ou rebaixados ao longo deste processo. Como corolário, tivemos a reelaboração do significado da própria noção de território, que ainda permanece fulcral.   

No caso da dupla Gre-Nal, de quem eu posso falar com mais propriedade, o Inter perdeu completamente o rótulo de clube do 2º Distrito, ostentado até por volta da década de 1950, embora seu atual estádio esteja situado no mesmo bairro desde a década de 1910. O Grêmio foi o clube do 1º Distrito – e também por isso ficou com a fama de elitista – até se mudar do elitizado Moinhos de Vento para a proletária Azenha, em 1954, e de lá para o Humaitá, ainda mais pauperizado, em 2012. Todavia, foi o fim do certame metropolitano, do qual a dupla se ocupou até o final da década de 1950, em detrimento do campeonato estadual e, em seguida, do nacional e depois do continental, que tornou as refregas distritais esvaziadas de significado. Desde então Grêmio e Inter foram se consolidando como representantes do gauchismo, seja nas fronteiras políticas do Rio Grande do Sul ou naquelas imaginadas, onde quer que existam núcleos desta emigração. No que parece ser o custo deste acoplamento identitário, a dupla Gre-Nal tem muito mais aversão do que adesão noutros territórios nacionais.

Não quero generalizar a partir deste caso, porque outras rivalidades nacionais não se projetam de maneira tão justaposta à noção de identidade regional. O exemplo serve, no entanto, para ilustrar o que se poderia nominar como reconfiguração da noção de território. Por um lado, expandiu-se a porção concreta originária – o bairro, o “distrito” e a cidade – e isso acarretou uma espécie de dispersões de conflitos e das tensões localizadas. Por outro, os aspectos simbólicos atinentes à noção de pertencimento territorial adquiriram maior destaque do que aqueles relacionados ao convício social propriamente dito. Me parece que esta perspectiva é passível de generalização. De todo o modo, mais compatível com a dinâmica das identidades clubísticas brasileiras – com as ressalvas já destacadas anteriormente – do que com as argentinas.   

Quem conhece um pouco da produção acadêmica dos hermanos sabe que, à exceção de Boca e River Plate, cujas preferências foram expandidas para além dos seus territórios originários – sem que isso acarretasse em perda nos vínculos locais, pelo menos no caso do Boca – os demais clubes ainda possuem identificação bem preservada com seus bairros, especialmente os que participam de divisões menores. Esta variável auxilia na compreensão do porque das barras serem tão bravas, a ponto de serem invejadas pelas nossas Torcidas Organizadas. Na capital portenha, usar camiseta de clube implica bem mais do que a indicação da predileção clubística. Denota o pertencimento a um território e como tal a uma comunidade mais ampla e densa de significações.

Cartaz da série Puerta 7, da Netflix.

Na Reunião de Antropologia do Mercosul realizada em Córdoba, em 2013, fiquei impressionado pelo argumento de um jovem pesquisador (ficarei devendo o nome, infelizmente) que contestava as estatísticas estatais acerca das mortes provocadas pelas brigas de torcidas. Segundo ele, o Estado contabilizava casos de morte ocorridas longe das imediações dos estádios e em dias que não haviam jogos sempre que um cadáver portasse um adereço de clube ou de torcida. Ele dispunha de um relato concreto, de um jovem atropelado ao cruzar uma autoestrada acossado por um bando que o identificara como estranho pelo simples fato de usar a camiseta de um clube de outro território. Uma atrocidade, por óbvio, mas aquela tragédia não deveria, segundo jovem-pesquisador, ser computada como violência entre torcidas de futebol, pois a razão da perseguição era alheia. Tudo levava a crer que o ocorrido foi provocado por um descuido do “invasor” com sua indumentária, que despertara suspeitas nos traficantes locais. No entanto, nem os agressores e tampouco a vítima tinham vínculos com as respectivas barras.

No Brasil, certamente temos marcadores territoriais tão destacados apenas em relação aos times de Várzea, mas aqui e ali ouve-se narrativas de que as TOs possam, por conta própria, estar operando nesse registro. Seja como for, a questão do território ainda poderia nos render bons trabalhos, especialmente se matizássemos nossa produção com àquela oriunda da etnologia. Neste campo a noção de território é um conceito bem mais problematizado do que nos estudos sobre futebol, muito centradas na questão do nacional, o que pressupõe, a meu ver, uma reelaboração conceitual desta noção a partir do debate sobre identidade num registro das formações alargadas implicadas no dueto Estado-nação.

Puerta 7 não reivindica o rótulo de documentário, como a série Futebol, produzida nos anos de 1990 por João Moreira Salles e Arthur Fontes. Esta produção imagética não acadêmica teve considerável repercussão entre os pesquisadores que trabalhavam com a temática do futebol, incluindo-se a minha tese, que provavelmente teria outro enfoque não fosse tal documentário. Será interessante acompanhar se – e como – Puerta 7 impactará os estudos esportivos. A produção nesse campo se expandiu e se diversificou nas últimas décadas, mas ainda temos um déficit considerável de trabalhos a respeito da trama política e econômica implicadas na gestão dos clubes. Mesmo em relação às Torcidas Organizadas, as questões estéticas e políticas (identitárias, sobretudo) são bem mais recorrentes do que as de ordem econômica, sendo estas indispensáveis de ser incorporada às discussões envolvendo autonomia, dependência e aliança desses grupos corporativos. Puerta 7 poderia despertar o interesse para esta temática, embora devo reconhecer, desde logo, a dificuldade de realizar trabalhos de campo in loco, como se faz com a etnografia, ou acessar documentos confidenciais que revelem os lomitos da vida real.

Daí a razão pela qual uma narrativa ficcional como Puerta 7 tem considerável vantagem em relação às nossas, dependentes que somos da boa vontade dos agentes e das instituições, para acessar as narrativas, e da vigilância ética que acompanha as boas práticas científicas. Soma-se a isso as circunscrições que as ciências, mesmo as sociais, impõem à imaginação. Há muitas caricaturas em Puerta 7 decorrentes do enquadramento do tema a um certo estilo de narrativa e, por óbvio, às demandas do consumo cinematográfico. Em favor da Série, há de se admitir as incontáveis caricaturas que povoam o universo do futebol, de modo que a ficção poderia ser desculpada por certos excessos. Assim como grifei a questão do território, outras poderiam ser desdobradas a partir de Puerta 7.  Estou curioso para a segunda temporada, porque se até aqui a Série conseguiu evitar certos clichês – incluindo-se o das fábulas infantis, em que o bem vence o mal –, o fez no limite da “grande área”.    

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Arlei Sander Damo

Professor PPG Antropologia Social/UFRGS. Autor de Futebol e Identidade Social e Do dom à profissão. Co-autor de Cultura y Fútbol e Megaeventos esportivos no Brasil.

Como citar

DAMO, Arlei Sander. Puerta 7 – as barras bravas no streaming. Ludopédio, São Paulo, v. 130, n. 46, 2020.
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