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Futebol em tempos de pandemia: quando a rua vira um campo

A rua é um espaço que exerce múltiplas funções e que impulsiona diferentes experiências para as pessoas que por ela transitam. O acesso à rua tendo por objetivo o deslocamento na cidade talvez seja o modo mais predominante de utilizá-la. Contudo, se a observarmos com um pouco mais de atenção, será possível nos depararmos com outras possibilidades de sua utilização que vão além do deslocamento de pessoas e do trânsito de veículos.

Nesse período conturbado que estamos passando devido à pandemia do COVID-19, em que as relações interpessoais foram impactadas significativamente, é necessário criar estratégias para superar os desafios impostos no novo contexto. Os últimos meses nos evidenciaram dilemas inimagináveis anteriormente, relativos aos afetos e ao contato humano, em especial nos locais públicos. Desse modo, ir para a rua tem sido um exercício de superação da restrição ao ambiente doméstico. Sendo, ainda, um novo aprendizado de convivência interpessoal e de uso dos espaços públicos que envolve, inclusive, o uso de máscaras. E nessa nova realidade remodelamos o trabalho, as relações humanas, o ensino, o lazer e o nosso cuidado com a saúde.

Durante aproximadamente três meses de maior distanciamento entre as pessoas em Belo Horizonte, observamos menos barulho nas avenidas e nas ruas devido ao tráfego reduzido de veículos e de pessoas. Mas, desde de junho esse panorama vem se alterando e a população vem retomando a ocupação dos espaços públicos. E cada vez que há uma nova ampliação na flexibilização das diretrizes relacionadas ao distanciamento social na cidade, há uma elevação rápida na quantidade de pessoas nas ruas.

E nesse processo de transição, atividades ligadas à cultura, ao esporte e ao lazer, que naquele contexto anterior à pandemia ainda eram vistos por uma parcela da população como irrelevantes ou como atividades de desocupados, agora ocupam os holofotes e fomentam debates relativos, por exemplo, à importância deles para o bem-estar das pessoas ou sobre a contribuição que podem ter no campo econômico.

Indo além desse debate e direcionando as atenções para as relações no microssocial, foi possível observar a presença de um pequeno grupo de garotos que jogavam futebol no meio da rua. Em um fim de tarde, enquanto eu caminhava em uma das ruas principais do Bairro Vila Clóris em Belo Horizonte, me deparei com um grupo de aproximadamente dez garotos que estavam se divertindo e transformaram a rua em um “campo” para esse esporte.

Futebol no meio da rua. Foto: Luciana Cirino.

Além de observar que naquela “aglomeração” ninguém usava máscara, o que mais se destacou para mim foi perceber que no fim de uma tarde de agosto (durante a pandemia) aquele grupo de garotos estava lá no meio da rua, com um par de traves, pés descalços e uma bola. Chutavam, corriam e se divertiam, mantendo viva essa forma de jogar o futebol. Uma cena que era relativamente comum visualizar nos bairros da periferia de Belo Horizonte anos atrás, mas que tem sido cada vez mais difícil encontrar devido a aspectos como a aceleração da urbanização e ao trânsito de carros.

Apesar da pandemia e dos riscos de contágio do vírus que o contato interpessoal sem máscara poderia oferecer, aquele grupo de garotos estava se apropriando da rua e brincando de jogar futebol. Cena semelhante constatei algumas semanas depois no mesmo local, no começo de uma noite de setembro. As traves estavam na rua e os jogadores no passeio, talvez dando uma pausa no jogo para fazer a resenha. Parece que cada vez mais há uma necessidade coletiva de ir para o espaço público, local potente que pode favorecer o encontro, o contato interpessoal e o contágio do vírus.

Futebol na rua em uma noite de setembro. Foto: Luciana Cirino.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Luciana Cirino

Integrante do Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes (FULIA), da UFMG.

Como citar

COSTA, Luciana Cirino Lages Rodrigues. Futebol em tempos de pandemia: quando a rua vira um campo. Ludopédio, São Paulo, v. 136, n. 19, 2020.
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