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Quando o dinheiro não é tudo

Em um mundo onde o capital tem regido leis, mantido presidentes notoriamente corruptos e um Congresso que não esconde mais suas intenções nefastas contra a maioria da população, a narrativa sobre o futebol não tem conseguido se desvencilhar desta lógica mercadológica. Planejamento, balancetes positivos e a gestão, assuntos muito mais voltados para o campo econômico, tem se fortificado como o grande passo para o “futebol moderno”. Nem de longe é intenção deste texto dizer que o planejamento moderno deva ser excluído. Nosso objetivo é mostrar que ele não é tudo. As pesquisas desenvolvidas pelo LEME (Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte) sempre indicaram algo óbvio, mas que muitas pessoas ainda não compreenderam: o futebol, assim como a sociedade, é o resultado de um todo integrado. Analisar pontos sem levar em conta este todo é a primeira chance de errar feio na projeção. Neste cenário, todo o dinheiro recebido por Neymar na transferência mais cara do mundo do futebol nos apresenta importantes pontos para reflexão.

Paris 05/08/2017 O novo atacante parisiense Neymar Jr. foi apresentado neste sábado (5) ao público do Parc des Princes, poucos minutos antes do pontapé inicial do jogo de estreia nesta Ligue 1 contra o Amiens. Foto C.Gavelle/PSG
O novo atacante parisiense Neymar Jr. foi apresentado ao público do Parc des Princes, poucos minutos antes do pontapé inicial do jogo de estreia nesta Ligue 1 contra o Amiens. Foto: C.Gavelle/PSG.

Antes de qualquer análise é preciso deixar claro, principalmente em tempos de maniqueísmo tolo que nos assola, que Neymar é um jogador muito acima da média, está entre os três melhores do mundo, com possibilidades de chegar a ser o primeiro e maior esperança brasileira para conquistar a Copa do Mundo. Consideramos Neymar um sucessor dos grandes craques que o Brasil produziu para o mundo do futebol. Posto isso, sem querer praticar futurologia, sua saída do Barcelona indica que o dinheiro recebido no PSG não será tudo em sua carreira. Faltam vários pontos para Neymar ser o que almeja e o que pode ser. E já adiantando, ao ir para o PSG ele muda seu patamar de atleta que poderia ser o melhor do mundo para atleta mais bem pago do mundo. São escolhas e neste sentido, Neymar escolhe a evolução patrimonial ao invés da esportiva.

O primeiro ponto é o caráter individualista de sua escolha. O principal é ser o melhor do mundo. Por mais que este prêmio seja altamente discutível no ponto de vista da fórmula de votação, evidenciando apenas os jogadores de grandes clubes europeus, não podemos rejeitar a ideia de que nos últimos anos os melhores do mundo foram realmente Messi e Cristiano Ronaldo. Para ser o melhor do mundo na FIFA é preciso jogar nesses clubes. Neymar não soube esperar, quer o prêmio agora, mesmo sabendo que tecnicamente seus dois adversários estão, atualmente, acima dele.

Ele seria naturalmente herdeiro desta disputa entre o argentino e o português. Poderia amadurecer e ganhar este prêmio facilmente. Nos próximos quatro anos, apenas ganhando uma Copa do Mundo pelo Brasil o faria desbancar os dois monstros. E não é preciso ser um gênio para saber que ele poderia ganhar uma Copa pelo Brasil mesmo jogando pelo Barcelona. O importante, para o staff de Neymar, é ser o melhor do mundo logo, e colher os frutos financeiros desta conquista. Como se o que ele já ganhou até hoje fosse pouco. A obsessão para ter um time para chamar de seu falou mais alto. Mas será que ele estaria pronto para ter um time seu? Seria o PSG de Neymar como o Botafogo de Garrincha? O Santos de Pelé? O Napoles de Maradona? O Flamengo de Zico? O Barcelona de Messi? Todos esses gênios tiveram ao seu lado um time repleto de craques para que eles conseguissem brilhar. E mais do que isso, um time com história, camisa e torcida para alçar seus gênios a este status.

O PSG é um clube novo, sem a história e peso necessário para disputar com os grandões Barcelona e Real (times dos principais adversários de Neymar). O envolvimento da torcida é relativamente recente. E, além disso, pautado em investimentos externos, o projeto não tem nenhuma garantia de que seja duradouro. Esse é o problema do mecenato futebolístico atual. Quem garante que o Sheik não vai desistir de brincar de Championship Manager (no modo trapaça) e abandonar o jogo para brincar de outra coisa? Quantas Champions League ele vai suportar perder até conseguir seu objetivo. O mercado pensa primeiro no retorno financeiro. Se ele não vier, muda-se o investimento. Esse é o problema de um clube sem cancha e tradição. Qual a chance de Neymar ganhar um torneio importante com este time? Óbvio que ela existe, mas no Barcelona ela seria maior.

Neymar pode até dizer que “não é por dinheiro”, mas ele é dono das duas maiores transferências da história do futebol. A do Santos para o Barcelona já era a maior e foi superada pela compra pelo PSG. Arte: Globoesporte.com (reprodução).
Neymar pode até dizer que “não é por dinheiro”, mas ele é dono das duas maiores transferências da história do futebol. A do Santos para o Barcelona já era a maior e foi superada pela compra pelo PSG. Arte: Globoesporte.com (reprodução).

O ponto positivo para Neymar nesta transferência não tem nada a ver com fazer do PSG um clube para chamar de seu. Não é um novo desafio de transformar o PSG em uma potência. O burburinho causado no mundo do esporte com sua transferência o reposicionam no mercado de “garoto propaganda” e parece que este é o único objetivo de seu staff. Este não será seu último clube na carreira e aposto que não cumpre o contrato de cinco anos. Explico: a chance que ele tem de ser o melhor do mundo ganhando a Copa de 2018 é real. Assim sendo, o Sheik o venderia por um valor maior do que pagou e não me espantaria se o comprador fosse o Real Madrid. Camisas, milhões e a “Cidade luz” seriam trocados por mais euros. Assim, Neymar faria sua trajetória como um jogador celebridade, multibilionário, povoando as listas dos mais bem pagos do planeta e tendo seu afeto apenas com os clientes de suas marcas e não com os torcedores.

Isso não é tudo. O envolvimento do torcedor com os grandes craques é algo que dinheiro nenhum do mundo pode pagar e o que os situa na memória dos amantes do esporte. Não são as listas de grandes transferências. Que o diga Denílson, que foi para o Betis e só aparece na lista do clube e de seus torcedores como a transação mais cara do clube e ponto. Mesmo com todo o potencial de Denilson. Não basta ser “apenas” milionário. Fazer história em um clube pode ser algo muito maior.

PARIS 11/09/2017 Treino do PSG. Foto C.Gavelle/PSG
Daniel Alves e Neymar em treino do PSG. Foto: C.Gavelle/PSG.

Neymar é um exemplo claro de como a configuração do campo esportivo se entrelaça de maneira robusta com o campo econômico. Mesmo com todo o investimento, planejamento, e fortuna, nada garante a ele e ao PSG o sucesso. É preciso algo mais, algo que o dinheiro não pode comprar, algo que é construído e que não está a venda. Este é o grande desespero do capital no esporte, principalmente no futebol. Por mais que se tente enxergar os clubes como fundos de investimento que garantem um lucro mínimo ao final deste investimento e consequentemente, o sucesso, o jogo é jogado. São vários outros pontos que interferem em um jogo de futebol que não só o dinheiro. Basta vermos a posição do Flamengo no campeonato brasileiro: tem finanças em dia, jogadores caros e bons, mas não joga o que se espera e explora financeiramente sua torcida de massa com o ingresso mais caro do país.

Neymar tem o dom, e está sendo agraciado financeiramente por conta dele. Meu maior medo, por ser fã de seu futebol é que nosso craque não seja idolatrado e envolvido pela atmosfera dos amantes do futebol da mesma forma que o dinheiro dos clientes do futebol o adornarão por toda a vida. A narrativa jornalística inebriada e envolvida com os milhões julga correta sua “ambição”. Se pudesse aconselhá-lo diria: querido Neymar, deve ser muito triste ter só dinheiro.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Mattheus Reis

Estudante de Comunicação Social/Jornalismo (UERJ). Apaixonado por esportes e história, eu descobri o jornalismo como vocação e busco contribuir para que a sociedade seja cada vez mais cidadã.

Como citar

REIS, Mattheus. Quando o dinheiro não é tudo. Ludopédio, São Paulo, v. 98, n. 14, 2017.
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