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Quanto vale um pódio olímpico?

Wagner Xavier de Camargo 2 de maio de 2021

Quanto vale um pódio olímpico? Obviamente essa é uma questão especulativa, e talvez bastante vaga, pois a resposta a ela é “depende” – de quem a faz ou de quem a responde. Para milhares de atletas em todo o globo, que insistem em treinar para os próximos Jogos Olímpicos/Paralímpicos, um pódio dessa natureza vale muito, na exata medida em que qualquer chance de coroar uma trajetória de treinamentos vale qualquer esforço empreendido. E para as demais pessoas, quanto valeria?

É de conhecimento público, por meio de histórias contadas em mídias sociais, que atletas brasileiros fizeram/fazem o possível e o impossível para treinar durante essa crise pandêmica sem precedentes. Treinos em quartos, em corredores de cimento batido, em salas minúsculas, em quintais enlameados, em represas e praias fechadas, de máscaras ou sem, mas num esforço sobre-humano para se protegerem enquanto tentam manter vivo o sonho da medalha olímpica (ou paralímpica). Quanto mais se aproxima a data dos Jogos de Tóquio, mais a ansiedade cresce, mais as peripécias se multiplicam, mais o processo insano de uma preparação distinta assim o exige. Afinal, conquistar o pódio olímpico/paralímpico vale tudo!

Tudo muito louvável, não fosse o contexto. Quem em sã consciência pensa em manter treinos rotineiros ou sua performance intocada enquanto milhares de pessoas (próximas ou não) se contaminam e morrem por dia? Quem imagina viajar, quando ainda fronteiras estão fechadas por todos os lados? Na conta desses delírios inconsequentes, atletas buscam o pódio olímpico/paralímpico.

Há uma semana noticiou-se que há conversações entre Comitê Olímpico Brasileiro (COB) e Ministério da Defesa para vacinarem cerca de 2 mil pessoas, entre competidores e equipes técnicas (médicos, fisioterapeutas, pessoal de apoio, etc.), no sentido de se habilitarem para a viagem ao Japão com a certeza de que, inoculados, manterão vivo o sonho do pódio. Diz-se que assim também procedem outros países do mundo!

Ora, sejamos francos: desde quando o Brasil está perfilado com “outros países do mundo” neste momento da pandemia, particularmente no tocante ao combate (eficaz) ao coronavírus? Apesar de 2 mil doses não serem, exatamente, uma grande quantia, por que então não se aceita a oferta da China para que elas sejam advindas da cota de vacinas deixada à disposição aos países participantes, ao invés de retirar do escopo escasso da produção nacional?

Olimpíada Japão
Marcando a contagem regressiva de 4 meses até o início dos Jogos Olímpicos, a chama olímpica chegou ao Japão. Foto: Reprodução/Agência Brasil

Aqui não estou clamando consciência de confederações e entidades esportivas, nacionais ou outras, porque essas têm outros propósitos, tão inglórios quanto escusos. Estou chamando atenção de atletas, que estão diretamente envolvidos nessa situação! O Comitê Olímpico Internacional (COI) já disse que vacinas não são obrigatórias para a participação no certame – apesar de também dizer que vai garantir condições mínimas para que competidores estejam vacinadas/os antes do início das contendas esportivas.

Não vejo sinal de boicote geral e irrestrito aos Jogos de Tóquio, algo que deveria estar passando pelas cabeças, não apenas de nossos/as atletas, mas de todos os envolvidos neles. Pelo cancelamento cabal dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos de Tóquio 2020! Que se reinventem depois, que pulem essa edição. Não foi assim em outros momentos da história?

Volto à pergunta inicial, que no meio desse imbróglio exposto, não é mais vaga ou tão sem sentido: quanto vale um pódio olímpico/paralímpico? Esses e essas atletas brasileiros/as vão carregar nas costas o peso das mortes de tios próximos, de irmãos e irmãs, de possíveis amigos/as e mesmo ex-professores/as, que poderiam ter sido vacinados com o imunizante, o qual foi dispendido para manter “o luxo de um sonho” de pódio olímpico. Sim, sonho, porque é nesse espectro que está a campanha brasileira há anos nos Jogos Olímpicos pelos pífios resultados que tem alcançado – nos Paralímpicos, a história é outra.

Num momento em que ainda morrem 2 mil pessoas por dia (que coincidência essa cifra), contaminam-se perto de 50 mil e a pandemia estaciona num platô incrivelmente alto, pergunto: para que serve uma Olimpíada e uma Paralimpíada no meio de uma pandemia? Corre-se o risco das pessoas não saberem distinguir se choram pelo pódio da filha ou do parente que veio a óbito no mesmo dia. Qual é a diferença na expressão desses choros? Como celebrar a excelência de um desempenho atlético diante do falecimento físico de uma pessoa próxima? E, pensando alto, como entender o orgulho de qualquer conquista diante da decadência moral de um país que tem um governo e uma (necro)política que deixam morrer?

Espero que valham de algo tais conquistas olímpicas/paraolímpicas, malditas desde já. Espero que ao olharem para trás e verem o lastro de desgraça e morte sobre o qual triunfaram, tais atletas consigam enxergar na medalha algo além do metal reluzente significativo. Apenas assim consigam entender que talvez não fossem merecedores do tal “sonho”, pois foi algo conquistado sobre cadáveres – e oriundos de seu próprio país e de suas próprias famílias.

Nesse instante, o mundo não vive seu melhor momento de lucidez. Muita coisa está fora de ordem, talvez num dos níveis mais críticos da história da humanidade. Apesar de estudar o fenômeno esportivo, ter participado de três edições de Jogos Paralímpicos e entender o que um evento como esse significa, sou terminantemente contra a realização dos Jogos de Tóquio 2020. Aliás, como me expressei em outros textos, desde ano passado:

Tóquio 2020, o COVID-19 e as vidas que valem a pena

Olimpíadas da Discórdia: Tóquio 2020 e(m) tempos pandêmicos

Tóquio 2020: entre teimosias, tradições e inovações

Por isso digo que a resposta para a questão-título deste texto só vai ser conhecida depois, daqui alguns anos, e de modo particular para quem destes eventos participou. Desejo, portanto, que o fardo não seja tão pesado quanto eu penso que ele será e que gerações futuras consigam entender melhor (e mais aprofundadamente), de fato, quanto vale um pódio olímpico/paralímpico.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Quanto vale um pódio olímpico?. Ludopédio, São Paulo, v. 143, n. 2, 2021.
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