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A quebra da tradição: a invencibilidade de um eterno perdedor

A identificação de um torcedor com o seu time de futebol pode se dar de várias formas, uma vez que pode ser vista como dependente da influência de diferentes fatores. Uma campanha vitoriosa, um time marcante, um grande craque, a influência da família e muitos outros elementos são comumente imaginados como ponto de partida da paixão futebolística. Nesse sentido, alguns autores que se dedicam a estudar o assunto pontuam que o pertencimento a uma torcida é muito mais uma questão afetiva (frequentemente mediada na infância por relações familiares) do que uma relação institucional entre um clube e seus sócios (GASTALDO, 2003).

Na medida em que é visto como uma questão afetiva, o torcer por um clube de futebol ganha uma dimensão que extrapola os limites do simples apreço por uma agremiação e começa a estabelecer relações com as identidades de cada pessoa. Assim, não é raro encontrar pessoas que se vangloriam dos feitos do seu time, se colocando numa posição privilegiada em discussões com torcedores adversários por se imaginarem detentoras das conquistas obtidas pela equipe para a qual torcem. Não por acaso expressões como “Sou campeão de tudo”, “Sou do tempo daquele timaço de 73”, “Quando nós tínhamos aquele camisa 10, não tinha pra ninguém”, “Lembra daquela goleada em cima do seu time?!”,  fazem parte do cotidiano dos amantes do futebol.

No entanto, como toda regra tem sua exceção, a situação descrita acima não se aplica de forma integral à realidade. Uma prova viva disso pode ser encontrada na cidade de Paulista, situada na região metropolitana do Recife e habitada por cerca de 300 mil pessoas. A referida cidade ficou conhecida por abrigar o Íbis Sport Club, time que ganhou projeção nacional e internacional ao entrar no Guinness Book – Livro dos Recordes – com a honrosa classificação de “pior time do mundo”.

Fundado em 1938 como forma de entretenimento para os trabalhadores da Tecelagem de Seda e Algodão de Pernambuco (TSAP), o Íbis ficou conhecido a partir do início da década de 1980 devido aos resultados obtidos nos gramados, os quais deram vida a uma extensa lista de insucessos. Naquele período o time ficou três anos e onze meses sem uma vitória sequer, tendo entrado em campo 55 vezes e acumulado 48 derrotas. Para além dessa época, outros números marcantes acompanham a trajetória do Íbis: sua 100ª vitória em jogos oficiais só ocorreu aos 61 anos de idade e, segundo um levantamento realizado em 2005, em 1064 jogos disputados, o Íbis conseguiu a proeza de vencer apenas 137, empatar 145 e perder os demais 782.

Se dentro de campo as coisas não costumam caminhar muito bem para o Íbis, é possível dizer que a vocação desse clube possa ser encontrada no folclore. O “Pássaro Preto”, como também é chamado, tem como maior ídolo um jogador-cabeleireiro conhecido como Mauro Shampoo, meia do clube entre os anos de 1980 e 1990. Esse jogador símbolo é notável, além da bela cabeleira, pelo fato de ter marcado apenas 1 gol envergando a camisa rubro-negra. A sua popularidade que pode ser vista em manifestações tanto nos jogos da equipe, quanto nas ruas da cidade, rompeu fronteiras ao ser celebrado por Oswaldo Montenegro, no álbum “A partir de agora”, que trouxe a público a canção “A Incrível História De Mauro Shampoo”, onde uma ode ao sucesso do fracasso futebolístico do clube (e de seu principal jogador) também é evidenciada:

“[…] Mas o anti-craque dessas lidas

No intervalo das partidas

Só porque Deus acode

Pega a tesoura, pente, escova, creme rinse

Mãos de fada, olho de lince

Faz cabelo e bigode

Meio pereba, artista, herói, cabeleireiro

Mete a bola no cabelo que o cabelo sacode

Mauro Shampoo faz do vexame uma festança

E avisa toda a vizinhança

Olha hoje à noite: pagode!

E agradecido a Deus por tudo conquistado

pelo gol nunca alcançado

É feliz como pode”

ibis
O “Pássaro Preto”.

No dia 17 de setembro de 2017, porém, iniciou-se uma jornada singular na história do Íbis. Após dois anos sem vencer um jogo sequer, o pior time do mundo inaugurou uma sequência de 3 vitórias seguidas, que culminou na ocorrência de uma invencibilidade que durou 6 jogos na série A2 do Campeonato Estadual de Pernambuco. Tal acontecimento colocou o clube na mídia por uma razão nunca antes imaginada: a revolta pela boa fase da equipe.

A insatisfação dos torcedores teve início após a vitória do Íbis por 1×0 sobre o Vera Cruz, pela primeira rodada do referido torneio estadual. Terminada a partida, no Twitter oficial do clube (@ibismania) foi veiculada uma imagem de pichação de um muro com os seguintes dizeres: “ACOBOU A PAZ” (sic), onde, de forma bem humorada, era simulado um protesto no muro da casa do presidente do Íbis, em decorrência da revolta de seus adeptos pela vitória alcançada.

Se uma certa tensão já podia ser observada após essa primeira vitória, o clima entre o Íbis e seus torcedores foi piorando com o passar do tempo. Findado o jogo que decretou o acúmulo de 3 êxitos consecutivos, a situação rompeu a esfera da Séria A2 pernambucana e ganhou projeção nacional e internacional. A invencibilidade e a liderança no campeonato colocaram o clube em evidência em mídias televisivas, impressas e digitais. Superesportes PE, Gazeta do Povo, Jornal O Globo, Fox Sports Brasil, UOL Esportes, AQUI PE, Goal Itália, Estadão, globoesporte.com, Sportv, foram alguns dos veículos a retratar o assombroso acontecimento.

Ainda na onda da terceira vitória veio a imagem mais marcante de todo o processo, no dia 26 de setembro. Divulgada pelo Twitter oficial do clube, a imagem mostrava torcedores “protestando” contra um time vencedor, segurando cartazes com palavras de ordem. Apesar de composto por apenas dois torcedores, esse não era um protesto qualquer, uma vez que mostrava, entre os torcedores insatisfeitos, o grande ídolo Mauro Shampoo.

ibisprotesto
“Queremos derrotas”. Foto: Íbis Sport Club/Twitter.

Como toda tempestade chega ao fim, no dia 15 de outubro de 2017, a tranquilidade foi novamente estabelecida entre os torcedores do Íbis e seu clube. Nesse dia, a fase vitoriosa e invicta da equipe chegou ao fim, através de uma derrota sofrida dentro de casa para a equipe do Cabense, pelo placar de 0x2. Apesar disso, a evidência do processo não foi apagada e, mesmo findada a série invicta, o Íbis continuou a ser notícia mundo afora.

Tendo em vista os fatos narrados, é possível perceber a presença de diferentes temas passíveis de serem discutidos numa ótica de interpretação do futebol como tema de interesse das ciências sociais. Mais do que contar essa história de forma bem humorada, o presente texto busca dar luz a reflexões importantes sobre o universo desse esporte, as quais envolvem aspectos como o torcer, a tradição, a identidade e a mídia. Assim, a repercussão desencadeada pela campanha do Íbis pode ser analisada por diferentes óticas, algumas das quais serão discutidos a seguir.

Como mostrado anteriormente, o Íbis e seus torcedores não se enquadram no imaginário mais comum das motivações que originam as paixões concernentes à relação entre torcedor e time de futebol. Quando imaginamos o Íbis, o que vem à nossa mente está diretamente ligado ao folclore no qual o clube foi imerso, o qual foi construído às custas de muitos maus resultados, unida à apropriação positiva dos insucessos por parte de seus torcedores, que se orgulham dessa tradição de time perdedor. Esse processo, assim como todos aqueles que remontam à criação de elementos distintivos vinculados à identidade de um clube de futebol, se encaixa no contexto de formação de “tradições inventadas”. Estas, por sua vez, representam um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado (HOBSBAWM, 1984).

Desse modo, é possível dizer que enquanto muitos clubes reivindicam para si status de “clube campeão”, “clube popular”, “clube lutador”, dentre outros rótulos que são entoados por seus torcedores – e que remetem a valores dotados de conotação positiva dentro da sociedade -, o Íbis realiza exatamente o oposto, ao valorizar e defender sua história como “clube perdedor”. Apesar disso, em ambos os casos, nota-se a presença da tentativa permanente de fazer com que o presente mantenha a escrita da tradição construída no passado, a qual foi formada através do tempo e tornou-se parte de uma identidade que une os torcedores de uma mesma equipe.

A presença da tradição representa, portanto, um elemento considerável para o forte elo existente entre um torcedor de futebol e seu clube, independentemente de qual seja a natureza dessa tradição. Assim, na relação entre torcedor e clube encontramos vinculações diferentes de outras que são comumente estabelecidas dentro de nossa sociedade. Um consumidor que fica insatisfeito com um tipo de sabão em pó, ou tem uma experiência desastrosa com um restaurante ou com um pacote turístico pode, simplesmente, trocar de marca ou não se relacionar novamente com a empresa que lhe proporcionou a experiência desagradável. Já o torcedor, quando está insatisfeito com o seu clube, desmotivado de ir ao estádio, descrente da possibilidade do time ter algum resultado positivo, ou de dar sequência à tradição que ajudou a construir a ligação que o levou a torcer para ele, o que faz? Mantém-se leal ao seu time (ESPARTEL, NETO e POMPIANI, 2009). E, como visto no caso em estudo, às vezes até toma parte no processo de retomada da tradição.

E não só isso! Algumas vezes, como no caso relatado sobre o Íbis, o sentimento de identificação com a tradição é tão forte que os torcedores chegam até a tomar parte em um processo que busca a “retomada” da história de seu clube. Assim, a ocorrência de fatos que poderiam colocar em curso uma “descontinuidade” no folclore do “pior time do mundo”, promoveu uma onda de “protestos” que, mesmo bem humorados, foram reveladores da existência de uma identificação entre os torcedores do Íbis e a tradição de derrotas do clube.

No entanto, outro fato sobre esse movimento merece ser problematizado. Tal questão diz respeito à apropriação de conceitos e práticas hegemônicas por parte de pessoas que, geralmente, são colocadas à margem do processo, por não possuírem acesso a elementos socialmente valorizados. Assim, observamos no caso do Íbis um misto entre um descontentamento (aparentemente falso) e uma alegria pela equipe estar finalmente obtendo as vitórias tão valorizadas no futebol e na sociedade. Mais do que isso: em muitos casos, o Twitter oficial da equipe e seus torcedores tomaram para si o papel de hegemônicos para reforçar, de forma bem humorada, o estado vitorioso do Íbis perante adversários. Exemplo disso foi expresso nas redes sociais do clube que retrataram o orgulho de ser “o único clube ainda invicto no Brasil” – em uma postagem fazendo referência ao fato de o Corinthians não estar mais invicto no Campeonato Brasileiro da série A.

No que diz respeito à própria identidade dos torcedores, os elementos trazidos à discussão trazem aspectos reveladores de nossa realidade social atual. A ambiguidade de sentimentos representada pela insatisfação e pela alegria relacionadas à fase vitoriosa do Íbis mostra, como proposto por Hall (2015), uma fragmentação das identidades dos sujeitos “pós-modernos”, a qual estaria vinculada à transformação das sociedades modernas no final do século XX. Aliado a isso, aparecem as mídias sociais, com seu poder de dar luz e voz aos embates relacionados à identidade torcedora vinculada ao Íbis.

Tamanho foi o sucesso do fato, que ele acabou tomando uma esfera midiática superior às redes sociais do clube e de seus torcedores. Esse rompimento de fronteiras mostrou o contrário do que normalmente acontece em relação ao interesse futebolístico no Brasil, fortemente marcado pela regionalidade decorrente da vinculação afetiva (GASTALDO, 2003). Com a sua improvável sequência de bons resultados, o Íbis, clube regionalizado, passou a ser assunto de interesse de amantes e profissionais do futebol no Brasil e mundo afora, mesmo que essa atenção não tenha configurado uma relação de torcer pelo clube.

Notamos, por fim, que nem só de vitórias é construída a relevância de um clube de futebol, que diferentes são os fatores de identificação dos torcedores para com um clube e que diversos são os fatores que podem o levar a ser objeto de interesse do público e da mídia. Ao longo de sua história, o Íbis Sport Club mostrou que, independente dos bons resultados, a tradição construída de ser o “pior time do mundo” deu e sempre vai dar o que falar. Ser considerado o pior, de fato, lhe coloca na condição de melhor time do mundo quando o quesito é ser o pior!

GASTALDO, Édison. A Pátria na “imprensa de chuteiras”: futebol, mídia e identidades brasileiras. In: ANPOCS – Associação Nacional em Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, XXVII, Caxambú. Encontro Anual da ANPOCS, ANPOCS – Associação Nacional em Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, 2003.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 12ª edição, Lamparina, 2015.

HOBSBAWM, Eric. Introdução: a invenção das tradições. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 9-23, 1984.

ESPARTEL, Lélis Balestrin; NETO, Hugo Fridolino Müller; POMPIANI, Ana Emília Mallmann. “Amar é ser fiel a quem nos trai”: a relação do torcedor com seu time de futebol. Organizações & Sociedade, Universidade Federal da Bahia, Salvador. vol. 16, núm. 48, jan-mar, p. 59-80, 2009.

TWITTER. @ibismania https://twitter.com/ibismania

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Mateus Alexandre Silva

Licenciado em Educação Física pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) e membro do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT).

Mauro Lúcio Maciel Júnior

Bacharel em Educação Física - UFMG; Mestrando em Estudos do Lazer - UFMG; Membro do GEFuT - UFMG; Membro do Oricolé - UFMG; Editor Júnior da Revista Licere - UFMG.

Como citar

SILVA, Mateus Alexandre; MACIEL JúNIOR, Mauro Lúcio. A quebra da tradição: a invencibilidade de um eterno perdedor. Ludopédio, São Paulo, v. 101, n. 15, 2017.
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