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Porque não! Racismo na infância e os porquês de não expor nas redes as situações de violência

Marcia Eurico, Roberta Pereira da Silva 22 de janeiro de 2021

Chegamos ao terceiro texto da série e a necessidade do debate sobre o racismo está posta. Júlia Belas, no segundo texto, nos trouxe considerações de suma importância quanto ao futebol de mulheres e o “apagamento” das narrativas de mulheres negras e sua atuação no futebol brasileiro. Não por coincidência os textos até aqui foram escritos por mulheres, e assim a série segue. Desta vez o destaque é para o racismo na infância. E nada melhor que o mês de janeiro para expor a temática e apresentar a vocês uma aproximação ao tema e seus rebatimentos no futebol, uma vez que, desde 1969, é neste mês que ocorre a Copa São Paulo de Futebol Júnior, conhecida popularmente como Copinha, organizada desde 1988 pela Federação Paulista de Futebol (FPF).

Atualmente[1] a copa ocorre com cerca de 128 times de vários estados do país, divididos em 32 grupos, com jogadores de idade entre 15 e 19 anos. Disputando mais que uma taça, os mais de 1400 adolescentes e jovens buscam o reconhecimento de seu “talento” para figurar entre os principais jogadores do futebol profissional. Habilidade, raça, dedicação e esperança expostos em uma vitrine.

Ao longo dos anos, a competição tem despertado furor entre os adolescentes e jovens. Nas rápidas entrevistas pós-jogo, as frases prontas expressam a crença que aquele campeonato é o maior e talvez a única chance de se tornarem jogadores profissionais. É evidente que pode aparecer, vez ou outra, um jogador que se destaque e desperte o interesse dos clubes de “elite”, entretanto é de senso comum que no futebol há uma bem estabelecida lógica de comércio “humano” – venda e compra de jogadores – via empresários(as), clubes empresas, “escolinhas”, bem como de contratos “educacionais” celebrados entre os clubes e crianças com menos de dez anos, além de outros subterfúgios de acesso à carreira de jogador profissional.

Por motivos óbvios, ou nem tanto assim, devido à pandemia de COVID-19, a FPF adiou a competição. Não obstante, é fácil puxar à memória as diversas histórias de “superação” contadas na cobertura jornalística do campeonato. E é também sobre esse ponto que o texto se refere. A exposição sem filtro das histórias de sofrimento, violência, fome e pobreza de crianças e adolescentes, apresentadas como superação e não como violação de direitos, aí incluído o racismo, nos leva a questionar se esse tipo de narrativa auxilia a superação das expressões da questão social ou se destina, apenas, a dissociar as situações de pobreza do modo como a concentração de renda no país e no mundo ocidental é racialmente organizada. As narrativas expressam dores viscerais, mas as lágrimas, inevitáveis, secam na mesma velocidade em que as histórias somem de nossa memória.

A cada edição da Copinha, atualizam-se imagens e vídeos reproduzidos de jogadores adolescentes chorando por equívocos e/ou derrotas em partidas eliminatórias ou não, expondo-os sem a devida reflexão. Foto: Reprodução/SporTV.

Nos parece que, assim como as lágrimas e as histórias, o sensacionalismo afeta nossos compromissos com a infância e adolescência, visto que tomadas pela emoção momentânea as pessoas tendem a perder o senso crítico acerca das razões que dão sustentação àquele cotidiano de reprodução constante de miserabilidade. A situação a que estão expostas nossas crianças e adolescentes tem relação direta com as péssimas condições de vida da classe trabalhadora brasileira, em seus extratos mais empobrecidos e majoritariamente negro, feminino e periférico. As mulheres negras têm papel central na provisão de seus grupos familiares. A omissão quanto às intersecções entre classe social, gênero e raça na produção da desigualdade social nos condiciona a naturalizar a violação de direitos humanos de crianças e adolescentes pobres, em sua maioria negros, e a valorizar a ideia de que o acesso a condições de vida decentes passa, necessariamente, pela possibilidade de se tornar jogador de futebol profissional.

A exposição das situações de violência, apresentadas de maneira emocionalmente apelativa, não ocorre apenas no futebol, é algo comum até mesmo entre os “defensores” dos direitos da criança e do adolescente. As contínuas mortes violentas de crianças e adolescentes negras e negros por ações do Estado, via força de segurança pública, produzem “material” para postagens diárias nas mídias digitais. Um viral de indignação, com o prazo de esquecimento programado, toma conta das diversas redes sociais. A repetição da imagem de crianças vítimas de violência, em tese, funcionaria como denúncia, mas, no entanto, pouco, ou nada, alteram a realidade, promovendo, apenas, uma falsa consciência de dever cumprido. O protesto online está feito e o “feed” devidamente atualizado. Porém, na próxima semana teremos mais uma vez a notícia trágica de crianças negras mortas de forma violenta.  

Recentemente foi veiculado nas redes sociais o vídeo de uma criança de 11 anos aos prantos após ter sofrido racismo por parte do treinador do time adversário. O jogo ocorria pela Caldas Cup, na cidade de Caldas Novas – Goiás. Rapidamente as pessoas se “mobilizaram” diante da situação vexatória a qual o menino foi submetido e o vídeo foi repostado centena de vezes. É preciso advertir o quanto a reiterada exposição daquela imagem (e de tantas outras) retira da pessoa que sofreu a discriminação o direito à privacidade, à intimidade. Tal tentativa de desnaturalizar as práticas racistas acaba por desumanizar a pessoa que foi atingida por essa ideologia nefasta, porque quando a imagem se autonomiza surge uma infinidade de atribuições de valores, positivos ou negativos, que sobreviverão ao tempo e dificultarão que crianças como esta possam refletir sobre os impactos deste ato em seu cotidiano e ressignificá-lo conforme suas vivências. Em se tratando da nossa história, da nossa privacidade, o quanto somos favoráveis à exposição das nossas dores nas redes sociais?

Luiz Eduardo e família posam para foto com Marinho, do Santos. Foto: Ivan Storti/Santos FC.

Na maioria das legendas o ponto central era que o racismo é grave, mas é inadmissível na infância. Apesar da escassa produção sobre o os impactos do racismo na infância, já se pode afirmar que sim existe racismo na infância, e os casos são mais comuns do que se imagina. Além disso, práticas racistas contra os adultos têm consequências no desenvolvimento das crianças e adolescentes do grupo familiar.

Consensualmente se convencionou nomear como maus-tratos a negligência e o abandono cometido por membros do grupo familiar, porém, a medida da violência é moral, dependendo de quem é objetivamente a criança e/ou adolescente. Poucos estudos têm se debruçado sobre outra forma de violência, que é o racismo e a discriminação étnico-racial na infância, por vezes, nomeada como bullying, o que justifica a falta de um tratamento específico da questão. Racismo e bullying não são sinônimos, ainda que expressem, em medidas diferentes, a violência naturalizada nas relações sociais.[2]

O público que se envolve virtualmente nestas “denúncias” anseia que pessoas públicas venham a campo se manifestar. No caso explicitado acima, podemos exemplificar a atitude de jogadores, como Neymar, que demonstraram solidariedade e enviaram vídeos de apoio. Os times Santos, Fluminense e Vasco da Gama convidaram a criança a fazer testes/avaliações no início de 2021. Não é exagero salientar que a divulgação deste tipo de filantropia engaja e triplica o número de likes, além de reforçar uma falsa imagem de time “antirracista”.

Segundo reportagem publicada em 18 de dezembro de 2020 pelo portal G1[3], o representante do Uberlândia City registrou boletim de ocorrência e convocou os responsáveis para acompanhar a criança, já que a família reside no estado de Minas Gerais. A Liga Desportiva Região das Águas Thermais suspendeu temporariamente o técnico. A situação relatada pela criança pode revelar de que forma o treinador em questão atua no cotidiano de treinamento das crianças e adolescentes que estão sob sua responsabilidade. Compreendemos, portanto, que o afastamento do treinador das funções é fundamental, uma vez que as crianças que sofrem racismo dependem necessariamente do apoio dos adultos a sua volta. É comum pessoas relatarem situações de racismo na infância e o doloroso silêncio dos adultos frente à situação vivida, quando não são esses mesmos adultos os responsáveis pela prática racista. É importante salientar que o silêncio é cúmplice da violência e, no caso do racismo, será introjetado como verdade por esse menino. O ato é criminoso, mas permanecerá encoberto, porque ignorado por todos os presentes na cena. A certeza da impunidade oferece a segurança necessária para que o profissional desfira seu ódio étnico-racial sem constrangimento. Nunca será demasiado lembrar que o Brasil é signatário de tratados e convenções internacionais, além de possuir um sistema de proteção integral amparado na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente que considera a prática de racismo, para além da tipificação dos crimes raciais, também como forma de maus-tratos, caso praticado em uma relação de guarda, vigilância ou autoridade.

O texto em tela não pretende discutir as diversas violações de direitos ocorridas nas categorias de base, tão bem explicitadas pelo jornalista Breiller Pires[4], mas gostaríamos de pontuar a lógica competitiva que opera neste espaço e, tendo em vista que lhe foi oferecida possibilidade de realizar teste para ingresso nas categorias de base de clubes profissionais, algumas questões devem ser evidenciadas. Tais questões só poderão vir à tona se afastarmos um pouco a emoção fast-food, o alívio momentâneo, já que o problema foi “resolvido”.

A pressão que se coloca sobre crianças nas categorias de base permanece ignorada. E tão logo, caso seja aprovado no referido teste, a responsabilidade do fracasso/vitória recairá, também, sobre o menino. Questões como a adaptação ou não às rotinas, cobranças e regras impostas ou, ainda, uma eventual falta da qualidade técnica necessária são cruciais para a entrada e a permanência nas categorias de base, desse e de inúmeras outras crianças e adolescentes que diariamente realizam testes. Devemos lembrar também que, por vezes, crianças e adolescentes são expostas a situações que caracterizariam assédio moral, como já dissemos anteriormente:

Em se tratando do menino negro e pobre o futebol aparece como talvez a única possibilidade de garantir o seu futuro e de seus familiares. Neste sentido os tornam extremamente vulneráveis as diversas situações de violação de direitos fundamentais entre elas o racismo, pois não se medirá esforço para alcançar o “sonho”. […] Como qualquer outra atividade profissional as características individuais são valoradas em detrimento das reais condições postas para o “sucesso” na profissão. No caso do futebol esta condição é acirrada, pois não só quem o pratica defende este discurso, mas também os veículos de comunicação reforçam o discurso do esforço e da superação. […] Um primeiro indicador é a negação das características que compõe a infância e adolescência. Lhes é exigido esforço, responsabilidade, dedicação, cumprimento de várias horas de treino, cumprimento de contrato de trabalho, entre outras condicionalidades incompatíveis com sua condição de sujeito de direitos e pessoa em situação peculiar de desenvolvimento.[5]

Tal reflexão se faz necessária porque, no frigir dos ovos, apenas foram colocadas “resoluções” rápidas, que estancam o sangue, mas não curam a lesão. Não se discute o racismo, não há debate sobre as causas da situação que comoveu o clube e fez com que aquela possibilidade lhe fosse ofertada, como se o seu ingresso nas categorias de base do clube fosse uma blindagem contra o racismo sofrido ou que possa vir a sofrer. Dito de outra forma, na ânsia de apresentar respostas ao incômodo gerado são apresentadas soluções superficiais, de modo que, novamente, a meritocracia é colocada como mecanismo de superação do racismo. Neste ponto, importante é a análise que faz Clóvis Moura:

Esquecem-se que esses segmentos populacionais eram componentes de uma estrutura escravista, inicialmente, e de capitalismo dependente, em seguida. Com essas duas realidades estruturais durante o transcurso da nossa história social foram criados mecanismos ideológicos de barragem aos diversos segmentos discriminados. Porém, na maioria dos estudos sobre o assunto, esses mecanismos não são avaliados. Pelo contrário. É como se houvesse um fluir idílico, sem nenhum entrave à evolução individual senão aquele que a capacidade de cada um exprimisse.[6]

A discussão do racismo nesse caso específico foi totalmente diluída e precisa ser apreendida por nós. O que devemos considerar é que o racismo estrutural é devastador e as crianças são afetadas de maneira ininterrupta pela ausência de políticas públicas eficazes, como pode ser visto nas áreas da educação, habitação, segurança alimentar, saúde, cultura e lazer e esporte. Além de todas essas condições estruturais, a vivência cotidiana de ataques racistas e preconceituosos protagonizados por pessoas que têm algum nível de poder sobre estas crianças pode produzir danos a longo prazo.

A vida de crianças e adolescentes negros no Brasil tem sido historicamente negligenciada à medida que a herança colonial, erigida sobre a ideia da superioridade branca europeia e a inferioridade negra e indígena desde o século XVI, se reorganiza no pós-abolição, com a constante desqualificação destes grupos étnico-raciais. Neste sentido, consideramos que a suposta inclusão em um clube de primeira divisão não seria a solução para a violência vivida e situações como esta devem nos conduzir a um debate ampliado sobre o que é prover proteção e propiciar projeções de outras possibilidades de futuro.

Fazendo apenas um exercício de abstração, não teria mais impacto se alguns dos jogadores que enviaram vídeo ou qualquer um que tenha se indignado com o fato, oferecesse bolsa de estudos até o final do ensino superior? Ou que os clubes que de forma tão solícita ofereceram o teste iniciassem ações de formação de combate ao racismo com todos os profissionais envolvidos com as categorias de base?


Notas

[1] FEDERAÇÃO PAULISTA DE FUTEBOL. Regulamento Específico da Copa São Paulo de Futebol Junior de 2019. São Paulo: FPF, 2019. Acesso em: 17 jan. 2021.

[2] EURICO, Márcia Campos. Racismo na Infância. São Paulo: Cortez, 2020, p. 28.

[3] SANTANA, Vitor. Menino diz que foi vítima de racismo durante campeonato de futebol em Caldas Novas: “Fecha o preto”. G1 GO, 18 dez. 2020. Acesso em: 17 jan. 2021.

[4] PIRES, Breiller. O lado sombrio da bola. Placar, São Paulo, ed. 1377, p. 41-47, abr. 2013. PIRES, Breiller. Abuso sexual e tráfico de criança ainda assombram o futebol brasileiro. Vice, set. 2016. Ambos os textos foram acessados em: 17 jan. 2021.

[5] SILVA, Roberta Pereira. Meu guri continua sem proteção. Observatório da Discriminação Racial no Futebol, 2019. Acesso em: 17 jan. 2021.

[6] MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2019.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Márcia Campos Eurico

Mestre e Doutora em Serviço Social - PUC/SP. Atualmente Professora Adjunta Curso Serviço Social (Graduação e Pós-Graduação) - UNIFESP Baixada Santista. Assistente social no Instituto Nacional de Seguridade Social - INSS (2012 - 2020). Docente no Curso de Serviço Social e na Pós Graduação da Faculdade Paulista de Serviço Social - FAPSS/SP (2014 - 2020). Professora Substituta no Curso de Graduação em Serviço Social da PUC/SP (2018 - 2018).  Autora do livro Racismo e Infância - Editora Cortez, 2020  e de vários artigos sobre racismo institucional.

Roberta Pereira da Silva

Pesquisadora sobre futebol de várzea e racismo no futebol. Doutoranda pela PUC SPSantista e metida a poeta nas horas vagas.

Como citar

EURICO, Marcia; SILVA, Roberta Pereira da. Porque não! Racismo na infância e os porquês de não expor nas redes as situações de violência. Ludopédio, São Paulo, v. 139, n. 40, 2021.
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