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Rodrigo Caio, ou o “Alienista”

José Carlos Marques 10 de maio de 2017

Em 1882, o escritor Machado de Assis publicava o conto “O Alienista”, narrativa incluída no volume de textos intitulado Papéis Avulsos. A história girava em torno do Dr. Simão Bacamarte, “o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas”. Dedicado aos estudos da psiquiatria, o Dr. Bacamarte construíra na cidade de Itaguaí a chamada “Casa Verde” – um manicômio destinado a abrigar os loucos das redondezas e arredores.

De início, o douto doutor começou a internar todo e qualquer indivíduo que possuísse algum tipo de comportamento desviante. Não tardou para que a Casa Verde começasse a ficar abarrotada de gente, proveniente dos povoados próximos: “De todas as vilas e arraiais vizinhos afluíam loucos à Casa Verde. Eram furiosos, eram mansos, eram monomaníacos, era toda a família dos deserdados do espírito. Ao cabo de quatro meses, a Casa Verde era uma povoação. Não bastaram os primeiros cubículos; mandou-se anexar uma galeria de mais trinta e sete”.

[Os próximos dois parágrafos trazem “spoilers” sobre a obra. Os que não quiserem ter acesso a estas informações devem pular o trecho a seguir.]

Em pouco tempo, a cidade de Itaguaí contava com 75% de sua população internada no manicômio. Essa inversão quantitativa acendeu o alerta na mente do Dr. Bacamarte: se os comportamentos desviantes – os quais não obedeciam a um padrão – eram a imensa maioria, então dementes eram aqueles que mantinham alguma firmeza de caráter e total regularidade em seus atos. O médico resolve, portanto, libertar os indivíduos enclausurados e encarcera os restantes, que estavam do lado de fora. Não tardou para que o Dr. Bacamarte percebesse que sua teoria estava mais uma vez equivocada e mandasse libertar os presos novamente. E mais: o médico descobre que ele próprio era o único indivíduo que possuía uma mente perfeita. Ele conclui ser o único cidadão anormal da região e decide-se pela auto-internação na Casa Verde.

Após algum tempo, o Dr. Simão Bacamarte percebe que sua teoria mais uma vez está incorreta e manda soltar todos os internos novamente. Como ninguém tinha uma personalidade perfeita, exceto ele próprio, o alienista conclui ser o único indivíduo anormal da região, o único com desvio de caráter. Assim, ele decide internar-se sozinho na Casa Verde em busca da cura. Vem a falecer dezessete meses depois.

O episódio que envolveu o jogador Rodrigo Caio, do São Paulo, e o atacante Jô , do Corinthians, em clássico realizado no último domingo de Páscoa (16 de abril) e válido pelo Campeonato Paulista de 2017, é um exemplo bem acabado da inversão de valores que caracteriza o futebol e o comportamento dos atletas, nomeadamente no Brasil. Rememoremos o lance: 39 minutos de jogo, o goleiro Renan Ribeiro do São Paulo sai de sua baliza para interceptar uma bola dentro de sua grande área e é tocado na perna pelo colega de equipe, Rodrigo Caio. [O vídeo deste lance pode ser conferido em: http://globoesporte.globo.com/futebol/times/sao-paulo/noticia/rodrigo-caio-se-denuncia-a-juiz-que-tira-cartao-de-jo-no-classico-paulista.ghtml].

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Rodrigo Caio em treino da seleção brasileira. O técnico Tite elogiou sua atitude. Foto: Pedro Martins/Mowa Press.

Luiz Flávio de Oliveira, árbitro da partida, entende que o atacante Jô havia atingido o goleiro adversário de forma voluntária e adverte o jogador corintiano com o cartão amarelo (a punição tiraria Jô da partida seguinte, o jogo de volta contra o mesmo São Paulo). Percebendo que a arbitragem estava cometendo uma injustiça, Rodrigo Caio assume a autoria do ato e afirma ao juiz que fora ele próprio que havia atingido seu colega de time. Luiz Flávio cancela o cartão amarelo e agradece a honestidade do jogador são-paulino.

O que deveria ser motivo de aplauso e regozijo por parte de toda a comunidade boleira do país logo se revelou pelo avesso: no intervalo da partida, que o Corinthians já vencia por 2 x 0, relatos dão conta de que os próprios colegas de Rodrigo Caio mostraram-se contrariados com tamanha demonstração de probidade, incluindo-se aí o capitão da equipe – Maicon – e até o neófito treinador, Rogério Ceni. A retidão do são-paulino não tardou a receber aprovação por parte de alguns e reprovação por parte de muitos. Torcedores do próprio Tricolor dividiram-se entre o apoio ao fair play do atleta e o repúdio à sua ingenuidade.

O mais surpreendente viria nas semanas seguintes, quando jogadores de diferentes equipes passaram a ser indagados sobre o ato de Rodrigo Caio. A despeito da sinceridade dos relatos, a maior parte deles reconheceu que talvez não fosse capaz de repetir tal atitude. Afinal de contas, é melhor ver a mãe dos outros chorar do que ver a própria mãe, como referiu o já citado Maicon.

O que deveria ser algo absolutamente normal – a retidão de comportamento de atletas em campo – passa, no futebol brasileiro, a ser algo que denota inocência, candura, burrice. Parte de nossa tradição cultural na literatura, na música popular, no cinema, no teatro etc. procura valorizar a figura do malandro, aquele que se comporta macunaimicamente como um “herói sem nenhum caráter”. Afinal de contas, malandro é malandro e Mané é Mané. Esse comportamento de irreverência e insubordinação diante das normas denota claramente nossa condição de povo subjugado pela matriz colonial – daí que a malandragem tenha sempre representado uma forma de dar volta ao poder instituído.

Para o historiador holandês Johan Huizinga, porém, “a civilização sempre será um jogo governado por certas regras, e a verdadeira civilização sempre exigirá o espírito esportivo, a capacidade de fair-play. O fair-play é simplesmente a boa fé expressa em termos lúdicos.” Caso os atletas demonstrassem fair play dentro de campo, o trabalho da arbitragem ficaria por deveras facilitado, e todos dariam as mãos de forma fraternal ao final das partidas. Mas, obviamente, a vida real não é assim.

Se o Dr. Bacamarte saísse da ficção de Itaguaí do conto machadiano e caísse de paraquedas no nosso mundo contemporâneo, seria provável que ele começasse a internar na Casa Verde todos aqueles que mostrassem desvio de caráter e de comportamento – ou seja, aqueles que não respeitassem a ideia do fair play esportivo, que no fundo significa ser fiel e leal ao adversário e às regras. Entretanto, não tardaria para que o médico percebesse que sua teoria estava equivocada, já que a falta de fair play seria a regra, e não a exceção.

Não deveria demorar muito tempo também para que todos os dementes fossem libertados e para que Rodrigo Caio se internasse no manicômio, em busca de um tratamento que proporcionasse a cura do alienista.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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José Carlos Marques

José Carlos Marques é Docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista (Unesp/Bauru) e integra o Departamento de Ciências Humanas da mesma instituição. É Livre-Docente em Comunicação e Esporte pela Unesp, Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Licenciou-se em Letras (Português Francês) pela Universidade de São Paulo. É autor do livro O futebol em Nelson Rodrigues (São Paulo, Educ/Fapesp, 2000) e de diversos artigos em que discute as relações entre comunicação e esporte. É líder do GECEF (Grupo de Estudos em Comunicação Esportiva e Futebol) e integrante do LUDENS (Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol e modalidades Lúdicas).

Como citar

MARQUES, José Carlos. Rodrigo Caio, ou o “Alienista”. Ludopédio, São Paulo, v. 95, n. 13, 2017.
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