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Rússia 2018: porque a vida é um sopro!

Leandro Batista Cordeiro 27 de maio de 2021

Foi em Montes Claros, a capital cosmopolita do norte das Gerais, onde encontrei Sérgio Giglio pela primeira e única vez, algo que as esquinas de Minas permitem e nós, mineiros, celebramos dia após dia, afinal, como canta Vinícius, a vida é a arte do encontro. E esse festivo encontro ocorreu no Kentura Kent, um bar/restaurante especial, onde a carne de sol serenada é adorada pelos fiéis.

Nesse dia, Sérgio sugeriu que eu escrevesse algo para o Ludopédio, especificamente sobre minhas experiências em Copas do Mundo de Futebol. Ora, recusar um convite como esse seria como não aceitar uma convocação para disputar o clássico entre Cruzeiro x Atlético de final de ano, quando juntamos os amigos (e inimigos também) e vamos a campo para, em seguida, nos unir fraternalmente em volta de boas cervejas e um bom feijão tropeiro.

E hoje, após escrever algumas coisas sobre as Copas da Alemanha (2006), África do Sul (2010), Brasil (2014), chegamos à Rússia (2018), a copa dos Le Bleus.

Bem, conhecer a Rússia sempre foi um grande desejo, algo que muito me atraía, por inúmeros motivos. E poder viver tal experiência em uma Copa do Mundo de Futebol potencializou ainda mais tal desejo, de maneira especial porque se trata de um país enigmático, importante na história do ocidente e do oriente, de dimensões territoriais impressionantes, com fusos horários diversos, possuidor de uma arquitetura maravilhosa, capaz de fazer surgir grandes gênios ao longo do tempo, como Dostoiévski, Baryshnikov e Lênin, de construir cidades absurdamente belas, como São Petesburgo, e de nos brindar com as melhores vodcas do mundo. Enfim, a expectativa era de viver momentos inesquecíveis nesse mundial de seleções.

E foi inesquecível desde a partida de Belo Horizonte, quando por duas vezes nosso voo para São Paulo foi cancelado e, consequentemente, não foi possível embarcar para Moscou. Após longas e tensas buscas e negociações, minha esposa e companheira de viagem, Cláudia, encontrou um voo para Istambul e de lá para a capital russa. Definitivamente essa rápida passagem pela Turquia não estava em nosso script, mas acabou sendo de algum modo interessante, seja por estar pela primeira vez in loco na antiga Constantinopla, seja por perceber, em poucas horas, o quanto o genial Alex, ex-camisa 10 do Cruzeiro Esporte Clube, era adorado pelos torcedores do Fenerbahce, assim como pelo fato de ter assistido ao vivo, sentado em uma poltrona do avião, a um jogo da seleção brasileira de futebol (junto a muitos argentinos que estavam no voo). E, quando Neymar e Coutinho decidiram o jogo para o Brasil contra a Costa Rica, foi uma mistura de sensações na aeronave, afinal entre Brasil e Argentina há muito mais que nossa vã filosofia é capaz de entender!

Ainda na Turquia, presenciamos uma cena de filme no aeroporto Ataturk, quando vimos uma mochila preta, sem ninguém por perto, no centro de um corredor movimentado. Sinceramente, como bom mineiro, a desconfiança veio logo à mente, especialmente porque já assisti alguns filmes do gênero terror, ou mesmo com temáticas relacionadas ao terrorismo, e definitivamente não gostaria de fazer parte de um roteiro com esse mote. Enfim, passamos pela temerosa mochila e chegamos à área de alimentação, onde sentimos alguns cheiros e temperos pela primeira vez. Ufa! A mochila não explodiu, estávamos sãos e salvos, e loucos por experimentar algo da comida turca. E, mesmo não sendo o Grande Bazar de Istambul, de algum modo valeu a pena a experiência gastronômica na madrugada do aeroporto dessa histórica cidade. Mas só valeu a pena porque achamos um restaurante com comida típica, fora do esquema pré-fabricado da grande e massiva indústria do fast-food. 

Então, após algumas horas no aeroporto de Ataturk, rumamos para Moscou, com a expectativa de vivermos bons momentos no gigantesco país russo, mesmo que nossa capacidade de comunicação na língua russa se resumisse a no máximo 5 a 10 palavras ou expressões. Mas isso não seria de modo algum um grande empecilho, pois sabíamos que em uma Copa do Mundo de futebol as pessoas estão sempre abertas à comunicação, independentemente das suas origens e línguas. Ademais, como é sempre esperado em um mundial de seleções, os latino-americanos invadem o país sede, e nesse caso isso foi novamente comprovado, com um mar de colombianos, mexicanos, argentinos, peruanos e também brasileiros. Assim, com os latinos esparramados por todo canto de Moscou e das demais cidades-sede da Copa de 2018, isso permitiu boas conversas, ótimas risadas, muita música e infindáveis momentos etílicos.  

Durante o mundial assistimos cinco jogos em estádios, sendo quatro partidas da primeira fase (Bélgica x Tunísia, Inglaterra x Panamá, Portugal x Irã, Sérvia x Brasil) e um jogo das oitavas de final (Inglaterra x Colômbia). Outros jogos foram assistidos em bares e nas fan fests, locais propícios para uma boa prosa com outros torcedores.

Sempre digo o seguinte: pode ser que um jogo de Copa do Mundo não seja muito atrativo ao nível técnico-tático, em razão das seleções que irão se defrontar, mas mesmo assim a experiência é válida, por motivos que ultrapassam o jogo em si. Quanto a isso, cito o exemplo de Portugal x Irã, ocorrido na pequena cidade de Saransk. Não foi um jogo excepcional, mesmo que o Irã tenha jogado muito bem, quase enviando os portugueses de volta para Lisboa. O que marcou foi a festa iraniana nas ruas da cidade, com suas camisas verde e branco (e seus cantos) tomando conta de tudo quanto é lugar de Saransk.

E não há como não lembrar a nossa saga para chegar a Saransk. Estávamos em Nizhny Novgorod, para assistirmos a goleada da seleção inglesa sobre os panamenhos: 6 a 1 para o english team. De todo modo, fica a inesquecível lembrança do primeiro e único gol do Panamá em uma Copa do Mundo, marcado pelo veterano zagueiro Baloy, gol que causou uma festa vermelha e branca nas arquibancadas. Bem, após o jogo, tomamos algumas cervejas e dormimos em Novgorod, para no dia seguinte seguirmos viagem para Saransk.

A viagem, de aproximadamente 300 km, foi feita de ônibus, um ônibus que nunca esqueceremos, afinal nos proporcionou experiências peculiares, desde a compra da passagem na rodoviária, pelo fato de não haver lugar marcado, o motorista ser também o trocador, não possuir ar condicionado e nem banheiro, andar a uma velocidade média de 40-50 km/hora e parar a todo o momento, de vila em vila, cidadezinha a cidadezinha. Com isso, gastamos por volta de 7 horas para esse deslocamento. Enfim, parecia que estávamos percorrendo de cabo a rabo a transiberiana, em uma viagem sem fim e sob um calor infernal. Mas hoje, quando lanço a memória para dia 25 de Junho de 2018, não tenho dúvida de que os momentos vividos nunca serão esquecidos, afinal, estávamos vivendo (mesmo que de passagem) a Rússia em seu interior, como ela é verdadeiramente para os moradores locais, sem nenhum tipo de maquiagem por parte da FIFA. E isso, sem dúvida alguma, é algo que vale a pena ser vivido durante um mundial de seleções, ou seja, ter experiências que vão além do perímetro FIFA.

Copa 2018
Torcedores fazem festa no centro de Saransk, após o jogo Portugal x Irã

Outro aspecto que merece ser mencionado nesta pequena narrativa diz respeito à icônica Praça Vermelha, onde se encontra o Kremlin, a imponente e magistral Catedral de São Basílio, o Mausoléu de Lênin, o Museu Estatal de História, entre outros importantes monumentos e instituições históricas. Bem, durante o transcorrer da Copa de 2018, a Praça Vermelha foi se transformando no principal local de encontros e festas em Moscou, especialmente entre os torcedores, sejam nativos ou vindos de outros países. Nesse lugar, de grande tradição e representatividade para os russos, misturavam-se camisas e bandeiras das seleções nacionais, línguas, instrumentos musicais, infindáveis torcedores (e alguns cambistas também) e, como não podiam faltar, comidas típicas e boas cervejas. E essa festa no Kremlin ganhou corpo e muita intensidade durante o mundial, principalmente porque a seleção da casa foi muito bem até as quarta de finais, quando foi eliminada pela Croácia, após uma disputa de pênaltis que nunca será esquecida, talvez nem mesmo pelo próprio Lênin, que sentiu vibrações nunca vistas em seu mausoléu, vindas de todos os cantos e recantos desse gigantesco e maravilhoso país.

E como não lembrar também das estações de metrô da capital russa. Sem dúvida foi algo que nunca esquecerei, seja pela sua beleza arquitetônica, pela sua profundidade, em alguns casos, seja pela facilidade de transitar de um ponto a outro nesta grande cidade, seja porque se tornou ponto de encontro e festa entre os torcedores e, nesse caso, os cantos, danças e brincadeiras ocorriam no subsolo de Moscou, o qual foi invadido pela paixão futebolística, com destaque para os latino-americanos, que sempre oferecem algo de muito especial durante as Copas do Mundo.

Falando agora do futebol dentro da cancha, a minha expectativa era relativamente boa para o mundial, pois tínhamos boas seleções, como a Bélgica, França, Espanha, Croácia, Colômbia e Inglaterra, além das já tradicionais Alemanha, Uruguai, Brasil e Argentina.

E foi a seleção francesa que deu as cartas na Rússia, com um time que mesclava jogadores experientes com alguns jovens e talentosos atletas, em especial o imparável Mbappé, de apenas 19 anos. Um jogador que aglutina características dos grandes gênios do futebol: muita qualidade técnico-tática, invejável capacidade física e o desejo de vencer! Como não lembrar o que esse jovem fez contra nossos hermanos argentinos? Foi uma atuação avassaladora, digna de um curta metragem dos irmãos Lumiere.

Bem, para não dizer que não falei das flores, a seleção brasileira, assim como em 2014, careceu de uma equipe mais qualificada ao nível técnico-tático e, certamente, de líderes em campo, de jogadores tipo Dunga, Didi ou Ricardo Rocha, ou seja, que fossem capazes de chamar na chincha os demais jogadores da equipe e, enfim, liderá-los. Mas isso não aconteceu e Kevin De Bruyne (e a ótima seleção belga) nos mandaram de volta para casa, após um jogo muito forte, ao nível coletivo, por parte da seleção da Bélgica. Ora, mas é só um jogo de futebol, onde uma equipe deve ser eliminada, afinal, essas são as regras do jogo. Sim, é isso mesmo. Perder, ganhar ou empatar são verbos que conjugamos reiteradamente em nossa vida de adeptos futebolísticos. Mas o que não gostamos (na verdade desprezamos) é quando não entramos no jogo. As perguntas que ficam são as seguintes: não entramos porque os belgas não permitiram? Não entramos porque não tínhamos condições para tal? Ou mais uma vez não entramos porque já há algum tempo as regras do jogo são outras e, mesmo assim, continuamos a acreditar em Sassás Mutemas e na genialidade única do jogador brasileiro? Já se vão 19 anos do nosso último título mundial e, se em 2002 tivemos Ronaldo Fenômeno, Ronaldinho Gaúcho e Rivaldo juntos, em uma equipe muito bem organizada por Felipão, em 2018 tínhamos muito pouco para almejar o hexacampeonato… e vida que segue!

Copa 2018
Jogo entre Brasil e Sérvia, válido pela fase classificatória da Copa da Rússia 2018.

Bem, ainda dentro de campo, fica a lembrança do jogo mais bacana que vimos no mundial de 2018: a partida entre Inglaterra e Colômbia, pelas oitavas de final. E certamente a experiência desse jogo foi especial porque ficamos muito próximos aos torcedores ingleses, que estavam aglomerados em certo local da arquibancada, com um mar amarelo de colombianos ao seu redor, sonhando com uma vitória da sua ótima e competitiva seleção, mas que também enfrentava um bom e jovem time inglês. Resultado final? 1 a 1, com o zagueiro colombiano Mina fazendo o gol de empate já no final do jogo, aos 49 minutos do segundo tempo. Nesse momento choveu chopp nas arquibancadas do Spartak Stadium e bebemoramos muito com os hermanos sul-americanos. O jogo foi para a prorrogação e em seguida disputa de pênaltis. Ao final, os ingleses saíram vitoriosos, e assim ficava pelo caminho o sonho da forte geração colombiana. Mas outras Copas virão, muito chopp será derramado na arquibancada e certamente a festa dos colombianos será vista novamente. Pelo menos essa é a minha expectativa, pois uma Copa do Mundo sem a presença da Colômbia, México e Argentina é um mundial com menos festa, menos música, menos paixão!

E como já estamos na prorrogação deste breve texto, gostaria de encerrar dizendo que a Copa do Mundo de Futebol da Rússia 2018 me ofereceu, sem dúvida alguma, experiências inesquecíveis, talvez as melhores que tive em um mundial de seleções da FIFA. Por quê? Talvez pelo lugar em si, suas histórias, sua arquitetura, suas paisagens, mas especialmente em razão da gentileza e alegria do seu povo durante a Copa. Não foram poucas as vezes que os russos, das mais diversas idades e perfis, nos abordaram durante o mundial, com gestos afetuosos e carinhosos. Se essa é uma das magias propiciadas pelo futebol? Talvez sim, não tenho e nunca terei certezas quanto a isso. O que sei é que já começo a juntar as moedas para o Catar 2022.

Copa 2018
Pelas ruas da linda e inesquecível São Petesburgo.

Mas, e se a COVID-19 não permitir alçar voo para Doha em Novembro do próximo ano? E se tivermos uma Copa do Mundo de Futebol sem a presença de torcedores nos estádios, praças, ruas e bares do Catar? Bem, nesse caso o vírus me obrigará a descumprir a promessa feita ao meu velho e bom pai Egídio, após o seu falecimento em 2003, quando prometi que estaria em todos os mundiais de seleções. Estar na Alemanha 2006 era um sonho do meu querido pai, e hoje tenho a certeza de que foi ele que deu início a toda essa história de Copas do Mundo. Enfim, ele foi a fagulha que acendeu em mim o desejo de continuar a sonhar com outras experiências futebolísticas, outros lugares, outros encontros com desconhecidos, outras cervejas e comidas típicas, quiçá outros textos escritos para o Ludopédio, enfim, outras histórias e momentos, que certamente a memória guardará. Torço para estarem logo ali à frente, afinal, se a vida é um sopro, porque não ajustar as nossas velas e nos lançar mar adentro?

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leandro Batista Cordeiro

Foi jogador de futebol amador, varzeano e rural e integrou equipes infantis, juvenis e juniores do América Futebol Clube, Associação Esportiva Santa Tereza, Associação Atlética Cassimiro de Abreu e Associação Desportiva Ateneu. Apreciador de uma boa prosa futebolística, acompanhada de boas cervejas e de bons companheiros! Atualmente é professor do Curso de Educação Física da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM- Diamantina-MG). Doutor em Estudos do Lazer - UFMG. Membro do GEFuT e, antes de tudo, de alma futeboleira e coração azul celeste!  

Como citar

CORDEIRO, Leandro Batista. Rússia 2018: porque a vida é um sopro!. Ludopédio, São Paulo, v. 143, n. 52, 2021.
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