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Saint Louis 1904 – Estados Unidos: uma jovem potência em sua estreia como sede Olímpica

Paulinho Oliveira 12 de fevereiro de 2021
Pôster dos Jogos Olímpicos de 1904
Pôster dos Jogos Olímpicos de 1904

Racismo, concentração de riqueza, imperialismo e progresso econômico resumem o que eram os Estados Unidos em 1904, ano da Exposição Internacional da Compra da Louisiana (Louisiana Purchase Exposition), um megaevento que ocupou uma área de quase 5 km² em dois lugares distintos de Saint Louis: o Forest Park e a Universidade Washington. Para que a Expo 1904 acontecesse, foi necessário captar 15 milhões de dólares: um terço foi arrecadado com o apurado da venda de passagens de bonde na cidade; outro terço veio de doações de empresários e cidadãos do estado do Missouri; e os demais 5 milhões de dólares vieram de um fundo governamental aprovado pelo Congresso norte-americano em maio de 1900, com o apoio do então presidente William McKinley.

A exposição foi aberta no dia 30 de abril de 1904. O presidente Theodore Roosevelt abriu o evento via telégrafo, uma invenção originalmente britânica, mas que foi aperfeiçoada pelo norte-americano Samuel Morse, criador do código telegráfico de mesmo nome, utilizado largamente até os dias atuais. Roosevelt, porém, só compareceu à exposição de Saint Louis em novembro, após vencer as eleições presidenciais daquele ano contra o democrata Alton Parker, com 336 delegados no Colégio Eleitoral contra 140. A fácil reeleição de Roosevelt se deveu à sua luta contra os monopólios empresariais e à sua agressiva e ambiciosa política imperialista de relações exteriores, que implicou, por exemplo, uma presença maior dos Estados Unidos na América Latina – especialmente após a influência que o presidente norte-americano exerceu sobre rebeldes do Panamá para que esse país se tornasse independente da Colômbia, o que acabou facilitando a pretensão de Roosevelt de assumir o controle das obras de construção do Canal do Panamá, que, afinal, permaneceu controlado pelos Estados Unidos até 1977, quando o canal foi cedido ao governo panamenho.

Era de interesse de Roosevelt que a Expo 1904 fosse um sucesso e, de fato, o foi. Ao longo de mais de sete meses (até 1º de dezembro), quase 20 milhões de pessoas visitaram os estandes montados por 43 estados norte-americanos e 62 países (incluindo aí os próprios Estados Unidos, cujo governo federal também tinha seu estande) e conferiram as novidades tecnológicas da época, como o telégrafo sem fio, o teleautógrafo (precursor do fax), a máquina de raio-X, a incubadora infantil, o bonde elétrico e 140 modelos diversos de automóveis (incluindo o célebre modelo Ford-T, que, no Brasil, ficou conhecido como Ford “Bigode”). Outra grande novidade foi o primeiro concurso de aviação de que se tem notícia, o que daria a Saint Louis o apelido de Flight City (Cidade Voadora). No espaço da exposição, também eram mostradas inovações arquitetônicas e, nas praças de alimentação, os visitantes poderiam degustar novidades da culinária como o sorvete de casquinha, o hambúrguer e o cachorro-quente. A entrada da exposição era franca, mas algumas atrações do evento eram pagas: para conferir a incubadora infantil, por exemplo, o preço era 25 centavos de dólar; o ingresso para uma tourada custava um dólar; e a entrada para assistir a uma encenação ao ar livre da Segunda Guerra dos Bôeres – que ocorrera entre 1899 e 1902, opusera a Grã-Bretanha e o Estado Livre de Orange e acontecera em território da atual África do Sul – custava 25 centavos de dólar a cadeira e um dólar o camarote. Predominavam entre os visitantes homens e mulheres brancos, muito bem trajados com seus fraques e cartolas, vestidos, chapéus e leques, à moda da Belle Époque francesa – tal qual ocorrera quatro anos antes, em Paris. A segregação racial impedia a entrada de visitantes negros, de modo que seres humanos de outras raças que não a branca só poderiam ser vistos como “atrações” da Expo 1904 – pigmeus africanos, nativos filipinos e índios apaches (incluindo seu célebre chefe Gerônimo), todos não eram enxergados senão como produtos “exóticos” a serem mostrados aos pretensos superiores, os membros da civilização branca, anglo-saxã e protestante.

Em outro ponto em comum com Paris 1900, os Jogos Olímpicos de Saint Louis 1904 acabaram integrados à Louisiana Purchase Exposition. As disputas esportivas se deram, em sua maioria, no Francis Field Stadium – um estádio com capacidade para 19 mil pessoas cuja construção foi iniciada em 1902 e que foi inaugurado em 1904, graças ao empenho do político e diplomata David Rowland Francis, ex-prefeito de Saint Louis, ex-governador do Missouri e ex-secretário do interior dos Estados Unidos (nos governos de Grover Cleveland e William McKinley). Francis foi o responsável direto pela organização da Expo 1904 e, por consequência, o presidente do Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos de Saint Louis. Ao contrário da Expo 1904, que contou com a abertura oficial feita – ainda que à distância, via telégrafo – pelo presidente Theodore Roosevelt, a cerimônia de abertura dos Jogos de Saint Louis, em 1º de julho de 1904, foi simples e muito breve, e a declaração de abertura foi feita pelo próprio Francis, o único norte-americano em toda a história a abrir uma edição olímpica sem ser presidente ou vice-presidente dos Estados Unidos.

Além do país-sede – que foi representado por 526 atletas, mais de 80% dos 651 competidores daquela edição –, outras 11 nações se fizeram presentes, com a manutenção da predominância do hemisfério norte (à exceção da Austrália, país independente desde 1901, e da África do Sul, que à época era ainda uma colônia britânica). Apenas sete países europeus foram representados: França, Alemanha, Grã-Bretanha, Grécia, Suíça, Áustria e Hungria (estes dois, embora fizessem parte de uma mesma nação, o Império Austro-Húngaro, permaneciam competindo com delegações separadas). Já do continente americano, além dos Estados Unidos, enviaram delegações Cuba (que à época era um protetorado norte-americano) e Canadá. Nenhuma delegação asiática foi a Saint Louis, ao contrário de quatro anos antes, quando dois países da Ásia foram representados. O número de nações presentes em Saint Louis 1904 – menos da metade dos que foram a Paris 1900 – foi o menor de toda a história dos Jogos Olímpicos da Era Moderna. Dois fatores explicam a queda no número de participantes. Primeiramente, as delegações dos países de fora do continente americano tinham que se deslocar de navio até o porto de Nova York, em uma viagem que, dependendo da distância, poderia durar até 15 dias; em seguida, para chegarem em Saint Louis, teriam de encarar mais 40 horas de trem, uma jornada que decerto deixaria todos por demais extenuados para ainda disputarem competições esportivas. Além disso, Europa e Ásia estavam em tensão por conta da Guerra Russo-Japonesa, iniciada em 8 de fevereiro de 1904 e com grande parte dos combates travados no Oceano Pacífico.

Com 80% dos atletas que disputaram os Jogos sendo norte-americanos, a supremacia dos Estados Unidos foi assombrosa, com um total de 239 medalhas conquistadas, sendo 78 de ouro. A Alemanha, segunda colocada, teve um total de apenas 13 medalhas, sendo quatro douradas. A superioridade norte-americana, porém, teve razão idêntica à francesa em Paris 1900 – em várias modalidades, apenas atletas dos Estados Unidos competiram, sendo que, por exemplo, no futebol, das três equipes que disputaram o torneio, duas eram estadunidenses (formadas, respectivamente, por estudantes do Christian Brothers College e por jogadores amadores do Saint Rose Parish). Por outro lado, inegavelmente, os norte-americanos – que já haviam tido sucesso em Atenas 1896 e Paris 1900 – já tinham uma visão educacional do esporte bastante avançada, com competições envolvendo universidades acontecendo pelo menos desde a década de 1850.

Start of the Marathon Race, 1904 Olympics
Início da Corrida da Maratona, Olimpíadas de 1904. R: Os corredores preparam-se para a largada. B. David R. Francis dispara a arma de largada.

Os Jogos de Saint Louis 1904 foram descritos pelo Barão de Coubertin (que não viajou aos Estados Unidos) como palco de “truques” e “comédias”. As “comédias” eram, na verdade, uma manifestação do racismo norte-americano. Durante os Jogos, ocorreram os chamados “Dias Antropológicos”, nos quais membros de etnias consideradas “exóticas” aos olhos dos brancos, anglo-saxões e protestantes da elite local disputavam corridas, arremessos e lutas, servindo de espetáculo aos visitantes, que deles riam com escárnio.

Segundo o Barão de Coubertin, que soube desses “Dias Antropológicos” com base em relato enviado por representante do COI, esse tipo de “comédia” perderia a graça no dia em que negros, amarelos e vermelhos aprendessem a correr, nadar, saltar e arremessar, deixando os brancos para trás. Já os “truques” mencionados por Coubertin ocorreram na prova da maratona, realizada em 30 de agosto de 1904, sob um forte calor de 32º C. O primeiro a entrar no Francis Field, triunfante, foi o norte-americano Frederick Lorz, um jovem novaiorquino de 19 anos, com o tempo de 3 horas e 13 minutos. Entretanto, descobriu-se, depois, que Lorz percorrera parte do percurso da prova em um carro, o que o levou a ser desclassificado. O verdadeiro vencedor da maratona foi o britânico Thomas Hicks, que competia pelos Estados Unidos, onde trabalhava na construção civil em Cambridge (Massachusetts). Hicks completou a prova em 3 horas, 28 minutos e 53 segundos e só o conseguiu porque competiu sob efeito de conhaque e estricnina (um veneno para matar ratos). Ao cruzar a linha de chegada, Hicks sofreu um colapso e, por um milagre, não veio a falecer. Este foi o primeiro caso documentado de doping na história olímpica moderna.

O texto acima é parte do Capítulo 3 do livro Jogos Políticos da Era Moderna, de Paulinho Oliveira, que está disponível na plataforma Amazon.


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Paulinho Oliveira

Jornalista (MTb 01661-CE), formado pela Universidade Federal do Ceará (UFC) em 2004.Escritor, com duas obras publicadas: GUERREIROS DE SANTA MARIA (Fortaleza, Premius Editorial, 2013, ISBN 9788579243028) e JOGOS POLÍTICOS DA ERA MODERNA (Fortaleza, publicação independente, 2020, ASIN B086DKCYBJ).

Como citar

OLIVEIRA, Paulinho. Saint Louis 1904 – Estados Unidos: uma jovem potência em sua estreia como sede Olímpica. Ludopédio, São Paulo, v. 140, n. 26, 2021.
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