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A seleção feminina norte-americana: títulos dentro de campo, luta por justiça fora dele

Copa Além da Copa 5 de outubro de 2020

Em março de 2019, a poucos meses da Copa do Mundo na França, a seleção feminina de futebol dos Estados Unidos entrou com um processo judicial contra a federação do país, a US Soccer. A equipe alegava que havia uma “discriminação de gênero institucionalizada” na entidade, que, entre outros problemas, destinava muito menos dinheiro a elas do que à seleção masculina.

A linguagem do processo era bastante direta: “isso acontece mesmo com a performance delas sendo superior à dos jogadores homens – com as mulheres, diferentemente deles, tornando-se campeãs mundiais”.

Até por isso, o processo foi muito midiático: a seleção feminina dos EUA vinha de um título mundial no Canadá, em 2015. Já a masculina não tinha sequer se classificado para a Copa do Mundo mais recente, em 2018, na Rússia, tendo perdido uma vaga quase certa para o modesto time do Panamá.

Este texto é um complemento ao episódio de outubro do podcast Copa Além da Copa, que fala sobre atletas pioneiros em causas políticas e sociais. Você pode ouvi-lo clicando aqui (ou ouça abaixo).

O que está por trás do processo

Ao redor do planeta, o futebol feminino tem gradualmente crescido em popularidade e relevância. Nos EUA, onde é uma modalidade mais comumente praticada por mulheres do que por homens, um grande impulso veio após a conquista de 2015.

Por duas razões: a seleção estava jogando do lado de casa, no Canadá, e a transmissão televisiva bateu recordes no país, com cerca de 25 milhões de espectadores tendo visto a final, uma acachapante vitória sobre o Japão, então defensor do título. Essa, aliás, foi a maior audiência que um jogo de futebol teve na história dos Estados Unidos.

A conquista foi tão amplamente reconhecida que, pela primeira vez, uma equipe feminina ganhou um desfile de campeã em Nova York. As atletas ainda foram recebidas e homenageadas na Casa Branca, pelo então presidente Barack Obama.

No momento em que esse texto está sendo escrito, ainda não há uma resolução do processo na Justiça americana, mas alguns acontecimentos importantes já ocorreram. Por exemplo, o presidente da federação de futebol dos EUA, Carlos Cordeiro, foi obrigado a renunciar ao cargo depois que veio à tona a forma com que a entidade estava se defendendo das acusações.

Sob o comando de Cordeiro, a US Soccer alegava na Justiça que as mulheres tinham “menos habilidade física e menos responsabilidades” que os homens, o que justificaria receberem menos. Assim que essa informação vazou, em março de 2020, patrocinadores de peso da seleção, como a Coca-Cola e Volkswagen, repudiaram o argumento. O presidente teve de deixar o cargo para que as marcas não se afastassem da federação.

Irritadas com a estratégia judicial utilizada pela US Soccer, as jogadoras chegaram a ir a campo com suas camisas vestidas pelo avesso. Dessa forma, o símbolo da federação não aparecia – mas as quatro estrelas, representando quatro conquistas de Copa do Mundo, sim. Vamos nos aprofundar na mais recente dessas conquistas, em 2019.

Uma seleção engajada

A ação judicial contra a própria federação era, na verdade, apenas mais um passo para uma seleção que estava acostumada a se posicionar em assuntos políticos e sociais. Ainda em março de 2019, a lateral-direito Ali Krieger e a goleira Ashlyn Harris anunciaram que estavam noivas, e que o casamento ocorreria após a Copa do Mundo.

Ambas haviam defendido a seleção no título de 2015, além de serem companheiras no Orlando Pride. Na entrevista em que revelaram seu relacionamento, Krieger e Harris afirmaram que não queriam que o assunto viesse à tona antes da hora e se tornasse uma “distração” para além de suas performances como jogadoras.

Seleção dos Estados Unidos em 2015. Foto: joshjdss/Wikipédia.

A atacante Alex Morgan, que vivera uma temporada iluminada em 2018, marcando 18 gols em 19 jogos com a camisa da seleção, também demonstrava preocupação com assuntos fora de campo: ela se tornou pioneira ao participar da campanha Common Goal, iniciada por Juan Mata, jogador do Manchester United. Nela, a ideia é que grandes atletas doem 1% de seus salários para a caridade.

Outra jogadora a se juntar a Morgan nessa iniciativa foi a também atacante Megan Rapinoe. Mas ela merece um capítulo especial nessa história.

Rapinoe: Futebol, liderança e pioneirismo

Mesmo que você não acompanhe futebol feminino com frequência, já ouviu falar em Megan Rapinoe. Hoje com 35 anos de idade, ela possui uma das carreiras mais vencedoras da história do esporte bretão. Foi eleita a melhor jogadora da Copa do Mundo da França em 2019, ano que também venceu o prêmio de melhor do mundo entregue pela FIFA.

Rapinoe. Foto: Lorie Shaull/Wikipédia.

Megan Rapinoe começou seu pioneirismo ao se assumir como lésbica em 2012. Então com 27 anos, ela falou sobre sua sexualidade em uma entrevista para a revista Out. Naquela ocasião, também declarou seu namoro com a jogadora australiana Sarah Walsh. Ela disse que a situação no esporte feminino é muito mais acolhedora para homossexuais do que a no masculino, mas que gostaria de ver em breve esse mundo deixando de ser tão preconceituoso.

Cada vez mais sob os holofotes devido às suas brilhantes atuações dentro de campo, Rapinoe não pôde perder a oportunidade de fazer barulho também sobre seus ideais. Afinal, em um mundo ainda tão injusto, quem tem a oportunidade deve fazer com que sua voz seja ouvida.

Em 2016, em meio ao turbilhão de protestos iniciados na NFL por Colin Kaepernick, Rapinoe foi a primeira jogadora de futebol a demonstrar apoio. Em uma partida da National Women’s Soccer League entre o Chicago Red Stars e o Seattle Reign, então sua equipe, ela seguiu o gesto do quarterback e se ajoelhou durante o hino nacional.

Questionada sobre o porquê de ter repetido o gesto de Kaepernick mesmo sendo branca, Rapinoe respondeu: “Sendo uma norte-americana gay, eu sei o que é olhar para essa bandeira e saber que ela não protege as minhas liberdades individuais”.

Rapinoe cresceu em uma cidade conservadora e se descobriu lésbica em seu primeiro ano na faculdade. Credita o amadurecimento e o envelhecimento ao seu ativismo cada vez maior, que permite que veja mais claramente a opressão sofrida pelas minorias e as injustiças nas diferenças de tratamentos para homens e mulheres dentro do esporte.

“Eu claramente tenho a sorte de ter a plataforma de jogar pela seleção nacional norte-americana para falar sobre esses assuntos”, disse em entrevista à CNN em 2019. “Eu acho que nós não precisamos viver nesse mundo. Eu acho que nós podemos fazer um mundo melhor. E, para mim, eu uso todos os recursos que tenho para fazer um mundo melhor’.

A jogadora já entrou em conflito com o presidente Donald Trump em diversas ocasiões. A mais grave foi ainda durante a Copa de 2019, quando ela expressou veementemente que não iria à Casa Branca caso os Estados Unidos fossem campeões: um grande contraste após a calorosa recepção de Barack Obama quatro anos antes.

Como era de se esperar, a seleção norte-americana campeã do mundo não visitou a Casa Branca após o título. Cada vez mais equipes vitoriosas têm se recusado a seguir durante o governo Trump esse gesto antes tão tradicional.

Ativismo que transcende o futebol

Desde 2017, Megan Rapinoe está em um relacionamento com a jogadora de basquete Sue Bird, uma das principais estrelas da WNBA.

Como é de se esperar, Sue Bird também é uma atleta ativista. E como casal, elas têm sido pioneiras na forma de aparecerem em público enquanto duas super-estrelas. Estiveram juntas na revista “The Body Issue”, tradicional ensaio fotográfico produzido pela ESPN com corpos nus de atletas enquanto praticam suas modalidades.

A WNBA é uma das ligas mais ativas nas questões sociais e tem sido extremamente vocal principalmente na luta contra a brutalidade policial que está em foco nos últimos meses.

No último mês de agosto, a senadora republicana pelo estado da Geórgia, Kelly Loeffler, fez tweets se manifestando contrária às mensagens de apoio ao Black Live Matters mostradas pelas atletas da WNBA. Coincidentemente, Loeffler é também dona do Atlanta Fever.

A partir de então, múltiplas atletas da WNBA e até mesmo contas oficiais de equipes nas redes sociais passaram a destacar a frase “Vote Warnock”, em referência a Raphael Warnock, adversário de Loeffler nas próximas eleições.

De acordo com Elizabeth Williams, do Atlanta Fever, foi de Sue Bird a ideia de que atletas e times usassem camisas, bonés e pins com a frase “Vote Warnock”.

Juntas, Rapinoe e Sue Bird lutam para fazer um mundo melhor. Elas estão acompanhadas por muitas outras atletas que entendem como o destaque que possuem é uma plataforma para causas urgentes.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Copa Além da Copa

Perfil oficial do Podcast Copa Além da Copa. A história, a geopolítica, a cultura e a arte que envolvem o mundo dos esportes.

Como citar

COPA, Copa Além da. A seleção feminina norte-americana: títulos dentro de campo, luta por justiça fora dele. Ludopédio, São Paulo, v. 136, n. 13, 2020.
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