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Sissi, a camisa 10 pioneira no futebol feminino

Leila de Melo Universidade do Esporte 28 de novembro de 2020

Quando falamos de futebol feminino, o primeiro nome que recordamos é o de Marta, naturalmente. Afinal, a alagoana é detentora de seis troféus da Fifa de melhor jogadora do Mundo, uma marca inigualável entre todos os atletas brasileiros da modalidade. No entanto, para que Marta pudesse trilhar sua carreira de sucesso foi preciso que Sissi e sua geração pavimentassem o caminho.

No Brasil, entre os anos de 1941 a 1979, a prática do futebol feminino era proibida por lei. Não havia espaço para mulher no futebol, senão o de espectadora. Para que Sisleide do Amor Lima, mais conhecida como Sissi, se tornasse uma jogadora de futebol foi preciso um bocado de coragem, pioneirismo e quebra de barreiras até a regulamentação da modalidade em 1983.

Natural de Esplanada, interior da Bahia, Sissi cresceu vendo seu pai, um ex-zagueiro, e seu irmão jogando bola no quintal de casa e lhes dizendo que aquilo não era esporte para menina. Porém, ela não deu ouvidos e, como não podia ter acesso à bola, arrancou a cabeça de suas bonecas e fez daquilo sua própria pelota. Jogou bola na rua com os garotos, contrariando seus pais, e, aos 14 anos, saiu de casa para morar em um alojamento em Feira de Santana, onde atuou pelo Flamengo de Feira de Santana.

Sissi jogou no Flamengo de Feira por três anos, até receber um convite para jogar no Bahia. Na equipe soteropolitana, ela jogava futebol de campo e de salão. Foi no Bahia que ela se destacou e foi convocada para representar a Seleção Brasileira no Mundial Experimental, na China, em 1988.

Mundial Experimental de 1988

Sissi foi uma meia-atacante, com uma visão de jogo privilegiada, toque de bola de qualidade e técnica apurada. O pensamento rápido e agilidade lhe concediam a capacidade de jogar tanto no campo, quanto nas quadras de futebol de salão. Aos 21 anos, ela recebeu a primeira oportunidade para representar a seleção brasileira no Mundial Experimental na China em 1988, era a caçula do grupo que em sua maioria era composto por atletas do pioneiro Clube Radar do Rio de Janeiro.

O evento realizado na China representou não somente a primeira vez que Sissi viajava de avião, como saía do país. A menina do interior da Bahia teve poucas oportunidades como titular, a concorrência era acirrada na posição. Como caçula, a baiana aproveitou as chances que lhe foram concedidas, marcando um belíssimo gol de falta (uma de suas especialidades) contra a Noruega, e começou a escrever sua história com a Amarelinha. Na ocasião, as meninas do Brasil ficaram com a terceira colocação, atrás apenas da Noruega e da China.

Ao retornar ao Brasil, Sissi foi convidada a integrar o time do Corinthians, mas apenas como jogadora de futebol de salão. Ela não morava na capital de São Paulo, mas sim no interior, em um pequeno pensionato, e o salário não era grandes coisas, pelo contrário, Sissi fez bicos como vendedora de peças de carro para se custear. Ela ainda passou pela Bordon, pela Sociedade Esportiva e Recreativa Marvel e Associação Sabesp de Santos. Esta última equipe fora a que lhe dera melhor estrutura e salário.

Enquanto ainda havia muito estigma para as mulheres jogarem futebol de campo, o futsal era a saída para muitas delas conseguirem se profissionalizar e disputar um campeonato de alto nível. Sissi diz que o futebol de salão a ajudou a pensar rápido e aguçar sua visão de jogo, aprimorando suas técnicas.

Sul-Americano de 1995

Sissi sofreu uma lesão e ficou de fora do Mundial de 1991 e o sonho de jogar uma Copa foi adiado. Para garantir uma vaga na Copa do Mundo de 1995, a Seleção Brasileira teve que disputar o Sul-Americano naquele mesmo ano.

O Brasil foi o país escolhido, a competição foi um sucesso absoluto! A cidade sede foi Uberlândia, situada no interior de Minas Gerais. Dentro de campo, a Seleção jogou o fino da bola. Foi uma campanha irrepreensível, com 100% de aproveitamento e 44 gols em cinco jogos. Os mineiros abraçaram o time e celebraram as belas atuações do time no Parque do Sabiá.

Copa do Mundo de 1995

No entanto, no Mundial de 1995 a história foi diferente. O Brasil caiu numa chave difícil, apesar das grandes partidas no Sul-Americano. Encarar Alemanha, Japão e Suécia no mesmo grupo foi parada dura. As meninas acabaram eliminadas ainda na primeira fase.

Quatro anos depois, já mais experiente, Sissi vivia a expectativa de representar novamente a Amarelinha na Copa do Mundo de 1999. Ela jogava futsal na Associação Sabesp e em uma partida, a camisa 10 se lesionou novamente, às vésperas de um mundial. Ela fraturou o rosto e de acordo com o laudo médico, uma cirurgia seria necessária. Novamente as chances de Sissi ficar de fora da mais aguardada competição do futebol eram altas.

Com seu talento e luta pelo futebol feminino, Sissi abriu caminhos para mulheres de todo o Brasil e marcou época com golaços. Foto: Acervo pessoal/CBF.

A atleta então fez uma escolha: assumiu o risco de não fazer a cirurgia e assinou documentos se declarando responsável pela escolha. Segundo ela, tudo aquilo valeu a pena, as deusas do futebol estavam ao lado de Sissi e seu esforço foi recompensado.

Quem via as atuações da baiana naquela Copa não poderia acreditar que ela jogou a competição inteira com o rosto fraturado. Sissi marcou sete gols, recebeu a chuteira de ouro e foi a autora de um dos gols mais bonitos da competição. Aliás, vamos falar melhor desse gol com riqueza de detalhes nos parágrafos seguintes.

 

O Gol de Ouro

O cenário: quartas de final da Copa do Mundo, Brasil e Nigéria, duas equipes ofensivas e a fim de jogo. As meninas do Brasil começaram a partida com tudo, abrindo o placar em 3 a 0, diante das Águias Verdes. O confortável placar a favor acabou desconcentrando as brasileiras na partida. As nigerianas entraram no segundo tempo focadas em empatar a partida e o fizeram. O jogo que parecia confortável ganhou contornos épicos e na regra da época, a prorrogação poderia ser encerrada, quando um dos dois times marcasse o primeiro gol, o chamado “gol de ouro”.

Aos 15 minutos da prorrogação, Michael Jackson (apelido de Mariléia dos Santos) sofreu falta na entrada da área. Sissi chamou a responsabilidade para si, era uma excelente batedora de faltas. E assim o fez: uma batida indefensável, como pede o manual. Com o placar de 4 a 3, o Brasil classificou-se para as semifinais da competição.

Sissi vibrou, comemorou, chorou e extravasou tudo ali. Em diversas entrevistas até hoje, ela diz que foi o gol mais especial e talvez o mais importante de sua carreira. O gol da classificação, o gol que levava o Brasil adiante na competição, deixando viva uma esperança de ir à primeira final de Copa do Mundo.

O gol de falta contra a Nigéria foi o primeiro gol de ouro do futebol feminino e é, até hoje, um dos lances mais celebrados da história das Copas do Mundo. Antes do Mundial da França, em 2019, a FIFA realizou uma votação popular para decidir o maior gol de todos os tempos e entre eles figurava o gol de Sissi. Após a vitória sobre a Nigéria, o Brasil acabou derrotado pelos Estados Unidos nas semifinais por 2 a 0. Contudo, as meninas não saíam sem medalhas, elas venceram a Noruega nos pênaltis e garantiram o terceiro lugar na competição. Além da artilharia, Sissi foi eleita a segunda melhor jogadora do torneio. As norte-americanas e donas da casa se sagrariam campeãs naquele ano.

Trajetória Olímpica

Apenas em 1996 o futebol feminino passou a fazer parte dos Jogos Olímpicos. Naquele ano, a sede seria em Atlanta, nos Estados Unidos. Sissi fez, então, sua estreia na competição, e o time já mais experimentado em competições internacionais pôde medir forças com algumas das maiores potências da modalidade. O bronze acabou escapando, mas a campanha da Seleção Feminina foi além do esperado.

Nos jogos Olímpicos de Sydney, 2000, Sissi vestiu pela última vez a camisa 10 da Seleção Brasileira. A equipe foi muito bem, fez uma ótima primeira fase, mas pegou os EUA nas semifinais e não conseguiu avançar. A disputa do terceiro lugar foi contra a forte Alemanha e novamente ficamos sem o bronze olímpico. Está foi a última vez que a baiana vestiu a camisa canarinho.

Formiga, Sissi e Marta no CenturyLink Field, em Seattle. Foto: CBF.

Auge no SPFC e ida aos EUA

Sissi teve seus momentos de glória nos gramados pelo São Paulo Futebol Clube. A equipe foi criada em 1997 e o elenco era formado pela base do Saad, na época o principal clube do cenário nacional feminino. No Campeonato Paulista, o São Paulo foi imbatível e aplicou festival de goleadas em seus adversários: Juventus (7–1 e 6–0), Mackenzie (5–1 e 5–0), Universidade de São Paulo (9–1 e 6–0), Palmeiras (6–0), Portuguesa/Sant’anna (9–0) e Santos (3–0 e 4–1). Este último foi o adversário da decisão. O clube terminou a temporada conquistando as quatro competições que disputou. Além do estadual, o São Paulo foi campeão do Torneio de Campo Grande, Torneio da Primavera e o Campeonato Brasileiro. Neste primeiro ano, jogou 32 partidas com 28 vitórias, dois empates e dois reveses, marcando 199 gols.

A era de ouro do SPFC no feminino rendeu até coros da torcida em jogos do time masculino. O então técnico do São Paulo, Muricy Ramalho, ouviu a torcida gritar: “Ei, Muricy, coloca a Sissi!” para ajudar o tricolor paulista na ocasião.

Sissi ainda jogaria no Brasil pelo Palmeiras e Vasco, até mudar-se para Europa, onde jogou no Hellas Verona Football Club da Itália.

Ela participou da primeira temporada da Women’s United Soccer Association (WUSA), nos EUA, pelo San Jose CiberRays, ao lado de outra brasileira, Kátia Cilene. Juntas, elas foram campeãs em 2001, mas infelizmente por falta de verba, a liga foi encerrada em 2003.

Sissi segue morando e trabalhando nos EUA, mas agora como assistente técnica da equipe feminina Las Positas College Women’s, em Livermore, na Califórnia. Pontualmente, atuou na comissão técnica da Seleção Feminina de Futebol Brasileira, em 2015.

Em 2017, oito anos após aposentar-se, Sissi recebeu reconhecimento internacional ao ser eleita a quinta maior jogadora do século XX, pela Federação Internacional de História e Estatística do Futebol (IFFHS). Já aqui no Brasil, infelizmente, a camisa 10 tem bem menos reconhecimento.

Sissi, obrigada por ser minha primeira referência no futebol feminino, a Leila criança aprendeu contigo que menina não só pode, como joga bola muito bem!


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leila de Melo

Ex-atleta frustrada e jornalista por vocação. Fã de Kobe Bryant e de esquema 4-4-2. Escreve sobre esporte, porque a vida não  é o bastante. Jornalista formada em comunicação social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Como citar

MELO, Leila de. Sissi, a camisa 10 pioneira no futebol feminino. Ludopédio, São Paulo, v. 137, n. 63, 2020.
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