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Sobre a cobertura esportiva e a (re)produção de rivalidades no futebol jogado por mulheres

Podemos não perceber ou não refletir sobre isso sempre, mas a cobertura esportiva está intimamente ligada às relações que desenvolvemos com os esportes, especialmente com o futebol. Isso porque a abordagem midiática, desde transmitir ou não determinado campeonato até a forma como certas reportagens são veiculadas, os questionamentos que são feitos e a recepção do conteúdo influenciam-se mutuamente.

Em grande parte da mídia esportiva tradicional, os esportes são abordados como uma esfera separada de outras dimensões que os compõem. Pouco se fala das relações econômicas, sociais e políticas nas quais estão inseridos. Uma vez que faz parte de nosso cotidiano, o futebol transborda as dimensões do treinamento e do desempenho esportivo. É nesse sentido que abordaremos questões relativas à cobertura esportiva da Copa do Mundo de Futebol Feminino de 2019.

Marta em entrevista coletiva na Granja Comary. Foto: Rener Pinheiro/MoWA Press.

Durante a transmissão dos jogos das mulheres foi possível observar que alguns comentaristas, narradores e repórteres não tinham muita intimidade com a modalidade e com o evento. Muitas pessoas que trabalham com o futebol masculino foram alocadas na cobertura do feminino, e o que pôde ser observado foi o pouco conhecimento do histórico sobre a seleção e das jogadoras convocadas. Narrações e comentários enfatizavam, principalmente, as figuras individuais mais conhecidas – Marta, Formiga e Cristiane. Mas, esses pontos ainda podem ser considerados positivos se comparados aos comentários que se voltavam para o futebol masculino, colocando os homens no lugar de referência ao fazer comparações. Havia também aqueles comentários que visavam discutir a beleza de jogadoras ou torcedoras, ou que pensavam em campos e traves menores como soluções para “problemas” que não foram levantados pelas mulheres atletas.

Outro apontamento sobre a cobertura esportiva é em relação às entrevistas – coletivas ou individuais – e a forma dos meios de comunicação de abordar e repassar determinados conteúdos. Sabemos que muitas vezes, os veículos midiáticos se alimentam de polêmicas. Segundo Weinberg (2010), a polêmica atrai a atenção do público dando maior peso à controvérsia do que à conversa, o que provoca a polarização de pontos de vista entre os leitores. Isso, porque quanto mais impacto determinada notícia trouxer, mais a matéria reverberará. Na perspectiva de causar um impacto, mais do que na busca de diálogos, cria-se um jogo discursivo em que, mais do que conhecer verdades importa vender verdades. Nos sintonizando com o que disse Foucault (2004) sobre a polêmica, esse jogo não consiste em reconhecer o “sujeito com direito à palavra, mas em anulá-lo como interlocutor de qualquer diálogo possível” (FOUCAULT, 2004, p. 226).

Nesse sentido, também podemos pensar na polêmica como o embate entre verdades onde não há acolhimento ao questionamento do outro e nem a intenção de escuta do outro, mas sim de produzir o referido impacto. Como afirma Wainberg:

“[…] a mensagem de que a polêmica pública envolve uma dimensão educativa que visa influenciar de algum modo o estado de espírito das pessoas que observam o embate. Não é propriamente um diálogo honesto entre iguais ou uma conversação intimista […]. O que entra em jogo aqui é a potencialidade de seus efeitos. A controvérsia deve ter um peso maior. Deve envolver uma quantidade de tópicos entrelaçados. Deve provocar a polarização dos pontos de vista […]. Há acusadores e há defensores que buscam ora negar a suspeita, ora apresentar desculpas e ora ainda justificar determinado comportamento, decisão, idéia e preferência.” (WAINBERG, 2010, p. 228).

Assim, como afirma o autor, a polêmica se alimenta de um conflito, seja ele espontâneo ou provocado. Dessa maneira, no intuito de procurar pelas polêmicas, a imprensa, não somente a esportiva, passa a polemizar, ou seja, a criar polêmicas, distorcendo acontecimentos e, por vezes, acentuando rivalidades. Esse efeito de polemização pôde ser observado em uma sequência de matérias que abordam entrevistas com a Emily Lima, técnica do Santos e ex-treinadora da seleção brasileira, e a atacante Marta, no decorrer da Copa.

Ao ser questionada se convocaria Marta, Emily disse em participação no programa “no Ângulo”[1] que, se ela estivesse na seleção e Marta não estivesse 100%, preferiria convocar outra jogadora. Complementou que não era possível afirmar nada, pois não sabia dos exames da atleta, mas que em uma Copa todos precisam estar bem devido à exigência dessa competição. Marta, respondendo a uma pergunta – que não foi publicada, apenas a resposta da atleta sob a manchete –, rebateu Emily: “sempre que tem oportunidade ela ataca”[2]. Disse que a treinadora não devia estar acompanhando seu treinamento e jogos pela equipe e que Emily falava sem conhecer a situação, finalizando com a frase da manchete.

Reação de Marta ao rebater comentário de Emily Lima. Foto: Reprodução/ESPN.

Cabe destacar que a própria Emily disse não conhecer o caso e nem saber dos exames ao responder a tal questionamento. Mas, será que essa parte foi mencionada na pergunta feita a Marta? A resposta da atleta sugeriu haver uma rivalidade entre ela e a treinadora, mas como o tipo de recorte feito na pergunta e depois na matéria contribuiu para publicizar e fomentar essa rivalidade?

Esse episódio não termina aí. Em recente participação em um evento no Museu do Futebol[3] uma fala de Emily Lima foi descontextualizada[4] em uma reportagem da ESPN[5] constituindo mais um capítulo dessa polêmica fomentada nos últimos tempos.

Trecho reproduzido por matéria da ESPN sobre a participação de Emily Lima em um debate sobre o futebol de mulheres no Museu do Futebol, em São Paulo. Foto: Reprodução/ESPN.

Como dito anteriormente, é fato que há uma utilização da polêmica para fins de venda, afinal o lucro é algo importante para a mídia e para a manutenção das equipes. Isso fica claro quando pensamos nas supostas “boas polêmicas”, em que atletas passam a levantar bandeiras de causas sociais importantes como forma de marketing pessoal ou, até mesmo, para algum tipo de patrocínio (DANTAS, 2019). Entretanto, no caso anterior, a que serve estimular a rivalidade entre Emily e Marta? Há alguém que se beneficia do litígio construído entre mulheres, que, nesse caso específico, defendem uma mesma causa – a do futebol jogado por mulheres?

O futebol, bem como a mídia não devem ser lidos de forma ingênua nesses casos. Isso, porque a evidência ou o fato narrado midiaticamente também é um embate discursivo sobre uma suposta realidade (SCOTT, 1999). Dito de forma mais clara, o que se narra também é uma construção que se faz com base em noções e lógicas sociais que perpassam as subjetividades de quem escreve e quem se envolve no contexto narrado. Ao potencializar a competitividade e a rivalidade entre duas mulheres fora de campo, há um enquadramento posto sobre a feminilidade em si que transcende as mulheres em questão, forjando, inclusive, por meio daquele contexto, o que é possível se entender sobre a feminilidade – de uma forma massificante que ignora a diversidade de possibilidades de ser mulher.

Bom, muita coisa num trecho de texto muito curto. Então o convite é destrinchar esse raciocínio a fim de deixar ainda mais claro o que estamos problematizando acerca da cobertura esportiva, que não está dissociada do esporte em si.

Sobre o “embate” supracitado entre Marta e Emily, outro ponto importante é que, ao colocar essas mulheres icônicas como rivais, se reforçam algumas lógicas que contribuem para uma dinâmica de infantilização feminina. Isso culmina na construção da mídia como mediadora do litígio, que é tratado também como reprodução de lógicas privadas, daquelas que supostamente não conseguem lidar com uma vida pública.

Assim, a mídia forja – no sentido de colaborar na construção de – uma rivalidade entre Emily e Marta, por meio de manchetes tendenciosas e enviesadas que levam a jogadora a ressaltar um suposto desconhecimento de Emily sobre as jogadoras e a própria dinâmica da seleção. A isso Emily tenta responder, tendo que dar detalhes que provem seu conhecimento não só sobre Marta, como sobre as demais jogadoras e sobre a seleção como um todo. Esse jogo, de alguma forma, contribui para a ideia de que uma mulher não estaria preparada para ocupar cargos de liderança no futebol. Por fim, sustentar essa rivalidade contribui para uma maior adesão ao esporte, ou para uma reafirmação do futebol masculino em detrimento do feminino, que é retratado como cheio de conflitos internos e desorganizado?

Até que ponto, lançando mão de Foucault (2014), o gênero não entra como uma estratégia de dominação, numa lógica que determina a conduta das mulheres envolvidas nesse contexto? Até que ponto a rivalidade forjada entre mulheres não contribui para a manutenção do esporte, mais especificamente, nesse caso, do futebol como reduto das masculinidades? A quem serve alimentar essa “rixa” entre duas mulheres de suma importância no futebol feminino nacional?

Poderíamos evocar aqui as máximas da sororidade, mas o objetivo não é questionar a postura das mulheres, que por uma necessidade de autoafirmação exigidas pelo contexto, acabam enredadas na dinâmica conflitiva. Vale lembrar que estamos tratando de um contexto meritocrático e, assim, resolvemos questionar a mídia, que ao invés de ressaltar questões importantes relativas à representatividade, alianças e a interseccionalidade que podem ajudar a romper com essa lógica, resolve atuar como mediadora e produtora de rivalidade entre mulheres no contexto do futebol.

Referências

DANTAS, Marina de Mattos. O futebol jogado por mulheres entre o marketing, as individualidades e a autonomia. Cuadernos del Mundial #4, Buenos Aires, 2019. Disponível em: <https://www.clacso.org/3-cuadernos-del-mundial-francia-2019/>. Acesso em: 04 ago. 2019.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 28ª. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2014.

______. Polêmica, política e problematizações. In: ______. Ética, sexualidade, política (Ditos e escritos V). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.

SCOTT, Joan. Experiência. In: SILVA, Alcione Leite; LAGO, Mara Coelho de Souza; RAMOS, Tânia Regina Oliveira (Org.). Falas de Gênero. Santa Catarina: Editora Mulheres, 1999. Disponível em: <http://historiacultural.mpbnet.com.br/feminismo/Joan_Scoot-Experiencia.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2019. p. 1-23.

WAINBERG, Jacques A. A polêmica no jornalismo: a cantoria dos sabiás e dos rouxinóis da mídia. Intercom: Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, São Paulo, v.33, n.2, p. 221-237, jul./dez. 2010. Disponível em: <http://www.portcom.intercom.org.br/revistas/index.php/revistaintercom/article/view/601/562>. Acesso em: 16 jul. 2019.

Notas

[1] Programa produzido pelo Uol Esporte, transmitido no dia 11 jun. 2019. Disponível no link: <https://www.youtube.com/watch?v=MEKolBWt6wo>. Acesso em: 23 jul. 2019.

[2] Matéria do Uol esporte, publicada em 17/06/19. Disponível no link: <https://esporte.uol.com.br/futebol/ultimas-noticias/2019/06/17/marta-rebate-emily-lima-sempre-que-tem-oportunidade-ela-ataca.htm>. Acesso em: 23 jul. 2019.

[3] Debate  intitulado “Chegou a vez das mulheres no futebol?” ocorrido no dia 06/07/19. Disponível no link: <https://www.youtube.com/watch?v=aGLMegqkkUM&fbclid=IwAR399XbC0-9_-srAGt-jEaYbFFt0u1gescoRngavmcbBx8YsWBXeI1o4sc88>. Acesso em: 23 jul. 2019.

[4] Ao ser questionada sobre a fala de Marta após a eliminação do Brasil na Copa, Emily pontuou que embora Marta e as atletas citadas por ela, Cristiane e Formiga, mereçam reconhecimento por suas carreiras, as atletas precisam primeiro se respeitarem e se valorizarem entre si. Segundo a treinadora, a seleção já teve outros grandes nomes, mas nenhuma atleta se colocou nessa posição de insubstituível. Emily pontuou que é necessário trabalho e a montagem de uma equipe capaz de estruturar a renovação. A reportagem da ESPN, transformou essa declaração em um questionamento às conquistas das atletas.

[5] Reportagem da ESPN, publicada no dia 06/07/19. Disponível no link: <https://www.espn.com.br/espnw/artigo/_/id/5808996/emily-lima-fala-de-referencia-e-respeito-mas-questiona-o-que-marta-cristiane-e-formiga-conquistaram>. Acesso em: 23 jul. 2019.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Bárbara Gonçalves Mendes

Psicóloga, doutoranda em Psicologia Social pela UFMG, pesquisadora no Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT) e do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (NUH).

Jéssica Montanhini de Souza

Graduada em História pela UFOP, mestranda em Estudos do Lazer na UFMG. Membro do grupo de estudos GEFuT.

Marina de Mattos Dantas

Psicóloga (CRP 04/28.914). Doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP (com estágio pós-doutoral em Estudos do Lazer na UFMG) e mestre em Psicologia Social pela UERJ. Professora na Universidade do Estado de Minas Gerais. Pesquisadora no Grupo da Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT/UFMG), no Grupo de Estudos Socioculturais em Educação Física e Esporte (GEPESEFE/UEMG), no Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicologia Social do Esporte (GEPSE/UFMG) e no Grupo de Trabalho Esporte e Sociedade do Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais (CLACSO). Compõe a diretoria da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte (ABRAPESP/2024-2025). É produtora no Programa Óbvio Ululante na Rádio UFMG Educativa e colunista no Ludopédio.

Como citar

MENDES, Bárbara Gonçalves; SOUZA, Jéssica Montanhini de; DANTAS, Marina de Mattos. Sobre a cobertura esportiva e a (re)produção de rivalidades no futebol jogado por mulheres. Ludopédio, São Paulo, v. 122, n. 16, 2019.
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