123.25

Sobre ser um “Menino da Fila” no interior de São Paulo ou o ato solitário de torcer para o Santos nos anos 90

Em 95 eu não desisti,
Quantas taças vi você levantar,
Por isso que hoje eu estou aqui,
Pra ti incentivar.

Por onde for vou te ver jogar
Lá lá ia lá ia lá  Eu sou Santos
Lá lá ia lá ia lá Eu sou Santos
Lá lá ia lá ia lá Eu sou Santos
Por onde for vou te ver jogar

(Torcida Jovem, Em 95 eu não desisti)

Faço parte de uma particular geração de torcedores conhecidos como “Meninos da Fila”. Sim, uma alusão ao célebre título “Meninos da Vila”, raios que caem, de tempos em tempos, na “Vila mais famosa do Mundo”. Meninos que fazem com que qualquer torcedor rival, mesmo que de canto de olho, se deleite ao ver suas pernas franzinas pedalarem e colocar medalhões para comer grama. Sim, falo do Santos Futebol Clube. Um clube que já me provocou muitos episódios de orgulho (sobretudo, quando aquele uniforme todo branco resolve desafiar os times favoritos da grande imprensa paulista e carioca). Porém, já me proporcionou, também, incontáveis momentos de fúria (a última foi no empate de 3×3 contra o Fortaleza em casa). De fato, ao olhar para a minha trajetória de torcedor, diria que foi durante a década de 1990 que o Santos me exigiu reais provas de perseverança. Essa é a época em que eu me reconheci enquanto um torcedor santista e buscava, quase que sozinho, entender o tamanho desse clube, com uma história marcada por tantas particularidades e feitos incríveis[1]. Este texto é uma breve retomada dessas memórias, ainda, bastante vivas. 

Sou originário da cidade de São Paulo, mas cresci em um pequeno distrito chamado Engenheiro Schmidt, localizado no noroeste do interior paulista e que, penso eu, contava, naquele momento, com não mais de cinco mil habitantes. Sempre foi um lugar ímpar. Nessa época, brincadeiras de rua e, sobretudo, o futebol eram as principais atividades lúdicas de uma massa de crianças. Algumas delas, para a minha surpresa, tinham o costume, durante a quaresma, de evitar as ruas ao anoitecer. Segundo elas, formas de vida fantásticas, que permeavam as fronteiras do urbano e rural, podiam, nesse período religioso, vaguear pelas ruas. Até onde minha memória (e minha imaginação) alcança, posso afirmar que, entre toda a garotada, apenas eu e dois irmãos éramos os únicos santistas. Todos os outros se dividiam entre corinthianos, palmeirenses criados com leite Parmalat e, claro, os indecisos que foram pegos pelo São Paulo de Telê, Raí, Palhinha, Zetti e cia.

Lembro-me que títulos como os do Campeonato Paulista e da extinta Copa Rio-São Paulo, naquela época, tinham para nós o mesmo peso de um Mundial de Clube ou do Brasileiro. Título era título! E eram celebrados através de festanças que ocorriam, sobretudo, entre o bar do Miguel e a praça da Igreja Católica, que ficava no centro da cidade. Numa época em que nossos estádios recebiam bandeiras, fogos e papéis, a molecada, em Engenheiro Schmidt, tinha o hábito de celebrar com rojões, bombas, bombinhas, queima de camisas rivais e o canto de hinos ou gritos de torcidas organizadas. E, na maioria das vezes, tudo acompanhado do choro daquele pobre torcedor mirim rival, que viu seu time sucumbir. Em alguns casos, eram derrotas trágicas. Como, por exemplo, por meio de uma virada histórica, mesmo após o ídolo imitar um porco com o claro intuito de provocar o rival! Eu e os dois irmãos, na maioria das vezes – senão em todas – não nos encaixávamos em nenhum desses dois grupos.

Ainda, assim, eu não estava isento das fatídicas perseguições pós-rodada. Elas costumavam acontecer na única escola, do distrito, pelas quintas ou segundas de manhã. Bastava adentrar o portão principal, para ver torcedores rivais com o sorriso no canto do rosto, prontos para o escárnio. Para vencer as disputas, eles se organizam em grupos. Torcedores do mesmo time ficavam juntos para atacar ou se proteger. E o que restava para os três únicos “Meninos da Fila”? Enfrentar tudo sozinho. Afinal, eu estudava pela manhã, um dos irmãos no turno da tarde e o outro no noturno.

Nosso time dificilmente tinha força para chegar a uma final ou muito menos levá-la. E quando isso acontecia, parecia que o som da vitória não ecoava em Schmidt. Assim, aconteceu quando conquistamos a pouca badalada Conmebol, de 1998, e, um ano antes, a Copa Rio-São Paulo. Nesse caso particular, tratava-se de uma final contra o Flamengo, que contava com jogadores como Romário, Lúcio e Junior Baiano. Ricardo, palmeirense e amigo de infância, assistiu ao jogo comigo e após o apito final, saímos para celebrar na rua. Schmidt parecia calma. Nada no bar do Miguel. Resolvemos, então, ir em direção à praça da Igreja que, para nossa surpresa, estava deserta. Ficamos ali, os dois sozinhos conversando sobre o jogo e outras preocupações que tínhamos na época. Essa foi uma noite marcante. Senti que torcer para o “Alvinegro Praiano”, no interior de São Paulo, durante a década de 1990 era um ato de solidão e resistência, mesmo contando com a solidariedade de amigos.

Tamanho é o peso da alcunha “Meninos da Fila”, que ela virou tema do homônimo curta-metragem, de Ciro Hamin. Através de vários episódios, o curta cobre a geração de torcedores que se reconheceram santistas durante os 18 anos de seca (1984-2002). Por meio de uma série de depoimentos, Hamin tenta responder a mesma pergunta que eu me propus a fazer aqui: O que é ser um “Menino da Fila”? Para minha surpresa, todas aquelas pessoas entrevistadas guardam a mesma dificuldade que eu ou Hamin temos para encontrar uma resposta precisa. Em geral, dois caminhos surgem: A primeira é que nos tornamos santistas por causa de um pai, um avô ou um tio. Esse foi o meu caso. Tio e primo apaixonados pelo “Leão do Mar” e que faziam questão de assistir aos jogos quando estavam de férias em casa. E a segunda é que nos agarramos em particularidades únicas desse time, para explicar tamanha resiliência ou devoção durante esse período miserável. As duas particularidades que tanto me agarrei (e, ainda hoje, sigo agarrando) são a Vila e o uniforme branco.

A primeira camisa do Santos, presente de meus tios. Era a 9, de Guga. Foto: Acervo particular.

Assim como o enigmático estádio da Rua Javari, na Mooca, a Vila Belmiro é um tradicional estádio de bairro com seus bem vividos 102 anos de idade. Exprimida por ruas e casas ao seu redor, a Vila mantém uma estrutura física enfezada, onde torcedores santistas podem assistir aos jogos a pouquinhos metros de distância de nossos atletas. Para um viajante desavisado, que chega na rua Princesa Isabel e encontra aqueles baixos muros brancos, com bares nos arredores, vendedores de pipoca e pernil, e moradores apoiados nos baixos portões de suas casas espiando torcedores apinhando lentamente as ruas no dia do jogo, o ar de provincianismo, certamente, ilude. Mas não se engane! Falamos de um estádio centenário, que produziu craques como Del Vecchio, Claudio Adão, Pita, Coutinho, Pagão, Edu, Pepe e, claro, Pelé, entre tantos e tantos outros. E que, também, foi palco de finais nacionais e continentais. Lá dentro é onde o bicho pega ou, no nosso caso, o “Leão do Mar” literalmente morde!

Torcida e time apertam, espremem e, em muitos casos, trituram qualquer rival – seja um tático e disciplinado Vélez Sarsfield, de Ricardo Gareca, ou um pretensioso São Paulo, que, recentemente, assistiu surpreso a veloz arrancada de Geuvânio, um de nossos meninos, em direção ao primeiro gol de uma importante vitória no Paulista. Não à toa, a Vila (que já é o apelido do Estádio Urbano Caldeira) é, também, conhecida como Alçapão ou Caldeirão. Façanha que merece destaque. Sobretudo, no atual momento do futebol brasileiro, onde muitos de nossos estádios – cada qual com suas particularidades arquitetônicas – tristemente tombam e perdem espaço para cloroformizadas arenas padrão FIFA.

Vista da Arquibancada Social. Foto: Acervo particular.

Quanto ao uniforme, bom, o motivo para eu elencá-lo enquanto a outra particularidade é óbvio: qual outro clube encontrou na simplicidade do branco e o preenchimento dos detalhes com negro a combinação perfeita para um uniforme? Nenhum. Posso dizer com tamanha convicção que o branco combina a velocidade das arrancadas pelas laterais, com os passes certeiros de autênticos garçons no meio de campo, e com os arremates finais que acontecem naquele acanhado gramado. No mais, era a história de um passado de glórias que permeava a minha cabeça.

Meu tio e primo contavam as façanhas desse time. Pais de amigos, torcedores de times rivais, costumavam confirmar esses casos e, em alguns casos, acrescentar algo. Matérias e imagens em programas, jornais e revistas esportivas eram a prova documental desse imaginário. Enfim, havia uma narrativa de um grande time, que produziu grandes jogadores, circulou pelo mundo, enfrentou seleções, levantou taças e taças e, inclusive, parou uma guerra. Somados a isso, guardo na memória dois pertences de meu pai, um benfiquista de origem e que para mim comprovava tal grandeza internacional.

O primeiro trata-se de uma fotografia bastante singular. Em um dos álbuns de fotos da família, há uma foto dele, então, com 14 anos, sentado em uma longa mesa ao lado de colegas de escola e padres do internato, na colonial Lourenço Marques. Cada um com uma pequena garrafa de Coca-Cola. Estavam ali prontos para ouvir a transmissão via rádio da final do Mundial de Interclubes de 1962. Dizia ele que seu time era forte e contava com o moçambicano Eusébio. Porém, mesmo assim não resistiram à goleada de 5 x 2 em pleno Estádio da Luz. Há uma página no Wikipédia que narra detalhes desse jogo, tamanha a importância dele. Diz o texto que

[o]s portugueses, animados com a dureza que o Benfica impusera ao Santos no Brasil, tinham a certeza de que haveria uma terceira partida, tanto é que até os ingressos já estavam prontos. Eles estavam muito confiantes. Porém, esqueceram de avisar aquela torcida que do outro lado estava o Santos. “O” Santos de Pelé, Coutinho, Pepe e companhia. E que o esquadrão Brancaleone faria naquela partida uma das maiores exibições de um time de futebol na história. O peixe jogou muito, mas muito, e não deu chances ao rival em nenhum momento.

Além dessa foto, entre seus pertences, temos, ainda hoje, um selo comemorativo desse confronto. Nele, é possível ver o escudo de cada finalista desenhado lado a lado e abaixo deles o palco da final. Esses dois artefatos pertencentes de alguém tão próximo e que viveu aquilo tudo, antes mesmo de pisar no Brasil, eram a prova de que a grandeza desse clube não era apenas a leitura enviesada de brasileiros saudosistas. Do lado de lá, um jovem benfiquista havia vivido a experiência de ver seu time ser derrotado por esse time místico. De fato, esse esquadrão Brancaleone merecia ter a minha torcida!

Este texto é clubista? É óbvio que é! Ele é saudosista? Claro que sim! E, apesar dos percalços descritos aqui, esse texto tem, também, um final feliz. Apesar de não terem produzido conquistas significativas, os elencos – que perfilaram pela década de 1990 –, trouxeram jogadores capazes de encher os olhos da molecada da minha geração. Nomes como Almir, Índio, Ranielli, Guga – o matador de gambás –, Marcelo Passos, Robert e, para mim e tantos outros, o maior de todos, Giovanni, “o Messias”, cumpriram e bem sua missão: mantiveram eu e tantos outros “Meninos da Fila” confiantes de que tudo aquilo era apenas uma fase. Aquele quase título do Campeonato Brasileiro de 1995, após uma heroica virada de 5 x 2 nas semifinais contra o Fluminense, deixava claro que dias melhores viriam. E de fato vieram! Ao contrário da trágica história do Guanambi Atlético Clube, narrado por Rogério Othon[2], o Santos e seus torcedores conseguiram, anos depois, vislumbrar tempos de bonanza e que, também, entraram para a história do clube com feitos únicos. Refiro-me àquela geração de 2002 e, mais recentemente, a de 2010. Quanto a esses heróis citados acima, além de enfrentar os desafios de um clube que, na época, tinha uma precária estrutura e torcedores frustrados, hoje é possível vê-los circulando nas dependências do clube e/ou participando de jogos festivos.

Notas

[1] No lugar do verbo “reconhecer” havia digitado “tornei”, mas, na verdade, acho que nenhum torcedor “se torna”. Penso que já nascemos. É apenas questão de tempo reconhecer sua real paixão.

[2] Link para acessar o texto: https://www.ludopedio.org.br/arquibancada/guanambi-x-leonico-o-dia-em-que-o-sertao-ganhou-de-dez-a-zero-da-capital/.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Gustavo Dias

Torcedor Santista e professor de Sociologia na Universidade Estadual de Montes Claros.

Como citar

DIAS, Gustavo. Sobre ser um “Menino da Fila” no interior de São Paulo ou o ato solitário de torcer para o Santos nos anos 90. Ludopédio, São Paulo, v. 123, n. 25, 2019.
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