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Sobre taças, hinos nacionais e presidentes

Em 2018, o campeonato brasileiro de futebol teve uma última rodada inusitada. Não por conta de uma reviravolta na tabela, ou por um gol incrível. Nem mesmo por uma papagaiada da arbitragem. O “grande momento” da última rodada foi a entrega da taça de campeão ao Palmeiras, feita pelo então presidente eleito Jair Bolsonaro.

Jogadores do Palmeiras recebem a taça de campeão brasileiro de 2018. Foto: Fabio Menotti/Ag. Palmeiras/Divulgação.

Corrijam-me (por favor) se eu estiver errado. Mas, que eu tenha notícia, nunca um presidente em exercício, ou eleito, havia se deslocado a um estádio para entregar a taça de campeão brasileiro dentro do campo de jogo. Já houve episódios da seleção ir até o presidente após a conquista da Copa do Mundo (Juscelino Kubitscheck, Médici e FHC receberam a seleção). Houve também o episódio do Corinthians indo levar a taça da Libertadores ao presidente Lula. Mas não se pode dizer que isso seja uma tradição, mesmo que inventada, quer por parte dos clubes de futebol, quer por parte presidentes do Brasil.

Por isso, o texto de hoje vai abordar esta relação do futebol com os presidentes, mas de outro futebol. Mais especificamente, vou abordar a temática justamente onde este tipo de ação já virou uma espécie de tradição: nos Estados Unidos da América e com o futebol americano. E a justificativa para esta escolha se dá justamente por podermos observar claramente como as conexões entre o esporte e a política são demasiado intensas para que simplesmente deixemos de lado este assunto. Além disso, o imbróglio envolvendo Donald Trump e a atual equipe campeã, o Philadelphia Eagles, serve também para refletirmos sobre o episódio que aconteceu no Brasil.

Os presidentes dos EUA e os campeões da National Football League (NFL)

Nos EUA, desde há muito tempo os presidentes passaram a receber as equipes campeãs esportivas (profissionais e universitárias) nacionais na Casa Branca. O primeiro presidente a receber equipes nacionais de algum esporte nos EUA teria sido Andrew Johnson. Em 30 de agosto de 1865, o presidente se encontrou na Casa Branca com os atletas do Washington Nationals e do Brooklyn Atlantics, equipes da Associação Nacional de Jogadores de Baseball.

No futebol americano, desde 1987, quando Ronald Reagan recebeu o New York Giants, as equipes campeãs da National Football League passaram a ir quase todos os anos à Casa Branca para visitar o presidente dos EUA. Foram quatro exceções que impediram o presidente de fazer o convite às equipes.

O próprio Giants não foi convidado à Casa Branca em 1991, quando venceu o Super Bowl apenas dez dias após o início da Guerra do Golfo. Em 1999, o Denver Broncos foi campeão e não foi convidado a comparecer à Casa Branca, sem nunca ser dado um motivo, mas foi no período em que o presidente Bill Clinton estava sofrendo um processo de impeachment. No ano seguinte, o St. Louis Rams foi convidado, mas o convite foi retirado por conta da necessidade do governo se concentrar em costurar os acordos de paz entre o primeiro ministro de Israel Ehud Barak e o líder palestino Yasser Arafat. E em 2003, o Tampa Bay Buccaneers também não foi convidado pelo presidente George W. Bush, devido ao início da invasão dos EUA ao Iraque. Desde então, todos os campeões nacionais foram recebidos na Casa Branca.

Obama foi o único dos presidentes a receber os todos campeões da NFL durante seu mandato. Na imagem, o presidente exibe a camisa do Denver Broncos, em 2017 (Foto: Youtube).

O hino nacional e os protestos nos campos da NFL

Mas o envolvimento do esporte com a política não se resume a visitas aos presidentes. Desde 2016, vários protestos passaram a povoar os campos da NFL. O primeiro a realizar um protesto foi o jogador Colin Kaepernick, do San Francisco 49`ers. Ele primeiro se sentou. Depois passou a se ajoelhar durante o hino nacional, em protesto contra a desigualdade racial nos EUA. Alguns jogos depois e os protestos se intensificaram. Vários jogadores de diversas equipes passaram a tomar a mesma atitude.

Colin Kaepernick, pioneiro nos protestos. Hoje, sem clube, é um dos garotos propaganda da Nike. (Foto: instagram @kaepernick7)

Os protestos dividiram uma já dividida sociedade norte-americana. Parte da população respeitou. Outra parte achou que aquilo era um desrespeito. Obviamente que, com a chegada de Trump ao poder, o discurso nacionalista de que o protesto era um desrespeito ao país ganhou força. O presidente declarou diversas vezes, via Twitter, o que pensava a respeito:

“Os jogadores da NFL começaram de novo – ajoelhando quando deveriam estar orgulhosamente de pé durante o hino nacional. Vários jogadores, de vários times diferentes, querem mostrar sua “indignação” sobre algo que a maioria deles nem consegue definir. Eles fazem uma fortuna fazendo o que amam……”

No início de 2018, o campeão da NFL foi o Philadelphia Eagles. O interessante é que os Eagles nunca haviam sido campeões. E foram justamente os jogadores desta equipe (como Malcolm Jenkins, Chris Long e Torrey Smith) aqueles que lideram os protestos na NFL.

O hino “não oficial” do clube é do rapper Meek Mill, que está preso por violação da condicional e que foi várias vezes defendido publicamente por jogadores do Eagles. Os jogadores afirmavam que o rapper estaria preso injustamente e por questões de preconceito racial. Por conta da atuação desses atletas na “Coalizão de Jogadores” (espécie de sindicato alternativo) e com ações de caridade junto às comunidades de Philadelphia, os Eagles ganharam da imprensa o apelido de equipe mais “socially consócios” da NFL.

Malcolm Jenkins, jogador do Philadelphia Eagles. Um dos que afirmou que não iria à Casa Branca. (Foto: Instagram @philadelphiaeagles).

Após a vitória contra o New England Patriots, a maioria dos jogadores do Eagles declarou que não iria à Casa Branca. Por conta disso, o Philadelphia Eagles comunicou ao presidente que iria com uma delegação menor. Com esta medida, o presidente Trump cancelou a visita dos Eagles. Em seu Twitter, declarou:

“O Philadelphia Eagles foi convidado à Casa Branca. Infelizmente, apenas um pequeno grupo de jogadores decidiu vir, e assim nós cancelamos o evento. Ficar no vestiário enquanto toca o hino nacional é tão desrespeitoso ao seu país quanto ajoelhar. Desculpem!”.

Uma curiosidade para refletir na arquibancada brasileira

Trump acha desrespeitoso que jogadores se ausentem do hino, ou que se ajoelhem durante sua execução. Sabemos que Bolsonaro se diz palmeirense. Também diz ser nacionalista, extremamente respeitoso aos valores da pátria e fã declarado de Donald Trump.

Já encontrei duas vezes com Bolsonaro no estádio, na torcida do Palmeiras. A primeira vez em São Januário, em 2012, no último jogo de Felipão à frente do Palmeiras antes da queda para a segunda divisão. Uma quarta-feira à noite, fria, com uma derrota dolorida. Da outra vez, vi o atual presidente de passagem no Allianz Parque, não me recordo a data, mas foi após a queda da presidente Dilma. Se ele ainda mantiver o hábito de ir aos jogos do Palmeiras, sabe que há pelo menos uns dois ou três anos, um fenômeno acontece nas arquibancadas durante o hino nacional, seja em casa ou fora.

No momento do hino, os torcedores começam a cantar “Palmeiras, meu Palmeiras” por cima da letra original. Quase todo o estádio faz isso. A plenos pulmões. O canto chega a ser tão alto nas transmissões de televisão e rádio que os microfones localizados para captar o som das arquibancadas é cortado. Por cima, colocam um áudio do hino, ou apenas os microfones de quem o executar ao vivo. Veja neste vídeo como a torcida do Palmeiras se comporta durante o hino nacional:

No dia do jogo da entrega da taça, estaria o presidente eleito no estádio no momento do hino nacional? Teria ele alguma vez presenciado este fenômeno nas arquibancadas ao lado da torcida do Palmeiras? Como o palmeirense nacionalista e respeitoso aos valores da pátria deveria reagir a esta manifestação nas arquibancadas palmeirenses?

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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João Malaia

Historiador, realizou tese de doutorado em História Econômica pela Universidade de São Paulo sobre a inserção de negros e portugueses na sociedade carioca por meio da análise do processo de profissionalização de jogadores no Vasco da Gama (1919-1935). Realizou pós doutorado em História Comparada na UFRJ pesquisando as principais competições internacionais esportivas já sediadas no Rio de Janeiro (1919 - 2016). Autor de livros como Torcida Brasileira, 1922: as celebrações esportivas do Centenário e Pesquisa Histórica e História do Esporte. Atualmente é professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e atua como pesquisador do Ludens-USP.

Como citar

SANTOS, João Manuel Casquinha Malaia. Sobre taças, hinos nacionais e presidentes. Ludopédio, São Paulo, v. 115, n. 10, 2019.
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