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Somos todos quem? Estratégias de apagamento das diferenças para a manutenção das desigualdades étnico-raciais

Toda a vez que alguma minoria é celebrada, seja no dia internacional da mulher, dia da visibilidade trans, dia da consciência negra ou qualquer outro “dia de alguém”, aparecem conservadores “bem intencionados” para lembrar que todo o dia deveria ser de todo mundo, porque seríamos, ao menos conceitualmente, todos iguais. Esse pensamento faz bastante eco nos torcedores de futebol de estádio.

Breves ponderações antes de seguir: para quem não lembra, antes de o futebol ter acabado (somente com a vacinação em massa ele poderá começar de novo), torcedores eram aqueles indivíduos que iam ao estádio. Eram os torcedores e torcedoras nos estádios que criavam os sons que foram substituídos pela performance de um DJ e hoje estão representados por simulacros de papel ou faixas estendidas nos estádios. Cabe lembrar que a polícia e os seguranças dos estádios em diversas situações burocratizavam o processo do ingresso dessas faixas que, eventualmente, poderiam mesmo ser proibidas de ingressarem nas praças esportivas. Aparentemente, com os torcedores e as torcedoras nos estádios, as faixas ou bandeiras eram mais perigosas do que são agora, sem esses sujeitos. Já perdi muitas linhas com essa ressalva, mas preciso fazer mais uma. Neste texto, a palavra torcedores não será utilizado como categoria totalizante que incluiria homens e mulheres que torcem, mas são os homens que torcem.

De volta ao primeiro parágrafo. Durante minha pesquisa de doutorado[1], quando entrevistava os torcedores homens, brancos, cisgênero e, presumidamente, heterossexuais questionava o que eles pensavam sobre a possibilidade de existência de uma torcida homossexual nos contemporâneos estádios de futebol no Brasil. A maioria das respostas, contrárias a essa possibilidade de experiência múltipla, apontava que o clubismo deveria unir e não separar. O argumento dos torcedores do Grêmio (é possível entender que algumas das menções feitas pelos gremistas poderiam ser vistas em outras torcidas, mas, como meu campo empírico foi na torcida do Grêmio e não em outras, prefiro destacar a experiência empírica) era de que o “gremismo” deveria ser suficiente no estádio, não necessitando a diferenciação entre os gremistas. Cabe perguntar: quem esse gremismo silencia? Que gênero, cor, sexualidade, faixa etária, etc. tem esse torcedor abstrato e que gênero, cor, sexualidade, faixa etária, etc. esse torcedor exclui da experiência torcedora de estádio.

Torcida do Grêmio. Foto: Wikipédia

A negação por experiências múltiplas dentro da torcida é uma estratégia adotada por grupos normativos (privilegiados ou hegemônicos em outras perspectivas teóricas) para que essa norma seja reificada e possa continuar representando a si mesma e aos outros que obrigatoriamente passarão a ser os “não normativos”.

Os grupos sociais que ocupam as posições centrais, “normais” (de gênero, de sexualidade, de raça, de classe, de religião etc) têm possibilidade não apenas de representar a si mesmos, mas também de representar os outros. (…) apresentam como padrão sua própria estética, sua ética ou sua ciência e arrogam-se o direito de representar (pela negação ou pela subordinação) as manifestações dos demais grupos (LOURO, 2001, p. 16).

Este texto, como boa parte de minha trajetória acadêmica, é escrito em primeira pessoa. Este autor/pesquisador/torcedor não é um ente abstrato que voa no mundo e observa os fenômenos a partir de um olhar não construído culturalmente. Sou um gremista branco, cisgênero, heterossexual, de classe média e com trinta e oito anos. Essa descrição é uma opção metodológica que não procura tornar minha escrita excessivamente particular, mas ela procura mostrar quais quadros normativos me constituem e me autorizam a iniciar uma reflexão, “quando falamos de pontos de partida, não estamos falando de experiências de indivíduos necessariamente, mas de condições sociais que permitem ou não que esses grupos acessem lugares de cidadania” (RIBEIRO, 2019, p. 60). Muito do que os torcedores me disseram ao longo de minha investigação eu também já havia dito em algum momento. Eu também me fiz gente através do que tenho chamado de currículo de masculinidade dos torcedores de estádio. Mas também sou um pesquisador e bastante sensibilizado pelos discursos feministas e antirracistas.

O termo “lugar de fala” tem aparecido, na minha perspectiva, de um modo um tanto acelerado nas discussões, muito preocupado em desqualificar um interlocutor específico. Entretanto este conceito é muito potente, especialmente para marcar que todos temos um determinado lugar de fala. Se parece fácil “acusar” uma mulher feminista por ser mulher feminista ou um homem negro por ser um homem negro, é porque nós, homens brancos, cisgêneros, heterossexuais de classe média, falamos por todos e não a partir de uma determinada perspectiva. O gremismo solicitado pelos torcedores para afirmarem, por exemplo, sobre a não necessidade de uma torcida homossexual no estádio não é um marcador neutro ou universal. A norma do gremismo tem cor, tem gênero, tem sexualidade dentre outros atravessamentos.

Ser classificado como branco significa que esse indivíduo não pertence a um grupo racial porque apenas minorias raciais possuem raça; pessoas brancas são apenas seres humanos. Por não serem socialmente marcados, pessoas brancas se percebem apenas como indivíduos (MOREIRA, 2019, p. 57-58).

Nós, homens brancos, somos um grupo dentro dos humanos, não somos “os humanos”. Nós, gremistas brancos, somos um grupo dentro dos gremistas, não somos “os gremistas”. Se explodirmos esse gremismo branco, que se pretende universal, seria possível continuar interpretando os termos “macaco” e “macacada” que nossa torcida utiliza em relação aos torcedores do Internacional da mesma forma? O macaco de nosso rival é o mesmo para os gremistas de todas as cores?

Uma rivalidade racializada

O Rio Grande do Sul se narra como um estado constituído historicamente por pares opostos. O exemplo quase sempre inicia com as disputas políticas entre Chimangos e Maragatos passando por um petismo e antipetismo ainda na década de 1990 em função da prefeitura de Porto Alegre (antecipando o binarismo brasileiro), mas que encontra sua versão mais bem acabada na rivalidade Gre-Nal. Aqui em nosso fronteiriço estado chegou a ser criada a expressão “grenalização” quando temos discussões colocadas através de duas posições opostas e que não dialogam. “Nenhuma coletividade (…) se definiria nunca como Uma sem colocar imediatamente a Outra diante de si” (RIBEIRO, 2019, p. 35).

Apesar dessa narrativa, existem muitos conteúdos do gremismo que são idênticos ao do “coloradismo” e talvez o machismo e a homofobia sejam o exemplo mais facilmente identificável. Entretanto, as representações vinculadas a participação dos negros nos dois clubes são um tanto distintas. O Internacional encerrou a segregação racial antes do Grêmio o que neste contexto binário autorizou que o clube se apropriasse da alcunha de “clube do povo” contra o rival elitista e (pela proximidade enorme entre raça e classe no Brasil) racista. Gilmar Mascarenhas (2014) aponta que para melhorar sua equipe, o Internacional, a partir de 1937, passou a utilizar jogadores negros e pobres. Esportivamente o empreendimento colorado teve muito êxito com o clube conquistando nove dos dez campeonatos citadinos da década seguinte. O Grêmio, ao contrário do rival, oficializou apenas em 1952 o fim da discriminação racial no clube. Uma carta publicada no jornal Correio do Povo, em 6 de março daquele ano, assinada pelo, então, presidente Saturnino Vanzelotti afirmava: “A diretoria do Grêmio Foot-Ball Porto-Alegrense vem trazer a conhecimento de seus associados e simpatizantes que, por decisão unânime, resolveu tornar insubsistente a norma que vinha sendo seguida de não incluir atletas de côr em sua representação de futebol[2]”.

Mesmo que contemporaneamente, a distinção entre os torcedores dos clubes não encontre base empírica, as representações e a forma como a torcida do Grêmio continua se referindo a torcida do Internacional ainda permite uma leitura simbólica que divide os dois clubes.

Forma constituinte da rivalidade, o xingamento aparece de forma constante no comportamento nos estádios. No Beira-Rio era muito comum que o termo gremista fosse substituído pelo homofóbico gaymista enquanto na Arena (e ainda antes no Olímpico) os colorados fossem mais facilmente chamados de macacos e sua derivação macacada. Não são poucas as estratégias de justificativa para o uso dessa expressão. Ela passa por colorados que assistiam aos jogos na Chácara dos Eucaliptos pendurados em árvores passando pelo argumento de que o macaco é um animal que imita os humanos e os torcedores do Internacional imitariam os torcedores do Grêmio. A mais honesta, mas não menos preconceituosa (a que usei por mais vezes até abandonar definitivamente a expressão), defendia que, apesar da origem racista (diria que seria demasiado negar essa origem, mas no Brasil atual não tenho tanta certeza), o termo teria perdido esse caráter e passado a ser adotado como sinônimo de colorado, podendo ser utilizado para colorados negros e para colorados brancos, um pouco na mesma lógica do “somos todos iguais” através do clubismo. Apesar desse esforço argumentativo, é importante lembrar que “mesmo que os significados dos signos, dos nomes não seja fixo, definido ou definitivo, que eles se modifiquem ou deslizem, será muito improvável (talvez quase impossível) se livrar dos seus usos anteriores” (LOURO, 2016, p. 273).

Outro argumento utilizado à exaustão pelos torcedores é de que as manifestações que aparecem nos estádios são brincadeiras ou “cornetas”, em termo nativo. Não teriam a intenção de ofender, mas de provocar. Os torcedores justificavam que, no contexto do futebol, especialmente no estádio, as palavras poderiam possuir outros significados. Naturalizadas no contexto futebolístico, essas palavras utilizadas para ofender qualquer outro no estádio, passando pelos torcedores rivais, árbitros, jogadores adversários e do próprio time, trabalhadores da imprensa e etc., não são noticiadas. Elas parecem estar autorizadas pela percepção do espaço dos jogos e dos estádios (hoje sem estádio eles acabaram se multiplicando) como um espaço de humor com trocas jocosas que marcariam essa socialização torcedora.

Nos últimos tempos, tanto o humor quanto a literatura tentam fugir do controle do politicamente correto, justificando-se por certa concepção ou defesa de funções e práticas específicas que caracterizariam os campos literário e humorístico. Ou seja: com isso, contribuem para delimitar – ou para tentar delimitar – o espaço da literatura ou do humor, em relação, por exemplo, ao direito, ou à sociologia, à história e à política. Parece mais ou menos óbvio que uma coisa é uma piada racista ou machista e bem outra é uma lei machista ou racista (POSSENTI, 2013, p. 175).

Adilson Moreira utiliza o conceito de racismo recreativo para argumentar que essas supostas brincadeiras ofendem e fazem circular representações negativas de minorias raciais reproduzindo as relações assimétricas de poder em nossa sociedade. Ele “designa um tipo específico de opressão racial: a circulação de imagens derrogatórias que expressam desprezo por minorias raciais na forma de humor” (MOREIRA, 2019, p. 31).

Grenal
Fonte: Reprodução Facebook

Quem decide o significado das palavras?

Ao final do Gre-Nal pelo segundo turno do Campeonato Brasileiro em que o Internacional (infelizmente) quebrou uma série de 11 jogos de invencibilidade do Grêmio circulou um áudio em grupo de WhatsApp em que o misto de historiador, jornalista, humorista e gremista Eduardo “Peninha” Bueno fez referência, novamente, aos torcedores do Internacional como macacos. O Grêmio tem tentado com alguma insistência, especialmente após o Caso Aranha[3], que seus torcedores parem de fazer essa referência. Em 2014, o então presidente do clube, Fábio Koff, identificou o cântico dirigido ao coletivo de torcedores do Internacional como racista. Apesar das tentativas institucionais e de alguns grupos de torcedores, parece ainda não existir consenso sobre sua permissividade ou não.

Peninha Bueno argumentou em defesa do uso da expressão ao afirmar que macacos são os vermelhos e não os pretos, tentando aproximar a expressão dos colorados e não dos negros, utilizando uma das estratégias apontadas algumas linhas acima. Como jornalista e historiador, ele precisaria voltar poucas casas para saber porque os colorados foram associados aos macacos. Essas reflexões não podem ser feitas à distância. É nosso compromisso, enquanto sujeitos brancos, refletirmos sobre nossas práticas e desnaturalizar os nossos comportamentos. Eu torço para o time da minha família. A minha família adotou o Grêmio em um contexto em que ele era o clube dos brancos. Pela idade do Peninha a referência não tem como ser muito distante.

É necessário implodir a ideia de um consenso dentro de uma torcida de futebol. Talvez pensar a prática torcedora como a junção de muitos diferentes e não com o apagamento desses diferentes poderá potencializar o caráter de disputa por significados. Com os significados explicitamente em disputa poderemos lutar para pautar enfrentamentos que são de toda a nossa sociedade e que o torcer não pode mais autorizar. É necessário mostrar como esse “todos” normativo do torcer funciona. Ele serve apenas a uma pequena parcela dos torcedores, mas não inclui todos os torcedores, as torcedoras, xs torcedorxs… Quem sabe no enfrentamento ao racismo, ao machismo, a homofobia, a transfobia e todas as formas de opressão, ao invés de sermos todos gremistas, não poderemos ser muitos, muitas e muites gremistas.

 

Notas

[1] Bandeira (2017).

[2] Disponível em: http://observatorioracialfutebol.com.br/historias/futebol-a-cores-uma-historia-de-racismo-no-rio-grande-do-sul/. Acesso em 14/03/2021, às 19h08.

[3] Ver Bandeira e Seffner (2016).

 

Referências

BANDEIRA, Gustavo Andrada. Do Olímpico à Arena: elitização, racismo e heterossexismo no currículo de masculinidade dos torcedores de estádio. 2017. Tese (Doutorado em Educação). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017.

BANDEIRA, Gustavo Andrada; SEFFNER, Fernando. Aranha, macaco e veado: o legítimo e o não legítimo no zoológico linguístico nos estádios de futebol. In: Movimento. Vol. 22, n. 3, jul./set. 2016, p. 985-998.

LOURO, Guacira Lopes. Discursos de ódio. In: SEFFNER, Fernando; CAETANO, Márcio. (Orgs.). Discurso, discursos e contra-discursos latino-americanos sobre a diversidade sexual e de gênero. Rio Grande: Editora da FURG; Realize Editora, 2016, p. 271-282.

LOURO, Guacira Lopes. Pedagogias da sexualidade. In: LOURO, Guacira Lopes. (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2ª ed., 2001, p. 7-34.

MOREIRA, Adilson. Racismo recreativo. São Paulo: Pólen, 2019.

POSSENTI, Sírio. Humor, língua e discurso. São Paulo: Contexto, 2013.

RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Pólen, 2019.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Gustavo Andrada Bandeira

Possui graduação em Pedagogia (2006), especialização em Jornalismo Esportivo (2012), mestrado em Educação (2009) e doutorado em Educação (2017) todos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente é técnico em assuntos educacionais da UFRGS. Foi professor nos cursos de Especialização em Jornalismo Esportivo na UFRGS (2012-2013), Coordenação Pedagógica e Gestão Escolar na Escola de Gestores (2012-2016), Autor do livro Uma história do torcer no presente: elitização, racismo e heterossexismo no currículo de masculinidade dos torcedores de futebol. Integrante do Grupo de Estudos em Educação e Relações de Gênero (Geerge), do Seminário Permanente de Estudios Sociales del Deporte e do Observatório da Discriminação Racial no Futebol.

Como citar

BANDEIRA, Gustavo Andrada. Somos todos quem? Estratégias de apagamento das diferenças para a manutenção das desigualdades étnico-raciais. Ludopédio, São Paulo, v. 141, n. 47, 2021.
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