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The Matildas enfiaram 6 na Seleção: notas sobre o futebol de mulheres na Austrália

para Paula Botelho-Gomes e Claudia Kessler

Há poucas semanas, O Brasil tomou outro vareio internacional. Desta vez, nossos algozes foram as Matildas, a equipe Feminina Australiana de futebol, que enfiaram 6 x 1 na Seleção feminina brasileira no “Tournament of Nations” realizado no início de agosto nos Estados Unidos. Além de massacrarem o Brasil, as Matildas paparam o torneio de forma invicta, vencendo pela primeira vez na historia as anfitriãs (1×0) e convencendo contra o time do Japão (4×2).  Até onde eu sei este ‘vexame’ futebolístico passou quase despercebido na mídia brasileira, que não tomou muito conhecimento desta goleada.

Na Austrália,  o grande feito das Matildas infelizmente, também não teve a repercussão que merecia. Se no Brasil os ‘6×1’ não chegou às manchetes nem virou sinônimo de todo e qualquer descalabro público e social da nação (ah! Os eternos ‘7×1’ a mastigar pela eternidade nosso complexo de vira-latas!), na Austrália, as vitórias espetaculares e a conquista inédita das Matildas obtiveram alguma reação positiva da grande mídia e das mídias sociais – muito aquém, porém, do seu significado esportivo e histórico.

Comentaristas ‘sociais’ de todos os naipes, afoitos, encontraram a desculpa da vez para a ausência do espaço devido ao futebol feminino: o sucesso internacional das Matildas teria sido rapidamente abafado na cobertura jornalística pelos graves problemas que afetam a administração do futebol australiano, e com a recente visita da delegação da FIFA  para tentar minimizar a crise da Federação local – visita esta que aparentemente não foi bem sucedida.

O fato permanece: tivessem os Socceroos enfiado seis no Brasil e vencido um torneio com as principais seleções do mundo, todos sabemos o que teria acontecido: estátuas teriam sido erguidas, rádios, jornais, TVs, internet, tudo teria girado em torno deles por meses. Eles estariam bombando!

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No futebol de mulheres, entretanto, a historia é outra. Aliás, tem sido outra há muito tempo. Seja aqui ou no Brasil, elas tem que resistir e lutar para construir a própria história nos gramados. Deste modo, com muitos paralelos com a história das mulheres no futebol brasileiro, as australianas vem forjando nos campos de futebol mais um espaço importante para a luta pela equidade de gênero – seja em nível politico, educacional, social ou recreativo.

O contexto histórico mundial é bem conhecido. Mesmo sendo uma atividade predominantemente masculina, o futebol foi praticado pelas mulheres europeias desde o século XVIII, tanto de forma recreativa como competitiva. No início do século XX o movimento futebolístico das mulheres na Inglaterra chegou ao ápice, com jogos atraindo mais de 50.000 espectadores. Entretanto, com a constante oposição dos ‘donos da bola’, que escondiam seus preconceitos através de alegações pseudocientíficas de natureza biológica e médica para restringirem legalmente a participação esportiva das mulheres, as dificuldades foram aumentando e a presença delas nos campos diminuindo – ou será que elas continuaram jogando, mesmo contra tudo e principalmente todos?

Na Austrália, a presença das mulheres nos campos de futebol começou a ser noticiada na mídia ao final do século XIX. Uma pequena nota no West Australian em 1895 afirmava que ‘um jogo entre moças aconteceu recentemente em Melbourne, atraindo mais de 12.000 pessoas’. Referências a jogos femininos de futebol aparecem em diversas fontes desde os anos 1880, e se intensificam a partir de 1910. Nestas fontes há algumas confusões quando se menciona ‘futebol’, sem se saber ao certo se a notícia fala sobre rugby, Australian Rules ou futebol propriamente dito.

No período entre guerras, o futebol entre mulheres começou a florescer e ganhar reconhecimento: novos times surgiram em Melbourne e Brisbane (La Trobe Ladies Football Club, North Brisbane, South Brisbane) atraindo plateias na casa dos 10.000 torcedores para seus jogos. Entidades estaduais, como a New South Wales ladie’s soccer football association e a Queensland Ladies’ soccer football Association foram criadas em 1821 para organizar o jogo das mulheres. Clubes com nomes sui generis, como Arnotts, Zig-Zags and State Mine faziam jogos disputadíssimos, atraindo milhares de pagantes aos estádios para desfrutar desta nova forma de lazer, e para torcer pelas suas equipes e atletas favoritas. Os jornais da época noticiavam que as mulheres ‘jogavam com a mesma energia e vigor dos homens, e muito frequentemente brigavam tal como eles’.

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De fato, desde aquela época a mídia já gostava de narrar confusões e brigas. Assim, qualquer probleminha virava manchete. Casos de torcedoras que discutiram com goleiros adversários, ou mesmo de um árbitro que foi ‘enfiado na lama pelos dois times de mulheres depois do jogo’ em Lightow em 1931, ganhavam proeminência nos jornais locais.

A realidade patriarcal, entretanto, sempre se mostrou muito dura para as mulheres futebolistas. Os mesmos argumentos usados no Brasil e no mundo contra a prática de esportes de contato pelas mulheres eram também brandidos pelas bandas Australianas. Questões médicas, fisiológicas, estéticas, tudo era levantado para impedir que as mulheres se emancipassem nesta área tão importante para a vida social australiana. Na maior parte dos tempos, a participação feminina era restrita a ajudar nas cantinas ou a papel de voluntárias para ajudar na administração geral dos clubes, levantar fundos, cuidar dos campos e uniformes, entre funções deste tipo.

Depois da segunda Guerra Mundial, o futebol de mulheres se revitalizou na Austrália. Em New South Wales, o número de garotas e mulheres jogando, tanto formal quanto informalmente, não parou de crescer. Ao final dos anos 1970, havia 4.500 jogadoras adultas registradas na Australia, e 14.500 garotas menores de 18 anos jogando oficialmente o jogo de futebol – destas, 9.000 jogavam em New South Wales.

Nesta época, o futebol se expandia por todo o país. Competições estaduais foram estabelecidas nos estados de Victoria e New South Wales. Times internacionais visitavam a Austrália para jogar amistosos contra times locais, muitas vezes aproveitando que as seleções masculinas vinham jogar por aqui. O número de torcedoras também não parava de crescer, sendo que em Victoria, um estado fanático pelo Australian Rules, a quantidade de mulheres que assistia o futebol era minimamente inferior daquelas que frequentavam os estádios do maior esporte daquele estado, o Australian Rules Football.

Um nome importante no início dos anos 1960 foi Pat O’Connor, que fundou a Metropolitan Ladies’ Soccer Association em New South Wales, com uma liga que chegou a ter 12 times em sua competição principal.

Como secretaria-geral da Australian Women’s Soccer Association, O’Connor ajudou a organizar a primeira Copa Australiana de Futebol de Mulheres que se realizou em Sydney, em 1974; além de dirigente, ela também era jogadora e aos 35 anos foi uma das melhores atletas da competição. O’Connor também assumiu o posto de vice-presidente da Asian Ladies Football Confederation naquele mesmo ano, e mais tarde foi induzida no Hall of Fame do futebol australiano.

O futebol das mulheres continuou crescendo na Austrália; entretanto, mesmo conseguindo algum patrocínio de entidades nacionais, a maior parte dos custos sempre caía nos ombros das jogadoras, que tinham que se virar vendendo rifas e fazendo diversas atividades para angariar fundos e poder disputar competições estaduais e nacionais em um pais do porte da Austrália.

Somente em 1996 uma liga nacional de futebol de mulheres foi constituída, com seis equipes representando a maioria dos estados ou territórios australianos. A liga não durou muito, mas constituiu um embrião para o surgimento, anos depois, da W-League, que atualmente se configura como a liga semiprofissional de futebol de mulheres na Austrália.

Em nível internacional, o primeiro jogo de uma seleção australiana de mulheres aconteceu em  outubro de 1979 contra a Nova Zelândia, em um estádio chamado Sheymour Park, pertinho aqui de casa, no bairro de Miranda, no sudoeste de Sydney. Em 1994 o time Australiano de mulheres se classificou para o Mundial de mulheres a ser jogado na Suécia em 1995. Assim, em fevereiro de 1995 um grupo de jogadoras disputando vaga naquela seleção fez uma partida preliminar a um jogo amistoso dos Socceroos (a seleção masculina) contra a Colômbia no Sydney Football Stadium. No programa oficial, o time das mulheres foi chamado de ‘Socceroos feminino’. Assim que o jogo acabou, o SBS (um dos maiores canais televisivos públicos australianos) lançou uma competição entre seus espectadores para eleger o apelido do time das mulheres. Em maio de 1995, o nome ‘Matildas’ foi anunciado o vencedor. Apesar das resistências iniciais, o apelido pegou e desde o mundial de 1995 as Matildas vem competindo regularmente em nível internacional.

Waltzing Matilda é uma canção popular do folclore australiano. Muitos a consideram como o ‘segundo hino nacional’ da Austrália e a cantam fervorosamente no dia nacional após alguns drinques. A canção fala sobre uma personagem mitológica australiana, o ‘swagman’ que anda pelo país a procura de trabalho, com seu chapéu de palha e sua trouxa de pano onde carrega suas poucas roupas e pertences – a trouxa foi carinhosamente apelidada de ‘Matilda’. Waltzing Matilda significa, então, viajar pelo país tal como um swagman, com sua trouxa no ombro, procurando trabalho.

Muitas Matildas (jogadoras do time de mulheres) ainda estão assim, vendendo seu trabalho pela Austrália ou pelo mundo: quando acaba a curta temporada da W-League no verão australiano (quando chegam a jogar ao meio-dia sob temperaturas de 40 graus ou mais, com contratos temporários nos quais na maior parte das vezes recebem apenas o necessário para a sua subsistência), elas viajam aos Estados Unidos ou a Europa, para pegarem as temporadas de lá; ou seguem aqui, agora jogando em times da 2ª divisão. De uma forma ou de outra, as Matildas são guerreiras: há alguns anos já peitaram a federação Australiana, entrando em greve para exigir pagamento igual ao dos Socceroos, e a federação foi obrigada a cancelar a participação do time em um torneio internacional as vésperas da competição.

Como se viu nos seus resultados mais recentes, elas também são guerreiras nos campos. Melhorando cada vez mais como futebolistas e como time, com uma consciência social que vem crescendo, as Matildas tem tudo para brilhar nas próximas competições internacionais. No mês que vem, a Seleção Brasileira vem disputar uma série de amistosos contra as Matildas na Austrália. Eu já estou me perguntando com que roupa que eu vou.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Jorge Dorfman Knijnik

Nasci em Porto Alegre, cresci em São Paulo e brinquei carnaval em Pernambuco. Filhos, Frevo e Futebol. Tardes com meu pai assistindo o Pele jogar no Pacaembu. Recentemente publiquei o livro "The World Cup Chronicles: 31 days that Rocked Brazil", um passeio histórico e etnográfico sobre o Brasil antes, durante e depois da Copa de 2014 (https://amzn.to/2An9bWS). Atualmente moro em Sydney, na Austrália, onde sou professor da Western Sydney University - venha fazer doutorado comigo! Mas já aviso: continuo São Paulino! e um pouco gremista também.

Como citar

KNIJNIK, Jorge Dorfman. The Matildas enfiaram 6 na Seleção: notas sobre o futebol de mulheres na Austrália. Ludopédio, São Paulo, v. 98, n. 23, 2017.
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