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Thomaz Mazzoni e A Gazeta: a crônica esportiva nos anos 1930 e 1940 (parte 1)

Plínio Labriola Negreiros 3 de junho de 2020

“Já se passaram 56 anos da introdução do futebol ‘association’ no Brasil e 48 anos da disputa do primeiro campeonato de futebol no nosso país, e portanto já é bastante longa a história entre nós do popular esporte bretão. Mas torna-se difícil, muito difícil uma história fiel e detalhada porque, com o transcorrer dos anos, tudo foi desleixado. Ficaram poucos documentos, raros clubes organizaram seus arquivos, poucos esportistas arquivaram tudo quanto se escreveu e as próprias entidades são o que há mais de pobre nesse particular, de modo que pouco ou nada existe e as pesquisas, por obras de uns poucos estudiosos e abnegados, têm sido feitas penosamente.”

Thomaz Mazzoni, História do futebol no Brasil – 1894-1950

 

Nos anos 1930, o futebol no eixo São Paulo-Rio estava consolidado. Havia, sem dúvidas, uma série de pendências, como qual deveria ser a função desse esporte na formação do corpo do brasileiro, em um contexto em que as teorias eugênicas ganhavam fôlego. Nesse sentido, fazia parte do debate corrente desse período se a profissionalização do futebol era de fato um ganho para o futebol e a sociedade brasileira como um todo.

Amadorismo e profissionalismo, assim como a organização dos esportes no Brasil com a presença do Estado ou não, ocuparam muitas páginas da imprensa esportiva de São Paulo. Há cronistas importantes, referências dos torcedores e dirigentes dos clubes, mas este texto quer olhar para um: Thomaz Mazzoni, que assinava seus artigos diários n’A Gazeta, em regra, com o pseudônimo de Olimpicus.

Thomaz Mazzoni. Foto: Divulgação.

Em meados dos anos 1930, A Gazeta tinha uma linha editorial clara na defesa do profissionalismo no futebol. Outros importantes periódicos da cidade, caso d’O Estado de São Paulo, faziam muitas restrições ao esporte bretão profissional e, de múltiplas formas, defendiam o amadorismo. Eram frequentes críticas à desorganização do futebol. Teciam-se fortes restrições aos jogos de futebol, durante os meses mais quentes do ano, que começavam às 15 horas. Os seus cronistas afirmavam que era preciso defender a saúde dos atletas.

Vale destacar que A Gazeta, do jornalista Cásper Líbero, apoiou até 1930 os governos federal e estadual, tanto que o jornal foi empastelado durante a chamada Revolução de 30. Ao final dos anos 1930, uma decisão judicial indenizou o dono d’A Gazeta pelo empastelamento. Esse recurso financeiro permitiu que o jornal crescesse muito. Com a morte de Cásper Líbero – em 1943, aos 54 anos de idade, num acidente aéreo –, todas as propriedades do jornalista passaram a formar a Fundação Cásper Líbero.

A Gazeta Esportiva, na sua edição de 10 de outubro de 1997, dava mais informações sobre sua história:

A Gazeta foi fundada em 1906, pelo poeta e jornalista Adolfo Campos de Araújo. Em 1918, Cásper Líbero adquire o jornal. Dez anos depois, no dia 24/12/1928, lança um suplemento semanal de esportes. Este suplemento esportivo recebeu em 1938 o nome de A Gazeta Esportiva, continuando a ser publicado às segundas-feiras. No ano seguinte, já recebia fotos coloridas. A partir de 1941, passou a ser publicada duas vezes por semana.

A Gazeta reservava um espaço especial para os esportes, ou seja, uma seção subdividida em várias partes, com colunas fixas e esporádicas. Ao se colocar a favor do profissionalismo, não apontando essa condição como geradora das dificuldades pelas quais o futebol passava. Além disso, dava atenção às condições de vida e de trabalho dos atletas profissionais.

Para A Gazeta, o esporte enquanto fator de educação também era importante; e não só para os praticantes. O esporte deveria ser um espaço privilegiado de formação da população. Educar-se-iam praticantes e apreciadores dos esportes e das atividades físicas.

Origens da crônica esportiva

Na seção esportiva especializada em futebol, na Gazeta, um cronista se destacava: Thomaz Mazzoni. Antes de apresentá-lo, vale mostrar que era esse personagem do futebol. Num trabalho com o objetivo de escrever sobre os sessenta anos da história do futebol em São Paulo (Escrevendo uma história, in: VV.AA., Concurso Comemorativo do 60º Aniversário da Introdução do Futebol em São Paulo), o cronista esportivo Adriano Neiva (que assinava seus artigos como De Vaney), em 1954, narra a origem desse profissional:

Nos primórdios da crônica esportiva, as funções não eram fixas nem, muito menos, compensadoramente remuneradas. A maioria dos ‘cronistas’ trabalhava de graça, só para ter o ensejo de escrever em jornal, já que essa era a sua inclinação, e para poder, principalmente, defender seu clube, porque, naquele tempo, tal como hoje, o ‘cronista’ tinha o seu clube preferido, com a diferença de que, antes, àquele tempo, ninguém fazia segredo disso. Pelo contrário: eram comuns os escudos à lapela dos ‘cronistas’ e indispensável as suas presenças nas comemorações dos triunfos. O redator profissional, mas que fazia da imprensa um simples ‘bico’, tanto podia ser ‘cronista’ de esportes no domingo, como redator policial na 2ª feira, crítico teatral na 3ª, repórter de rua na 4ª, observador político na 5ª ou – o que não era raro – ser tudo isso ao mesmo tempo… Não havia especialização.

Adriano Neiva também apresenta o momento em que essa condição inicial começava a ser modificada:

Só a partir de 1920-21, é que os proprietários de jornais, olharam o cargo de ‘cronistas’ de esportes por um outro ângulo, o que fazia ver o interesse, sempre crescente que iam tendo os esportes, principalmente o futebol. E houve uma como que regulamentação da profissão, tudo muito precário, sem garantias, sem compensações. Os pagamentos eram irrisórios e a maneira de pagar mais irrisória ainda: – o ‘vale’, esse ‘vale’ que foi o vale de lágrimas de uma geração inteira de jornalistas, já que não havia – com poucas exceções – outra forma de pagamento senão o do ‘vale’ a ser recebido no balcão, sempre na dependência do comportamento do fígado do gerente ou do estado financeiro da ‘caixa’.

Thomaz Mazzoni, desde o início dos anos 1930, era o mais importante cronista esportivo de São Paulo; condição essa também presente na década seguinte. Esta nota biográfica de Mazzoni, falecido há 50 anos, em 1970, no livro O olho na bola, organizado por Milton Pedrosa, publicado em 1968:

Thomaz Mazzoni. Jornalista. Brasileiro naturalizado. Nasceu em 1900. Cronista esportivo desde 1920, tendo feito sua primeira crônica sobre futebol para o semanário São Paulo Esportivo. Fundador e diretor de várias publicações esportivas. Lançou o Almanaque Esportivo em 1928. Adotou o pseudônimo de ‘Olimpicus’, com que assinou um sem número de trabalhos e iniciativas. Como historiador, é autor de inúmeras obras, entre as quais História do futebol no Brasil, Histórico do Palestra, O Brasil na taça do mundo, Problemas e aspectos do nosso futebol, Histórico do Ipiranga, Histórico do Corinthians, etc. É autor do romance sobre o fundo do futebol: Flô – o melhor goleiro do mundo. Chefe da seção de esportes de A Gazeta e seu redator-chefe a partir de 1947, mantendo no mesmo jornal uma crônica esportiva diária. Várias vezes premiado por seus trabalhos sobre o esporte. Eu sou Pelé, um trabalho de sua autoria incluído na antologia Gol de letra – o futebol na literatura brasileira.

Thomaz Mazzoni[1], em meados dos anos 1930, mostrava o futebol vivendo uma profunda crise. Esta não deveria ser entendida como herdeira direta da profissionalização, mas sim a partir do que ele denominava de mentalidade clubística. Ou seja, fazia uma forte crítica aos interesses individuais defendidos pelas pessoas que dirigiam o futebol. Esse espírito clubístico era muito característico dos grandes clubes, que dominavam as entidades esportivas, como ele escrevia, em 1939, já em pleno Estado Novo, na obra Problemas e aspectos do nosso futebol:

Que representam os clubes? No nosso esporte cada clube equivale a um partido político, todos querem mandar… A política dos clubes poderosos é dominadora, é absoluta.

Além de defender medidas paliativas que pudessem melhorar o futebol em certas circunstâncias, tinha uma proposta muito clara e que não cansou de defender: o futebol no Brasil deveria ser organizado pelo Estado e não mais pelos dirigentes dos clubes. Estes, para Mazzoni, de tão viciados, não tinham como ser recuperados para uma nova ordem esportiva.

O sucesso do golpe de Estado em 10 de novembro de 1937, que deu origem à ordem autoritária dirigida por Getúlio Vargas, levou o cronista da Gazeta a acreditar que os ares do novo regime logo chegariam aos esportes. Ou seja, Mazzoni entendia que a intervenção do governo nas questões esportivas viria com rapidez, já que seria plenamente compatível como a ordem que estava se estabelecendo no país.

De imediato, não foi o que aconteceu. Mas Mazzoni continuava na sua jornada em defesa de uma nova ordem para os esportes, inclusive utilizando-se de um quase bordão: Quando o 10 de novembro chegar ao futebol esse tipo de abuso não mais irá ocorrer. Ou seja, para Mazzoni era imperativo que o futebol fosse dirigido por pessoas de absoluta confiança do governo. Solução, para ele, só com a presença disciplinadora do Estado. Presente no Problemas e aspectos do nosso futebol, o discurso do cronista d’A Gazeta é claro:

Facções, clubismo, pessoalismo, liberalismo, anarquias, tudo isso é lixo que a oficialização deve queimar para o bem do esporte brasileiro. Necessitamos do império da obediência, da disciplina, e de um só comando.

O esporte a serviço do Brasil requer disciplina idônea, e o esportista deve ser educado e orientado, portanto, dentro da doutrina do Estado Novo. Fora dos princípios do regime não se pode compreender o esporte como força viva da Nação!

Por outro lado, o torcedor, tão apaixonado pelo futebol e por um determinado clube, também tinha suas preferências entre os cronistas esportivos. Dessa maneira, Paulo Schiesari, torcedor e conselheiro do Palmeiras, num depoimento oral colhido em 1996, lembra de Mazzoni:

Gostei muito do meu amigo Thomaz Mazzoni, Olimpicus. Gostei muito do Miguel Munhoz da Gazeta. Acho um espetáculo como eles eram corretos. Nem sempre coincidiam com aquilo que… eu sabia que… a cor do clube não fascinava os dedos deles na caneta. Eles eram muito corretos: Miguel Munhoz e Thomaz Mazzoni.

O conselheiro e dirigente corinthiano Chico Mendes, em depoimento oral colhido em 1996, também lembra de Mazzoni:

O próprio Thomaz Mazzoni, que todo mundo dizia que ele era palestrino, nasceu na zona dos bareses, na rua do Gasômetro. Ele gostava do Corinthians. Ele era um cara que começou escrevendo coisas simples e depois se tornou um estudioso e um grande escritor. O valor dele esteve na grande vontade que ele teve em estudar o futebol, as regras e escrever. Escrevia simples e bem. O Olimpicus…

E para quem acompanhava o futebol, esperava-se uma publicação ágil, especializada e muito envolvida com o futebol e com os outros esportes. Para essas pessoas, A Gazeta era uma referência. Até porque o cotidiano do bairro também era encontrável nas páginas daquele jornal. Nesse sentido, observemos este relato de Haim Grünsp, contido no livro de memórias Anatomia de um bairro, o Bexiga:

Havia dois jornais lidos no bairro: ‘A Gazeta’ e o ‘Fanfulla’. O ‘Correio Paulistano’ e o ‘Estado de São Paulo’ e mesmo os Diários ou Folhas eram jornais de elite de São Paulo e não chegavam muito no bairro. Os moradores do Bexiga liam especialmente as notícias de futebol, que eram palestrinas no ‘Fanfulla’ e são-paulinas ou corinthianas, na ‘A Gazeta’, portanto muito menos sectárias. Foi assim até a chegada da ‘Gazeta Esportiva’ em anos posteriores, que passou a ser quase o único jornal lido.

O passado do futebol paulista

Um outro aspecto que merece atenção nas análises de Mazzoni é a maneira como ele lia o passado do futebol em São Paulo. Para boa parte da crônica esportiva, não era pequeno o saudosismo acerca do futebol dos anos 1910 e 1920. Referia-se a essa época como a do auge do futebol, marcado por grandes conquistas e por jogadores de qualidades excepcionais. Enfim, a época de ouro do futebol, em que a disciplina e a educação esportiva estavam presentes. O período em que as multidões ainda não haviam ocupado seus espaços, de forma definitiva, dentro desse esporte.

Olimpicus, por sua vez, recusava-se a pensar o passado do futebol nestes termos. Apesar de reconhecer as grandes conquistas e os importantes jogadores das duas primeiras décadas, não reforçava a ideia de um futebol pleno de organização e disciplina. Fazia questão de mostrar as inúmeras contradições que faziam parte desse esporte desde os seus primeiros momentos. Ainda em Problemas e aspectos do nosso futebol lembra que “o esporte nacional desde que nasceu tem vivido de desordem em desordem e cada vez, como é natural, as suas crises são mais graves”.

E, em última instância, uma questão maior estava colocada quando se discutia o que havia sido o passado do futebol em São Paulo: qual memória acerca do mesmo que estava sendo construída? Por que se valorizava tanto o futebol dos anos 1910 e 1920? Por que os melhores jogadores dos anos 1930, conforme alguns cronistas, mal poderiam ser comparados com os grandes atletas dos anos 1910? De certa maneira, isso pode ser visto como uma forma de mostrar como o futebol do início do século, de caráter elitista, atingiu um momento de auge. Já com o processo das multidões “invadindo-o”, este deixava de ser uma atividade nobre, perdendo a sua capacidade educativa junto ao corpo e ao espírito. Assim, por trás dessa divergência entre Mazzoni e a parte saudosista da crônica esportiva, encontrava-se a intenção de construir uma certa memória do futebol. Ao final, as elites seriam lembradas como praticamente as únicas a jogarem o futebol dentro das entidades oficiais nos primeiros anos.

Vale ressaltar que a superioridade da prática amadora dos esportes era apenas uma idealização. A defesa que ela estava isenta de problemas graves não se sustentava. Na seção Liga Bancária de Esportes Athléticos, d’O Estado de S. Paulo, na edição de 8 de fevereiro de 1936, anunciou:

Em reunião de 6 do corrente a diretoria desta Liga tomou as seguintes deliberações:

a) suspender durante a temporada de 1936 o amador Walter Salles de Carvalho, inscrito irregularmente pela A. A. Banco do Brasil, no campeonato bancário de 1935.

b) censurar por escrito a A. A. Banco do Brasil, por inscrever o amador Walter Salles de Carvalho, quando este não era funcionário efetivo do Banco do Brasil, conforme declarou em seu pedido de inscrição.

Ora, se a diretoria da Liga Bancária – uma das muitas entidades que na época organizava competições esportivas de caráter amador – sentia-se na obrigação de punir um atleta e a sua associação esportiva, demonstrava que também no esporte amador continuavam a existir várias irregularidades, a ponto de uma fraude ser cometida. Ainda que os defensores do amadorismo poderiam contra-argumentar que, ao menor sinal de imoralidade esportiva, a entidade amadora esteve atenta no sentido de restabelecer a ordem, punindo severamente os que cometeram deslizes. Por outro lado, não se tratava de um amadorismo puro, já que os times tinham os nomes das suas empresas e, com isso, a publicidade era mais do que inevitável, proposital. Ou seja, era interessante aos bancos que esses clubes esportivos existissem, porque, entre outros motivos até mais importantes, seus empregados estariam levando o nome do banco para inúmeros espaços. De fato, tratava-se de uma forma de publicidade.

A Gazeta e os seus leitores-torcedores

Por outro lado, é preciso entender a opção dos torcedores pela leitura da Gazeta. Ou seja, apenas a quantidade de notícias e o fato de apresentar algum destaque para certos clubes mais populares levariam os moradores do Bexiga, por exemplo, a optarem pela Gazeta? A postura elitista do Estado de São Paulo, que praticamente ignorava os acontecimentos daquele bairro, também contribuía para uma aproximação com o jornal de Cásper Líbero? Essas duas questões foram decisivas. Tratava-se do fenômeno do torcedor de futebol. Daquele sujeito apaixonado por um clube, que não apenas frequenta jogos, como escuta os comentários feitos no rádio, pratica o esporte, participa do futebol de várzea – normalmente através de um clube no seu bairro –, sempre envolvido em discussões, intermináveis sobre o assunto. Ou seja, estamos diante de um periódico que levou a sério a sua relação com o torcedor.

A Gazeta, Edição Esportiva, Anno X, n. 531, São Paulo, 10 maio 1937. Foto: Reprodução.

Destarte, como se afirmou, um periódico como A Gazeta teve a clareza de que, quanto mais envolvido estivesse esse torcedor com o jornal, melhor. O leitor/torcedor deveria perceber que ele teria naquele diário um espaço significativo, no qual ele poderia expressar suas ideias, suas angústias, sua paixão. Mais do que isso: o jornal deveria ser uma referência a todos os esportistas; prometia ser o espaço das notícias de todas as abrangências, do local ao internacional. Em função disso, nas páginas da Gazeta encontravam-se espaços dedicados aos esportes amadores, com destaque ao futebol varzeano, estabelecido em cada bairro da cidade de São Paulo. O morador de um bairro operário tinha a chance de encontrar notícias do seu time local nas páginas esportivas do periódico do jornalista Cásper Líbero. Esse mesmo leitor, a qualquer momento, poderia estar citado nas folhas da Gazeta, por causa de mesmo futebol varzeano. Em regra, isso não tinha chance de ocorrer nos outros periódicos da cidade.

Thomaz Mazzoni e a violência no futebol

O leitor d’A Gazeta sentia-se participante na construção das análises. Na segunda metade da década de 1930, o tema da violência dos torcedores era recorrente nas páginas do periódico. Não era raro que os campos fossem invadidos e atletas e árbitros fossem agredidos. Mas também os jogadores eram apontados como responsáveis diretos pela violência cotidiana nas partidas de futebol. Numa partida entre o São Paulo Futebol Club e o S. P. R., os atletas acabaram-se envolvendo numa batalha campal e um leitor mandou uma carta para o jornal, para a seção O que nos escrevem os leitores, em junho de 1937, com o intuito de comentar o ocorrido:

Se o juiz, sr. Arthur Cidrin, tivesse agido com energia desde o começo, expulsando do campo o jogador Passarine, que foi o primeiro a praticar jogadas violentas, nada teria acontecido, pois os demais jogadores, vendo o castigo do companheiro indisciplinado, controlariam seus nervos, evitando-se assim o fim triste como se escoaram os 2 minutos finais da partida.

Sobre a violência provocada pelos jogadores, Mazzoni, ainda em Problemas e aspectos do nosso futebol, tinha uma explicação simples e direta:

Entre nós, quando sucede o caso de um jogador inutilizar outro, nem sequer é punido com o rigor que mandam as leis futebolísticas, isto se o seu clube é poderoso.

Não punem e por isso raro se tornou em nossos dias o castigo de um elemento mesmo culpado dos mais lamentáveis acidentes. É que, na maioria das vezes, alega que a ação foi casual.

Porém, ainda discutindo as confusões verificadas naquele jogo, o leitor propõe uma outra questão, que é o tratamento que a imprensa esportiva dava a cada grande clube da cidade. Ou seja, trata-se da relação entre o torcedor e a imprensa esportiva. Prossegue o leitor:

Tenho notado, sr. redator, que em partidas onde tomam parte os grandes clubes, nas quais muitas vezes têm havido sururus, a imprensa esportiva silencia sobre os acontecimentos, onde muitas vezes a polícia intervém para serenar os ânimos dos brigões; no entanto, quando acontece qualquer anormalidade numa partida em que toma parte o S. Paulo F. C., toda a imprensa tem o prazer em explorar os menores incidentes da partida e fazer, em seguida, grandes alardes, verdadeira propaganda, com a vitória de certo esquadrão da Liga, que também muitas vezes promove incidentes em campo, mas para o qual tudo faz passar em brancas nuvens.

A Gazeta Esportiva, Ano XXIV, n. 8.992, São Paulo, 7 fev. 1955. Foto: Reprodução.

A crítica recai aqui sobre a imprensa esportiva, acusada de destinar tratamento diferente para cada clube grande de São Paulo, destacando privilégios de alguns, ao contrário do São Paulo Futebol Clube. Essa abordagem do leitor revela a sua leitura crítica, ainda que mediada pela paixão. Mas, de qualquer modo, ele busca algumas contradições na produção da imprensa esportiva.

Por outro lado, quando a imprensa e torcedores, começam a clamar pela presença policial nos estádios de futebol, colocavam este esporte como incapaz de se auto-organizar. Assim, o esporte mais popular da cidade e do país necessitava de um tentáculo estatal: a repressão e intimidação pela força policial. Ou, mais uma vez, o medo das multidões; estas precisavam ser acompanhadas de perto.

Ao mesmo tempo, todos os que denunciavam as ações violentas por parte dos torcedores não conseguiam explicação para esse fenômeno. Ou melhor: as análises existiam, mas eram simplistas, como as que imputam aos assistentes má formação pessoal. Essas análises não se preocupam em explicar a forma como a sociedade estava organizada, ou mesmo como o futebol estava constituído. Assim, todos os males do futebol encontravam-se nos seus personagens, fossem dirigentes, torcedores, árbitros ou jogadores, mas entendia-se como uma questão pessoal, como a do diretor de um clube ou entidade esportiva, que era acusado de personalismo e clubismo. Ou seja, as mazelas do futebol deveriam ser explicadas de dentro para fora. Ainda que, para Thomaz Mazzoni, também em Problemas e aspectos do nosso futebol, ao menos um culpado existia:

A imprensa, no mais das vezes, é quem forma o ambiente, especialmente para os confrontos de maior tensão, de circunstâncias excepcionais. Se essa imprensa foge de sua verdadeira missão, se é escandalosa e perniciosa, envenena o ambiente. Os jogadores vão a campo mal intencionados, os ‘torcedores’ ficam de prevenção contra tudo que não seja do seu lado, degeneram, e a tara da indisciplina, que é horrivelmente antiesportiva quando se manifesta no futebol indígena, tudo desvirtua, tudo arruína.

Depois de tanto clamar por uma intervenção policial como solução para a violência presente nos campos de futebol, esta, finalmente, chegava. De certo modo, podemos considerar que essa atitude da polícia de São Paulo foi resultado das contínuas manifestações dos cronistas esportivos e dos torcedores, que podiam se manifestar através da seção O que os leitores nos escrevem. Não era mais possível manter um futebol que pecava, segundo A Gazeta e seus leitores, por ser mal organizado, indisciplinado e que, portanto, acabava não servindo aos interesses da “pátria”. Esta intervenção surgia, conforme noticiava o jornal em abril de 1937, com um título sugestivo, Intervenção oportuna:

Ontem, à tarde, esteve na Chefatura de Polícia um alto paredro da Liga, afim de tomar conhecimento das medidas que serão adotadas doravante pela polícia, a fim de garantir a ordem e a moralidade nos espetáculos futebolísticos. A Portaria da ‘Censura’ a respeito, nós divulgamos hoje, para conhecimento dos clubes, jogadores e ‘torcedores’. Aos jogadores rebeldes e brutais serão aplicadas, além de multas, prisão com processo, etc. Outras medidas enérgicas atingirão os promotores de desordens nos campos esportivos.

Eis a Portaria da ‘Censura’, de que a Liga e a Apea tomaram conhecimento ontem a noite:

PORTARIA

Afim de normalizar definitivamente a situação do futebol profissional, nesta Capital, determino ao serviço geral de fiscalização de divertimentos públicos desta seção que sejam severamente observadas as disposições que se seguem, devendo ser comunicadas quaisquer irregularidades constatadas, para a respectiva aplicação de pena. (Decreto nº 4.405-A, de 17 de abril de 1937).

Penalidades

De 100$000 até 370$000:

[…]

C) Os jogadores não poderão promover desordens ou arruaças em campo, desacatando as decisões do árbitro;

[…]

K) A autoridade incumbida do policiamento nos campos de futebol mandará autuar em flagrante os jogadores que promoverem desordens ou que se tornem autores de ofensas físicas de qualquer natureza, durante a realização dos jogos de futebol.

Essa portaria surgia após a violência dos campos durante os anos de 1936 e 1937, o que era motivo de notícia e de crítica quase diárias. Mas, avançava-se, como já se afirmou, muito pouco na explicação desses atos violentos. Normalmente, aparecia um qualificativo que tentava plenamente dar conta daqueles acontecimentos: má educação esportiva. Assim, quando a polícia finalmente resolveu intervir, os cronistas da Gazeta receberam muito bem a medida. Isto posto, comenta Thomaz Mazzoni no mesmo dia da publicação da portaria, num artigo nominado Disciplina policial:

O futebol – demos então o alarme – acabará sob a tutela da polícia. A disciplina policial vai se impor à disciplina esportiva.

Esta se degenerou. Já nos desiludiu bastante, não sendo mais possível cultivá-la, pois os primeiros a desvirtuá-la foram os próprios dirigentes do ‘association’.

A polícia, bem ou mal, poderá ser mais útil, mais eficaz. Talvez não demorarão muito a se arrependerem clubes, diretores e jogadores, do novo estado das coisas, e então lamentar-se-ão de terem arrancado o futebol de ambiente puramente esportivo e que merecia viver em paz. Não o quiseram fazer trilhar no caminho da correção, mas doravante terão que agir às direitas sob o controle e a vigilância rigorosa da polícia.

É o castigo justo, merecido, a que fizeram jus. Bem feito.

Aliás, já estava demorando a benéfica intervenção das autoridades policiais.

As palavras do jornalista são muito claras. Ou seja, o futebol se degenerou, portanto, já não era mais possível que ele se auto-organizasse; era preciso uma força externa para dar fim àquela situação de crise. E como diz Mazzoni, castigo merecido e tardio. Enfim, trata-se de se discutir a disciplinarização em todos os setores sociais. Ou em outras palavras: o país já vivia um Estado de Sítio para coibir a indisciplina na política, materializada pelo levante comunista de novembro de 1935; o futebol não podia ficar de fora.

Porém, observamos que a violência não cessou, apesar de parte da crônica esportiva acreditar que a solução final havia sido encontrada. Buscava-se uma harmonia através do poder policial dentro de uma sociedade conflituosa.

Uma notícia acerca de uma partida, publicada em junho de 1937 pela Gazeta, dois meses depois da portaria policial disciplinando os jogos de futebol, demostra como a violência não havia terminado. Novamente ocorria uma agressão a um árbitro, agora no jogo Portuguesa Santista e Estudantes Paulista. A agressão partiu do time luso, por parte dos seus associados. Mas nesse caso, uma novidade: a reclamação se dirigia mais contra a polícia, que além de se mostrar incapaz de conter os tumultos, ainda os aguçou, com muitas agressões aos torcedores. A Gazeta apontava uma nova solução: punir o clube pelas arruaças dos seus apaixonados torcedores.

A questão da violência no futebol envolveu cronistas esportivos e leitores/torcedores num processo semelhante a uma cruzada. As opiniões dos cronistas d’A Gazeta, principalmente, influenciavam decisivamente os leitores do jornal.

(continua)


Nota

[1] Ver mais sobre Thomaz Mazzoni neste link.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Plinio Labriola Negreiros

Professor de HistóriaEstudo a História do Corinthians Paulista e do Futebol

Como citar

NEGREIROS, Plínio Labriola. Thomaz Mazzoni e A Gazeta: a crônica esportiva nos anos 1930 e 1940 (parte 1). Ludopédio, São Paulo, v. 132, n. 7, 2020.
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