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Thomaz Mazzoni e A Gazeta: a crônica esportiva nos anos 1930 e 1940 (parte 2)

Plínio Labriola Negreiros 23 de julho de 2020

Promovendo o futebol: campeonato de Torcida Uniformizadas

A seção dos leitores foi perdendo espaço e deixou de ser publicada por alguns anos. Ela voltou apenas em 1942. Essa atitude da redação d’A Gazeta, fechando esse canal de comunicação capaz de envolver todos os personagens ligados ao esporte, em especial o futebol, tem ligação direta com o regime ditatorial implantado em 1937. Da mesma forma, a sua volta no início de 1942 vinculou-se à decisão do governo brasileiro de entrar na guerra do lado norte-americano, justamente no período em que o regime começava a perder a sua força.

Durante a Ditadura Vargas, a seção “O que os leitores nos escrevem” não teria muito espaço. Mesmo os artigos opinativos sobre o futebol, em função da existência do Estado Novo, tornaram-se mais raros e menos impetuosos.

Promovendo o futebol

O olhar holístico d’A Gazeta em torno dos esportes estabeleceu outras relações entre a imprensa, o mundo do futebol e os seus leitores. Como esse esporte era o mais apaixonante e popular esporte do país, em que grandes partidas eram sinônimo de grandiosas plateias — verdadeiras multidões —, ele era muito procurado no caso da necessidade de se arrecadar dinheiro. Este poderia ser para a seleção de futebol que iria disputar a Copa do Mundo na França; poderia ser para alguma entidade assistencial, como para custear o cigarro dos pracinhas que foram combater o Eixo na Europa, em função da II Guerra. A imprensa esportiva, quando da promoção desses jogos, não se cansava de elogiar o humanitarismo dos torcedores, que poderiam, ao mesmo tempo que assistiam a uma boa disputa, contribuir para uma causa justa e, muitas vezes, numa situação emergencial. Nesse sentido, num artigo não-assinado na Gazeta, em maio de 1941, discute-se a importância de se organizarem jogos entre os cariocas e os paulistas, que arrecadassem dinheiro para as vítimas de inundações ocorridas no Rio Grande do Sul. Aliás, nesse artigo, mostra-se o quanto os paulistas estavam envolvidos e disponíveis para esses eventos, enquanto denuncia-se o descaso dos cariocas. Qualquer momento era propício para que os sentimentos bairristas fossem acionados; esses movimentos bairristas ocorriam tanto por parte da imprensa paulista quanto da carioca.

Na Gazeta, ainda existia uma outra relação imprensa esportiva-torcedor: tratava-se de campanhas para arrecadar dinheiro para um fim específico do futebol, sem qualquer caráter assistencial. Nesse sentido, A Gazeta criou uma campanha com o intuito de se constituir um fundo para realizar a compra de medalhas para os atletas paulistas, campeões brasileiros de futebol, depois da vitória sobre os cariocas. Diz a nota de dezembro de 1941:

O público do Pacaembu não deve deixar de contribuir para a aquisição de medalhas aos Campeões Brasileiros de 1941 — A coleta, hoje e amanhã, será feita pelos ‘fans’ corinthianos e são-paulinos.

Nos dois grandes encontros de hoje à noite e amanhã à tarde, as ‘famílias’ corinthiana e são-paulina, associando-se à cruzada de A Gazeta para que o público esportivo de São Paulo renda sua homenagem aos Campeões Brasileiros de 1941, conferindo-lhes as medalhas de ouro que fizeram por merecer pela sua magnificente vitória, percorrerão o Estádio do Pacaembu afim de realizar uma coleta em prol desse alevantado objetivo.

Atire o seu níquel!…

Atire, pois, seu níquel na Bandeira que ‘Tan-Tan’ e sua ‘torcida’ conduzirão hoje à noite, e que amanhã será conduzida pela álacre e ruidosa ‘torcida’ do São Paulo F. C.. É a bandeira da F. P. F. Que outra vez, galhardamente, subiu soberana ao mastro da vitória!

Concentração da ‘Torcida’ Corintiana

‘Tan-Tan’ pede a presença de toda a ‘torcida organizada’ do Corinthians, hoje às 18 horas e meia, no Parque São Jorge, a fim de que receba todas as instruções referentes à coleta a ser feita pró-aquisição de medalhas populares aos Campeões Brasileiros.

Nessa campanha — sintomaticamente denominada de cruzada —, com o intuito de homenagear os jogadores da seleção paulista de futebol, o periódico paulista buscava o apoio dos torcedores. Porém, nesse momento, com uma novidade significativa: entre o jornal e os torcedores, aparece uma mediação: a torcida uniformizada. Tem-se, assim, um novo personagem no futebol, que é o líder da torcida. No caso do Corinthians, a figura de Tan-Tan é citada. Ele, para o periódico e para o próprio clube, torna-se uma espécie de porta-voz de toda a torcida corinthiana; ele era um sócio do clube e essa tarefa foi designada pela diretoria do Corinthians. A Gazeta, mais do que apoiar essa novidade, colaborou para que isso ocorresse.

Da mesma forma, a constituição de torcidas uniformizadas — com o intuito de incentivar o time nos campos esportivos — não deixa de ser sintomática para esse momento, final dos anos 1930 e início dos 1940. Essas torcidas faziam parte da estrutura dos clubes e o seu líder era escolhido pela diretoria entre os associados. O já citado Paulo Schiezari, sócio do Palestra desde os anos 1930, conta mais sobre essas torcidas:

Tinha uma torcida que era comandada por Agostinho Záccaro, pai desse maestro. Está vivo… A torcida era dos sócios do clube. Inclusive fazíamos uma coreografia muito bonita com bandeiras, pedaços de papelão, tudo pintado, fazíamos mapas. Era uma coisa muito linda, muito linda. E havia treinos antes. Era muito bonito, muito bonito mesmo.

E A Gazeta, mais uma vez, percebeu que era interessante aproximar-se dessas torcidas organizadas. Nesse sentido, esse periódico organizou uma disputa entre as torcidas organizadas dos clubes que disputavam o campeonato paulista, na qual a pontuação vinculava-se a alguns quesitos, como cantos de guerra, harmonia, números de integrantes e disciplina. Junto à tabela de classificação dessa disputa, apresentada todas as semanas, encontravam-se alguns comentários acerca de uma torcida ou outra. Em um desses comentários, elogiou-se a disciplina da torcida do Corinthians, que mesmo assistindo à derrota do seu time, não produziu qualquer manifestação de violência ou “deseducação esportiva”. Sem dúvida, com essa campanha, que premiava os torcedores, estes eram valorizados enquanto tal, fazendo da Gazeta, ainda mais, uma referência no meio esportivo paulista. Ao mesmo tempo, essas torcidas e os seus líderes eram legitimados frente aos outros torcedores e aos personagens ligados ao futebol.

Thomaz Mazzoni. Foto: Divulgação.

Porém, mais do que valorizar os torcedores de cada clube de São Paulo, a organização do campeonato de torcida era capaz de produzir outros efeitos. De certa maneira, essa disputa extracampo, acabava exercendo uma função controladora sobre esses torcedores. Nos quesitos avaliados encontrava-se, não sem qualquer vinculação com os valores daquele momento, o item disciplina. Ou seja, por mais que seja difícil dominar plenamente o que os julgadores da Gazeta entendiam por esse termo, pode-se inferir acerca do intuito controlador dessa iniciativa do periódico. Enfim, não apenas os clubes deveriam passar por um processo de controle, mas também os seus torcedores. Para o jornal, além da questão do aumento do controle sobre os torcedores dentro e fora dos campos esportivos, ocorria um estreitamento nos laços com os leitores. Ou seja, a cada dia, A Gazeta sabia como aproximar-se dos seus leitores.

No regulamento desse campeonato de torcidas, pode-se encontrar os quesitos, com seus respectivos pesos, conforme anúncio em setembro de 1943:

(…) Artigo 5º – As classificações e seus respectivos pontos serão os seguintes:

— Disciplina — 100 e 50 pontos.

— Entusiasmo — 50 e 20 pontos.

— Coro e organização — 80 e 40 pontos.

— Harmonia e originalidade — 50 e 20 pontos.

— Número de componentes — 50 e 20 pontos.

Mais uma vez, o mais importante era a disciplina. O regulamento ainda continha outros detalhes. Por exemplo, na contagem geral, a torcida de um clube poderia ser a vencedora; mas, a torcida de um outro clube poderia ter ido melhor num dos itens, então ela era também premiada. A Gazeta, sem dúvida, com essa campanha que valorizava as torcidas e premiava os torcedores, conseguiu fazer das disputas entre torcidas um espetáculo à parte. Inclusive, estas chegavam a fazer exibições especiais fora dos jogos dos seus times. Mas, não podemos deixar de comentar que essa mesma torcida tão festejada, seria muito controlada. Primeiro, pelo seu próprio clube; e, agora, pelos dirigentes de um periódico, no caso, A Gazeta. Nesse sentido, temos as palavras de Thomaz Mazzoni, analisando a importância dessa promoção do jornal em que ele escrevia diariamente, em março de 1943:

Nas arquibancadas os ‘fans’ uniformizados também estarão se ‘defrontando’ pela conquista do título de melhor ‘torcida’ de 1943. Competição difícil, porque, ao contrário do que se pode julgar, a melhor ‘torcida’ não será aquela que mais barulho irá fazer e, sim, a que melhor sabe incentivar os seus jogadores, a mais unida, a que sabe cultivar bem a disciplina, a mais numerosa, mais harmoniosa e original.

Mazzoni, como que construindo uma analogia com os rumos que o país seguia dentro de um regime autoritário, apresentava a importância da organização para se conquistar a vitória:

A competição para ser vencida, pois, necessitará, antes de mais nada, e uma direção e orientação superiores. Já se sabe que essa nova realização da organização da ‘Gazeta’ não tem finalidade secundária, como se pode julgar à primeira vista e, sim, um maior objetivo de tornar cada vez mais disciplinada a nossa ‘torcida’ futebolística, alegre e harmoniosa, exigindo-lhe o verdadeiro sentido de sua responsabilidade.

E concluía a sua fala mostrando como era fundamental a função a ser desempenhada pela torcida uniformizada:

A ‘torcida’ oficial é pequena, perante a massa dos espectadores, isso é verdade, mas não devemos esquecer que em um futuro não muito distante a influência dos ‘fans’ uniformizados irá ser decisiva sobre a massa. Essa é, talvez, a melhor escola do ‘torcedor’, que deve substituir aquela velha e crônica escola do fanático que insulta os adversários, que só quer saber da vitória do seu clube, que rasga a caderneta na hora da derrota, que é chamado de ‘corneta’ e de ‘sócio da vitória’. A escola da ‘torcida’ dirigida e organizada tende a regenerar o fanático… Nessa competição é certo que veremos se aperfeiçoar, cada vez mais, a nossa ‘torcida’ uniformizada.

Assim, para Mazzoni, mais essa promoção do jornal A Gazeta, em colaboração com a Rádio Gazeta, trazia elementos muito interessantes para se analisar como a imprensa esportiva, ou parte dela, entendia a função social do futebol; inclusive, é possível perceber como o ideário dominante do Estado Novo esteve impregnado no futebol; e até como esse ideário também havia partido do próprio futebol.

O cronista Mazzoni trabalhava com vários conceitos que fizeram parte da concepção de nação, da sua construção, que estiveram presentes durante todos os anos 1930, com maior vigor, durante o regime ditatorial comandado por Vargas. Assim temos: educação, disciplina, harmonia, aperfeiçoamento, regeneração, massa, direção, orientação, entre outros termos. Como é muito interessante a justificativa do jornalista quanto a essa nova promoção da Gazeta: poderia parecer a um olhar pouco atento, que se tinha algo sem muita importância, pois, qual poderia ser a utilidade de se premiar uma torcida de futebol? Mas a sua resposta foi mais do que incisiva: o intuito final seria que todos os torcedores fossem disciplinados.

Assim, o papel das torcidas uniformizadas, organizadas e dirigidas a partir das diretorias dos seus respectivos clubes, consistiu numa tarefa primordial: educar cada um dos torcedores ‘avulsos’, que faziam parte daquela massa ignorante. As torcidas teriam, então, um papel de vanguarda.

Nesse sentido são muito significativos os elogios dirigidos à torcida uniformizada do São Paulo Futebol Clube, feitos em setembro de 1943:

Os rapazes chefiados por Casanova, graças a uma exibição simplesmente monumental, com a apresentação daquelas alegorias admiráveis, tais como o mapa do Brasil, as fotografias do presidente da República, dr. Getúlio Vargas e de D. Pedro I, assim como de outras demonstrações originais, fez jus à conquista dos mil pontos, levando de vencida o campeonato das ‘torcidas’ uniformizadas.

Inclusive, valeria a pena pensar se haveria possíveis relações entre o fato de as torcidas serem uniformizadas e as experiências nazi-fascistas, que também faziam uso de uniformes. Mais do que o uso de uniformes: o grito de guerra, as manifestações das torcidas uniformizadas, ou “oficiais” — como prefere Mazzoni —, as coreografias eram ensaiadas, dependendo da direção da torcida. Assim, um problema se coloca.

Como se vê nas crônicas de Antônio de Alcântara Machado, a grande virtude do torcedor, em cima de uma arquibancada, é quando a sua paixão pode ser manifestada, seja com gritos, xingamentos ou longos silêncios, que parecem guardar muita dor, a dor do derrotado. Querer disciplinar, dar uma direção utilitária à ação do torcedor, comungava com o espírito do Estado Novo.

O futebol tinha de ser um espaço também educativo, em função de que a nação estava sendo construída e nenhum setor social poderia deixar de dar a sua contribuição. Aliás, o futebol tinha muito a oferecer, já que era um dos principais espaços de encontro de multidões. Educar, regenerar, aperfeiçoar, disciplinar: isso era esperado de todas as instituições brasileiras e ainda mais do futebol, por ser, talvez, mais brasileira que muitas outras, como já se começava a analisar.

Assim, esse concurso, promoções e toda a sorte de fatos que pretendiam valorizar o torcedor enquanto tal, faziam da Gazeta, ainda mais, uma referência no meio esportivo paulista. Dessa forma, aqui valeria discutir a questão da imprensa esportiva do Rio de Janeiro, que possuía um futebol tão ou mais poderoso que o jogado em São Paulo, o que explica parte de tanta rivalidade, mostrando inclusive como essas imprensas caminharam para a mesma direção em muitos momentos. Mas esse é o tema para um outro texto. Com em outro texto, será importante pensar se Thomaz Mazzoni exerceu um papel análogo a de Mário Filho em relação a ser uma fonte para os pesquisadores da história do futebol.


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Plinio Labriola Negreiros

Professor de HistóriaEstudo a História do Corinthians Paulista e do Futebol

Como citar

NEGREIROS, Plínio Labriola. Thomaz Mazzoni e A Gazeta: a crônica esportiva nos anos 1930 e 1940 (parte 2). Ludopédio, São Paulo, v. 133, n. 54, 2020.
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