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Tobogã: da construção à reintegração de posse (parte 1)

“A construção do Estádio Municipal do Pacaembu sintetizou uma época de sedimentação do futebol popular, sua construção foi produto de um contexto de reformulação urbana e arquitetônica, marcado pelo espírito de servir ao desenvolvimento de uma ordem industrial, que buscava com exaustão beneficiar a acumulação do capital”.

PEREIRA, João Fernando, “A construção do Pacaembu”, São Paulo, Paz e Terra, 2008, p. 9.

 

No presente ensaio, dividido em duas partes para publicação no Ludopédio, elaboro uma livre análise motivada pelas obras referentes à concessão de gestão do Estádio Municipal do Pacaembu para uma empresa privada. É dado destaque à demolição do setor de arquibancadas popular “Tobogã”, iniciada na última segunda-feira (29/06/2021), fato que permite levantar hipóteses sobre distintas questões e relações referentes ao direito à cidade, ao lazer e à participação política. Embasam a elaboração do texto, a pesquisa de mestrado desenvolvida pelo autor entre os anos de 2014 e 2016 (na área da Antropologia, e tendo o Estádio do Pacaembu como importante campo de pesquisa), e discussões sobre a História social, econômica e política do Brasil (presentes na trajetória do autor em razão da atuação no ensino da disciplina de História para Ensino Fundamental II e Ensino Universitário entre os anos de 2017 e 2021). 

No início do século XX São Paulo se “desenvolvia” em diversos aspectos, o que impactou em sua relevância no cenário nacional: população, industrias, migrações, culturas, urbanização, economias e afins. Inevitavelmente ao curso da história, com ênfase para o período de êxito do capitalismo ocidental, onde há concentração de riquezas, há poder.

Os fatores citados acima se retroalimentavam mutuamente, impulsionados por setores da burguesia nacional e europeia que investiam nestes “desenvolvimentos”, tendo mais vistas aos lucros e poderes que poderiam lhes gerar, do que à construção de uma sociedade propriamente organizada, igualitária e saudável – como demonstrarei adiante. 

Nesse cenário, o futebol (é sempre gostoso lembrar) se popularizou pelas capitais do Brasil – e, em São Paulo, irradiou-se rapidamente rumo aos interiores: com a construção de ferrovias que cortam o estado, eram possíveis viagens com vagões repletos de europeus e asiáticos recém chegados, e também, com toneladas de café a ser exportado. A “mão de obra” cruzava o Atlântico, ia de Santos à capital e para os interiores, o “valioso produto”, o “Ouro verde”, era levado dos interiores para o litoral, e embarcado pela mesma via marítima rumo à Europa e América do norte. 

Sobre a “mão de obra” que chegava ao país desde o fim do século XIX, é impossível não mencionar a “Política de branqueamento da raça”, estimulada durante o período da República Velha, e que tinha, como um dos intuitos, colocar à parte da “Sociedade brasileira” a população de africanos e descendentes, na historiografia tradicional, ditos como “recém libertos da escravidão”.

Seres sociais, quando se deslocam pelos espaços, levam consigo uma densa bagagem cultural, e o futebol foi uma dessas práticas que chegou ao Brasil, como consequência dos investimentos nos tais “desenvolvimentos”: aos fatores que tornaram São Paulo a “Locomotiva do Brasil”, pode-se adicionar o expressivo papel paulista e paulistano na popularização das práticas esportivas como ferramentas educativas, recreativas e políticas. Não por menos, em 27 de abril de 1940, Getúlio Vargas, presidente do Brasil, inaugurou o Estádio do Pacaembu, entregando-o “como um marco da grandeza de São Paulo a serviço do Brasil”.[1]

O estado e sua capital, durante a primeira metade do século XX, se consolidaram como um dos principais centros políticos (e futebolísticos) do Brasil, e o monumental Estádio do Pacaembu  – em 1994 outorgado ao título de “Patrimônio histórico” pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) – seria mais um investimento para retroalimentar o projeto de “desenvolvimento” nacional – ou, da burguesia nacional. 

O Estádio e o Complexo esportivo do Pacaembu foram construídos ao longo de quatro anos, com verbas públicas, estaduais e municipais, em uma área de 75.000 metros quadrados, doada pela “Companhia City” (responsável, no início do século XX, pela urbanização de diversas regiões da cidade de São Paulo). Chama a atenção que no “Documento de doação de terreno” do “Arquivo da Cia. City”, a medida da área é descrita como “a quantia de 75.000 metros quadrados de terras”. [2]

Temos, portanto, uma empresa privada, em uma região que buscava desenvolver-se sob as lógicas do capitalismo industrial e liberal, concedendo a doação de uma “quantia”, uma porção em valor monetário, para uma obra pública. Seria uma doação filantrópica ou um investimento?

A Cia. City transformou a região do Pacaembu de uma área de “várzeas e charcos” em uma série de terrenos. A empresa realizou também obras para diminuir os aspectos rurais e inóspitos da região, como canalizar um extenso ribeirão, pavimentar sobre ele uma avenida e abrir praças. Apresentou também um projeto de urbanização inovador, o de “Bairro Jardim”, tratando-se, desde este princípio, uma “área nobre” da cidade. Os lotes, então, passaram a ser comercializados para a construção de um bairro residencial no ano de 1925. Dez anos mais tarde, havia já um bairro que contava com vias asfaltadas e áreas arborizadas, e nos lotes eram construídas grandes casas e mansões – as áreas não comercializadas eram alvo de intensas campanhas publicitárias.[3]

Em 1936, o futebol de espetáculo já fora profissionalizado no Brasil, e assistir aos jogos nos campos se destacava como prática de lazer por grandes contingentes de paulistanos. Neste período, as práticas esportivas eram deveras propagandeadas como ferramentas importantes para o desenvolvimento do corpo, do espírito e da nação. 

No ano de 1936, a Cia. City doa a “quantia” de 75.000 metros quadrados, próxima a uma das extremidades da Avenida Pacaembu, para a construção do Estádio e de um complexo esportivo, vizinhos aos terrenos que eram comercializados pela empresa para a construção de mansões. Qual o impacto publicitário de uma grande área de lazer a poucos metros de um bairro residencial com terrenos à venda? O terreno do estádio, foi uma doação ou um investimento? 

O Pacaembu inicia uma era marcada pela construção de grandes estádios para grandes públicos de futebol no Brasil, entre as décadas de 1940 e 70, o que foi parte de investimentos econômicos e políticos da burguesia nacional. O Estádio do Pacaembu, inaugurado por Getúlio Vargas, à luz do Estado Novo, portanto, fazia parte de um projeto: era importante ter o controle das massas, tê-las presentes, unificadas e, se possível (como no ato de inauguração do Pacaembu) que ouvissem as palavras do “grande líder” nacional. 

Pacaembu
Foto: Filipe Araújo/Fotos Públicas

Se as obras do Pacaembu foram marcadas pela junção dos intuitos econômicos do setor privado e o projeto político da ditadura do Estado Novo, em 1970 novas camadas de concreto foram adicionadas ao estádio sob os desígnios de outra ditadura. A construção de um setor de arquibancadas em formato de “rampa” (nomeado como “Tobogã”), que acomodava cerca de quinze mil pessoas atrás de um dos gols, ampliou significativamente a quantidade de público que o estádio comportava. 

O Estádio do Pacaembu, em sua inauguração, chegou a acomodar setenta mil pessoas, tinha, portanto, capacidade para grandes públicos, mas poderia ficar maior. Foi durante a gestão do então prefeito Paulo Maluf, indicado ao cargo em razão da simpatia à ditadura, que a construção do Tobogã – em uma área em que havia uma concha acústica, onde ocorriam espetáculos de música e ballet – foi efetivada, sendo finalizada em 1970. Esta obra coincide, pelo calendário e pelo vínculo dos sujeitos ao projeto político vigente, com investimentos para transformar o futebol em um instrumento da ditadura. 

Em “A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura”, o historiador Hilário Franco Jr. apresenta eventos históricos que ilustram a relação futebol-política no Brasil na ditadura posterior a de Vargas: a indicação do general Médici para a presidência da república em 1969; a conquista do tricampeonato mundial pela seleção em 1970; investimentos em meios de comunicação inovadores para a época (como a televisão), que permitiam tanto a transmissão dos jogos, quanto de propagandas do governo; a criação do Campeonato Brasileiro em 1971; a disputa de dezenas de amistosos pela seleção nacional entre 1971 e 1974; a construção de trinta estádios Brasil adentro entre 1972 e 1975. “Era a pátria de chuteiras e de boina militar”.[4]

O papel do futebol nesta ditadura era semelhante à ditadura de outrora: aglomerar as massas para ter controle sobre os indivíduos, utilizar o esporte e suas paixões como veículo de um tipo de nacionalismo autoritário. Seria a construção do Tobogã, então, uma obra à serviço dos objetivos políticos de um projeto autoritário, dentro de um estádio outrora erguido com os mesmos fins?

Se, perante o exposto, a resposta for positiva, adiante analisa-se também os usos e significados deste setor para além dos fatos e motivações políticas que permearam sua construção. Se a resposta for negativa, a análise posterior (na parte 2 deste texto) proverá mais reflexões e argumentos sobre as hipóteses que aqui se levanta.

Notas

[1] “Inaugurado o Estádio do Pacaembu”, in: O Estado de São Paulo, 28/04/1940, p. 8. Apud. PEREIRA, João Fernando, A construção do Pacaembu, São Paulo, Paz e Terra, 2008, p. 87.

[2] “Documento de doação de terrenos. Arquivo da Cia City”, Apud. PEREIRA, João Fernando. A construção do Pacaembu, São Paulo, Paz e Terra, 2008, p. 59.

[3] PEREIRA, João Fernando. A construção do Pacaembu, São Paulo, Paz e Terra, 2008, p. 69.

[4] FRANCO JUNIOR, Hilário. A dança dos deuses: futebol, cultura, sociedade. São Paulo, Companhia das letras, 2007, p. 140-145.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

BOCCHI, Gabriel Moreira Monteiro. Tobogã: da construção à reintegração de posse (parte 1). Ludopédio, São Paulo, v. 145, n. 4, 2021.
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