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Tobogã: da construção à reintegração de posse (parte 2)

Gabriel Moreira Monteiro Bocchi 11 de julho de 2021

Nos cinquenta anos de uso, o Tobogã foi consolidado como o principal setor popular no Estádio do Pacaembu. Era um dos dois setores com ingressos mais baratos no Pacaembu, e, eventualmente, o acesso a ele para jogos de “times grandes” de São Paulo oferecia preços promocionais e até gratuidades – como em Março de 2016, quando o São Paulo Futebol Clube realizou uma ação para celebrar o Dia internacional da mulher em um jogo, oferecendo acesso gratuito para mulheres no Tobogã.

Entre 2011 e 2014, últimos anos de uso contínuo do estádio pelo Corinthians, acompanhei a torcida deste time em pesquisas de campo, como aluno de graduação em Ciências Sociais, e mestrado em Antropologia, e o Tobogã mereceu muita atenção – tornou-se um importante subitem na dissertação apresentada.

Ele era o setor acessado por torcedores não filiados ao programa de “Sócio torcedor” do clube e pelos associados que iam a poucos jogos. Eram comuns no Tobogã torcedores que, vez e outra, viajavam à capital do estado para ver um jogo, mas não podiam comprar os ingressos mais caros das cadeiras laterais. Era um setor em que um trabalhador que saiu do trabalho, e decidiu, em cima da hora, ir ao estádio, frequentemente conseguia comprar um ingresso barato. Era um setor cujo ingresso era adquirido por torcedores que passavam as horas antes do jogo pedindo “contribuições” nas filas das bilheterias para poder assistir à partida.

No Tobogã não permaneciam torcidas organizadas, era um setor do “Torcedor povão” (termo utilizado por torcedores organizados para se referir àqueles não organizados). Por essa razão, era um espaço do estádio benquisto por aqueles que preferem assistir ao jogo do que torcer coletivamente – embora, em razão de sua angulação e posicionamento em relação ao campo, proporcionasse uma visão desprivilegiada de alguns lances das partidas. O “Torcedor povão”, que se incomodava com as regras de conduta construídas pelas torcidas organizadas nos setores que ocupam, tinha, portanto, no Tobogã, um espaço para assistir ao jogo, sem ser coagido a cantar ou encenar coreografias, pelo custo mais baixo.

Por outro lado, era um pouco malquisto por torcedores que gostam de acompanhar o jogo com mais agitação, cânticos coletivos e movimentos de corpos organizados e repetitivos, por vezes perdendo um e outro lance do jogo em nome da festa no estádio. Esse perfil de torcedor preferia acompanhar os jogos do Corinthians nas arquibancadas atrás do gol do “Portão principal”: embora os ingressos para ambos setores tivessem o mesmo preço, os ângulos de visão e a presença das torcidas organizadas, tornavam estas arquibancadas mais desejosas de acesso para estes torcedores do que o Tobogã – mas, como celebrou certa vez um corinthiano de torcida organizada: é melhor estar no jogo no Tobogã, do que não estar!

Se o Tobogã foi erguido em um momento de intensa instrumentalização do futebol à favor de uma ditadura militar, os cinquenta anos de uso do setor por torcedores o recobriu de outros sentidos. Era um local para lazer, para encontros, conversas e sociabilidades diversas entre os torcedores, não só relacionadas ao futebol. Era um espaço de subversões, tanto quando era cedido à torcida visitante, quanto nos jogos em que as torcidas visitantes eram posicionadas em um setor muito próximo ao Tobogã, tais geografias permitiam interações ofensivas e jocosas entre torcedores rivais. E, é impossível não mencionar, foram os entulhos de uma obra neste setor (e a total ineficiência das políticas de segurança pública) um dos fatores que contribuíram para a trágica “Batalha do Pacaembu”, em 1995. 

Desde o encerramento da construção da antiga Arena Corinthians (atual NeoQuímica Arena), grandes jogos e eventos se tornaram raros no Estádio do Pacaembu. O discurso da “ociosidade de um bem público” justificaram que todo o Complexo Esportivo do Pacaembu fosse, em 2019, no governo do prefeito Bruno Covas, concedido para gestão de uma empresa privada. 

A demolição do Tobogã faz parte dos novos projetos para o estádio e, hoje, 29 de junho de 2021, assisti às imagens da demolição dos andares de cimento daquela arquibancada com perplexidade, mas não com surpresa: se o concreto erguido faz parte de investimentos e projetos políticos, não seria diferente com o ato de demoli-lo. 

Pacaembu
Foto: Filipe Araújo/Fotos Públicas

Assistir as cenas de máquinas derrubando o setor de arquibancadas populares do seu, do meu, do nosso Pacaembu,  remetem a acontecimentos sombrios, tanto já consumados no tempo, quanto os que, especulamos no horizonte político, estão por vir.

Como ver aquelas escavadeiras cutucando, remexendo e perfurando o concreto sem recordar de cenas de reintegrações de posses? Casas e barracos populares  sendo esmigalhados, para que os terrenos sejam devolvidos pelo estado para o uso daqueles que os têm “por direito” – afinal, estas terras têm de servir ao “desenvolvimento”, e não para moradia de indivíduos que não se enquadram como sujeitos no atual projeto de nação.

Como não recordar das políticas de urbanização e gentrificação praticadas no Rio de Janeiro durante a presidência de Rodrigues Alves, logo nos primeiros anos do século XX, que expulsaram africanos e afrodescendentes da região central da então capital brasileira? O intuito ali era modernizar e “desenvolver” – o curso da história, e um olhar atento à capital carioca, ainda na atualidade, nos permitem compreender a quais parcelas da sociedade serviriam e serviram estes intuitos modernizantes.

Se, no século XX, capital privado e agentes políticos viam os estádios de futebol como locais para grandes massas, na última década, já no século XXI, a presença de público nos estádios,  e os vínculos do capital com o futebol, passaram por mudanças. A estratégia dos produtores do evento “Jogo de futebol” na atualidade é ter um público menor, mas que pague ingressos mais caros e consuma mais itens e serviços dentro das “arenas”. Menos gente tem acesso aos grandes jogos de futebol, e a seleção para tal acesso é a renda.

Em nenhum documento oficial relacionado ao futebol brasileiro vê-se a proibição de acesso a pessoas de baixa renda nos estádios. Tal qual a “Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil”, de 1891, não trazia explicitamente em seu texto uma sentença que informasse a proibição do acesso ao voto por pessoas de baixa renda, tal direito era limitado aos postos militares mais altos e homens, maiores de vinte e um anos, e alfabetizados. 

Como não havia uma estrutura de educação pública naquele Brasil, o acesso à alfabetização – tal qual a empregos de remuneração significativa, para além da subsistência, na atualidade – era restrito. Portanto, vemos o direito à participação política, e o direito à fruição de um espetáculo cultural, apesar da distância de cento e trinta anos, sendo distribuídos a partir da mesma lógica: cindir os indivíduos de uma mesma sociedade em privilegiados e excluídos, participantes e não participantes.

A demolição do Tobogã leva ao chão o concreto do sonho de um futebol popular e acessível, ampliando o raio dos excluídos do futebol. Desmembra memórias afetivas da realidade concreta. Limita mais ainda a democratização de acesso ao lazer e de acesso à cidade. Intensifica os projetos de gentrificação e exclusão social nos equipamentos que compõem o tecido urbano. É mais um passo, físico e simbólico, não da “transformação” do futebol em um espetáculo elitista, mas na consolidação desta realidade – e as matérias da grande mídia sobre o “Centro de convenções” que será erguido no local, já sinalizam e convencem sobre como a obra será importante para o seu, o meu, o nosso “desenvolvimento”.  

Prefiro classificar este evento como uma “Reintegração de posse”, e retomo as reflexões históricas do início do texto para justificar a escolha do termo. 

A construção do Estádio do Pacaembu (como analisado em detalhes na primeira parte deste texto) pode ser vista como produto dos interesses de um empresariado, uma vez impulsionados e materializados como objetivos de um projeto político autoritário. 

Quando o Tobogã foi erguido no Pacaembu, no ano de 1970, havia o objetivo de ampliar a capacidade de público nos estádios brasileiros. Naquele período os estádios de futebol encaixavam-se no projeto político vigente como grandes praças esportivas para grandes públicos. Populismo e futebol (é sempre amargo de lembrar) mantém uma estreita relação desde meados dos anos de 1930.

Mesmo que a construção do setor popular tenha implicado na demolição de uma erudita concha acústica, que oferecia espetáculos da “alta cultura” ocidental, naquele momento, para aquele projeto político, a unificação nacional intentada por meio do controle de grandes massas populares, soava mais importante do que os espetáculos de música e ballet oferecidos ao público naquele espaço. 

Tobogã Pacaembu
Avanço da demolição do Tobogã do estádio do Pacaembu. Foto: Filipe Araujo/Fotos Públicas.

Projetos políticos se renovam, alcançam objetivos e os reformulam. Perdem eleições, praticam golpes, sofrem golpes, somem do imaginário popular, mas voltam mais fortes – “Ideia não se mata”, disse um ex-condenado que teve seus julgamentos anulados ao deixar o cárcere. 

Em que momento da História do Brasil, por exemplo, a “Política do branqueamento” foi significativa e amplamente substituída, sem críticas da burguesia nacional, por uma política de equidade racial? Quais vínculos ideológicos há entre os atuais grupos políticos que exercem cargos nos poderes executivos paulistano, paulista e nacional, com grupos e sujeitos de outrora, mencionados no texto, e ex-ocupantes destes cargos? 

Controverso, benquisto, malquisto, popular, populista, mas, inegavelmente um lugar vivido, significado e ressignificado por seus frequentadores. As razões da construção e demolição do Tobogã, bem como, da construção do Pacaembu e sua recente concessão à iniciativa privada, encontram-se no mesmo ponto: projetos políticos de ordem liberal, elitista e autoritária, que arbitrariamente convocam e expulsam o povo de seus espaços, unicamente conforme suas conveniências e necessidades de “desenvolvimentos”, sem preocupações com consequências sociais.

A “quantia” de terra do Tobogã (para manter o termo do contrato de “doação” do terreno para o Estádio do Pacaembu), que por cinco décadas foi ocupada por populares e periféricos, enfim, é agora reintegrada às demais posses e capitais acumulados dos sujeitos historicamente poderosos e privilegiados no Brasil.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

BOCCHI, Gabriel Moreira Monteiro. Tobogã: da construção à reintegração de posse (parte 2). Ludopédio, São Paulo, v. 145, n. 19, 2021.
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