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Tóquio 2020: entre teimosias, tradições e inovações

Wagner Xavier de Camargo 4 de abril de 2021

Acordei cedo e com sensação de ressaca alcoólica no dia 31 de março último, apesar de não ter ingerido absolutamente nenhuma bebida na noite anterior. Embaixo de minha janela, numa das garagens do estacionamento do condomínio, dois moradores discutiam sobre algum problema que demoro a entender. Num movimento que já se tornou automático, liguei a televisão para saber notícias da pandemia, do mundo.

Março fechava como o mais letal de todos dos meses em termos de mortes por Covid-19, ao menos no Brasil. Em cada cinco pessoas que morreram no país no decurso da doença, uma perdeu a vida em março. Uma triste estatística que computou cerca de 66.573 mortes acumuladas no mês. Enquanto preparo o café, ouço a notícia vindo do Japão, a qual dizia que os Comitês Olímpico e Paralímpico Internacionais confirmavam, mais uma vez, a realização dos Jogos em Tóquio… um desalento. Nessa hora os moradores, um deles o síndico, gritam alto e percebo de longe que, independentemente do assunto, as opiniões eram contrárias e um fazia parte do time de negacionistas – aliás, cada vez mais presentes entre nós nestes tempos.

Entre a água do café que ferve, a notícia que ouço na TV e a discussão que se avoluma, estabeleço, frívola e mesmo loucamente, uma conexão. O síndico explicava (talvez pela enésima vez) a imperiosa necessidade do uso da máscara em ambientes comuns, ao passo que o outro cidadão bradava que ninguém o obrigaria àquilo, muito menos entre seu deslocamento da porta do apartamento à sua garagem. “Direito de ir e vir”, “Meu condomínio já está pago adiantado” e “nem meu cachorro usa máscara” foram pérolas que ouvi do histérico vizinho, que dou graças de não morar porta-porta comigo.

No Japão, Seiko Hashimoto, a nova presidente do Comitê Organizador local discursa enfaticamente, como se o mundo estivesse “melhorando” em termos da covid. Um estrago em sua carreira de atleta. Assisto a cena incrédulo, ao mesmo tempo em que zapeio o Instagram e já vejo postagens festivas em páginas olímpicas e paraolímpicas que sigo. Tudo aparece como se o vírus fosse um detalhe insignificante.

Não é preciso ser expert no assunto para perceber, no caso dos eventos esportivos, que suas realizações podem ser um tiro pela culatra. Ou gastarão até “os tubos”, como diria algum encanador, para executarem todas as operações de cuidado, higiene e vacinação (sim, eu penso que terão que vacinar atletas e delegações inteiras, inclusive), ou causarão uma catástrofe muito maior, de mais infecções, reinfecções e mortes.

Sento-me à mesa da cozinha, deixo a TV ligada com volume audível, tento sorver algo do café que não me desce. Ouço um argumento do vizinho enfurecido, de que “token com álcool-gel” é obrigação, uma inovação contra o vírus que o prédio não apresenta. Olho o pão e já nem sei se quero comê-lo. Desde o início da pandemia minhas refeições são acompanhadas pelo noticiário nocivo deste vírus e seu rastro de destruição e morte. Meu café estava regado a discordâncias múltiplas. Estabeleço um paralelo entre a situação vivida e os torneios esportivos: um cabo de força entre teimosias instituídas.

O presidente do COI, Thomas Bach
O presidente do COI, Thomas Bach, em Tóquio. Foto: Greg Martin/IOC.

Penso na competição olímpica e me lembro que, se ela ocorrer, também teremos inovação – percebam a nóia da cabeça da pessoa! Esportes como a escalada, o surfe e o skate ocorrerão pela primeira vez e teriam por função capturar um público jovem, tanto em audiência quanto em prática futura. Além deles, o beisebol volta, depois de sacado das últimas duas edições olímpicas, e o caratê entra por se tratar de um esporte nacional japonês.

Ora, a Olimpíada em curso sempre se anunciou como inovadora, num dos países mais tecnológicos do globo. E não tenho certeza se o tal token é inovação (afinal, pode-se carregar um frasquinho de álcool-gel a tiracolo), mas a predisposição em pensar no coletivo certamente o é – algo que falta no pestilento vizinho e em muitos de seus correligionários.

As brigas por interesse em manter ou excluir modalidades esportivas fazem parte da trajetória dos Jogos Olímpicos modernos. O beisebol participava desde Barcelona, em 1992, como parte do programa olímpico, contudo já havia pontualmente aparecido antes, nas edições de 1912, 1936, 1952, 1956, 1964, 1972, 1984 e 1988) (Guia dos Curiosos, 2006). Dizem por aí que desaparecerá, novamente, depois de 2024.

Entradas ou saídas de esportes do programa olímpico nunca são simples cálculos, pois envolvem interesses conflitantes e disputas por poder (inclusive de pessoas e grupos poderosos). No noticiário que ouvia e mesmo na discussão de meu condomínio, coisas do tipo também estavam em jogo.

Modalidades já participaram da história olímpica como esporte ou apresentação: golfe (1900, 1904 e 2016), críquete (1900), polo (1908 a 1936), futebol americano (1904 e 1932), futebol australiano (1956), rúgbi (até 1924 e retomado irregularmente no início do século XXI), tae-kwon-do (que continua desde 1988) e badminton (desde 1972). Outras orbitaram tais Jogos apenas como experiências pontuais, como doze horas de ciclismo (1896), arremesso de pedra de 6,4 quilos (1904), corrida de barcos (1908), arremesso de disco e dardo com as duas mãos (1912), tiro ao pombo (1920), o levantamento de peso com uma só mão (1896 e 1904) e o cabo-de-guerra (de 1900 a 1920).

Deixo a cozinha sem me alimentar direito, invadido por uma dose cavalar de ansiedade e aflição. Nem precisava do café para ficar com o gosto amargo na boca. Guardadas as devidas proporções, gravitavam ali em minha volta (e invadiam minha cabeça) teimosias, tradições e inovações, de diferentes espectros e valências, que deixavam meu mundo em suspenso.

O vizinho bolsonarista ‘reaça’, a olimpíada japonesa impertinente, os organizadores japoneses cabeças-duras, o planeta numa espiral destrutiva: parem-no que quero descer! Mesmo prostrado, violento-me a trabalhar muitas horas em home-office, um aparato “inovador” da captura da mais-valia do trabalhador contemporâneo.

A pandemia toca terror no mundo e instaura o caos. Os Jogos Olímpicos, totalmente dispensáveis nesse momento, forçam a barra para acontecer. Meu condomínio é o microcosmo de um universo que não vai bem.

Entre teimosias, tradições e inovações, vamos tentando sobreviver… só não sabemos até quando. Os Jogos Olímpicos de Tóquio 2020, já atrasados, podem acontecer. E talvez sejam os últimos de uma era de inevitável extinção.

 

Referência bibliográfica

DUARTE, Marcelo. Guia dos Curiosos: esporte. 2ª ed. São Paulo: Panda Books, 2006.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Tóquio 2020: entre teimosias, tradições e inovações. Ludopédio, São Paulo, v. 142, n. 8, 2021.
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