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Por que (não) me ufano do meu país

José Carlos Marques 8 de março de 2018

Em 1900, Afonso Celso de Assis Figueiredo Júnior, mais conhecido como Conde de Afonso Celso (1860 – 1938), publicou o livro Por Que me Ufano do Meu País, uma espécie de cartilha de doutrinação da nacionalidade para celebrar os 400 anos de chegada dos portugueses à costa brasileira. A obra procurava mostrar a riqueza e a superioridade do Brasil perante outras nações, em função de nossa grandeza territorial, da exuberância de nossa natureza, da cordialidade e hospitalidade do povo pátrio, entre outras coisas.

Monarquista e admirador do colonialismo, o Conde de Afonso Celso passou a ser alvo, ao longo do tempo, de inúmeras críticas e alguns elogios. Não é raro vermos na imprensa, em blogs e em diferentes escritos, até hoje, algum tipo de menção ao título do livro do aristocrata. O jornalista Daniel Piza (falecido precocemente em 2011), por exemplo, mantinha no jornal O Estado de S. Paulo uma seção intitulada “Por que não me ufano”, justamente para se opor a esse tipo de nacionalismo cego que procura fazer crer que “Sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor” – e que isso basta para esquecermos das desigualdades e das incoerências da alma nacional.

O que o Conde de Afonso Celso não imaginava com sua obra de 1900 é que aquele espírito do “Brasil que vai pra frente” ficaria tão entranhado na cobertura do esporte na televisão brasileira – especialmente no da TV Globo. É impressionante o trabalho de persuasão perniciosa e de doutrinação que alguns profissionais da emissora procuram fazer para convencer o público de que os brasileiros são os maiorais e devem ganhar tudo o que disputam. O exemplo mais recente, às vésperas da Copa do Mundo da Rússia, ocorreu na cobertura dos Jogos Olímpicos de Inverno, na Coreia do Sul, encerrados no último dia 26 de fevereiro.

De uma hora para a outra, a imprensa lembrou que havia uma patinadora brasileira (nascida nos EUA) chamada Isadora Williams e que ela iria disputar a prova de patinação artística. Sempre muito simpática e gentil nas entrevistas, Isadora fez história ao classificar-se para a fase final da disputa, feito merecedor de todos os elogios e comemorações.

Coreia do Sul PyeongChang 21 02 2018 A patinadora Isadora Williams garantiu vaga ineditae vai a final da patinação artistica em frente à Ice Arena, sede provas de patinação artística e patinação de velocidade em pista curta nos Jogos Olímpicos de Inverno PyeongChang 2018. Foto: Abelardo Mendes Jr/Min Esportes
A patinadora Isadora Williams garantiu vaga inédita para a final da patinação artística. Foto: Abelardo Mendes Jr/Min Esportes.

O problema não é esse. O problema é querer nos convencer, a todo o tempo, da brasilidade da atleta (e dá-lhe bandeira brasileira e música da Anitta para mostrar que a moça, que mal fala nosso idioma e que vive nos EUA, é de fato brasileira). O problema é querer nos convencer que Isadora poderia disputar uma medalha – e basta ver a as apresentações das 5 melhores classificadas para se perceber a distância que ainda temos que percorrer para que isso seja uma realidade. Bem, o resultado, esse o leitor já há de saber: Isadora ficou em 24º lugar, o último da fase final da patinação. Algo normal e aceitável. Pouco aceitável é a necessidade de aumentarmos o número de brasileiros no censo, utilizando-se atletas que apenas não defendem o país em que nasceram por falta de oportunidades ou outros motivos.

Outro exemplo flagrante de adulteração da realidade foi visto com o bobsled. Semanas antes de os Jogos Olímpicos de Inverno terem iniciado, a Globo fez uma matéria para mostrar a evolução dos treinamentos da equipe brasileira nessa modalidade. Vários elementos científicos da preparação foram apresentados – um dos mais notórios era o trilho montado numa pista de atletismo para que os atletas treinassem a subida no trenó.

No dia em que a equipe brasileira tentaria classificar-se para a fase final do bobsled, a apresentadora da TV Globo anunciava que “era preciso torcer”, porque os brasileiros poderiam até ganhar uma medalha, “por que não?”. Bem, o Brasil ficou em 23º lugar no Bobsled 4-man e não se classificou para a fase final da prova. Talvez a melhor ciência seja treinar em pistas de gelo de verdade e capacitar atletas desde logo cedo a competir nessa modalidade, em vez de se recrutar ex-velocistas do atletismo para adentrar um trenó de gelo.

Equipe do Brasil no bobsled 4-man durante os Jogos Olímpicos de Inverno PyeongChang 2018. Local: Olympic Sliding Centre, em PyeongChang, na Coreia do Sul. Foto: Abelardo Mendes Jr/ rededoesporte.gov.br
Equipe do Brasil no bobsled 4-man durante os Jogos Olímpicos de Inverno PyeongChang 2018. Foto: Abelardo Mendes Jr/rededoesporte.gov.br.

A questão de fundo, na verdade, não é crucificar profissionais que se dedicam a muito custo a competir em modalidades de pouca tradição no país e com pouca cobertura midiática ao longo do ano. A questão de fundo, na verdade, é perceber o quanto o esporte é tratado, em alguns aspectos, de maneira tão rasa e superficial pelas televisões brasileiras, especialmente quando elas transmitem eventos dos quais adquiriram os direitos de transmissão, o que as tornam consorciadas das entidades organizadoras e seus respectivos anunciantes.

Findos os Jogos Olímpicos de Inverno, passaremos a assistir novamente a esse fenômeno, desta vez associado ao futebol: a Seleção Brasileira será sempre desenhada como a favorita, pois temos os jogadores mais caros do mundo e em nossas terras brotam craques todos os dias, em todos os lugares. E bastam craques para se ganhar uma Copa do Mundo, como muitos querem nos fazer acreditar o tempo todo, já que as questões táticas, físicas organizacionais etc. não são importantes.

Não é fácil operar uma transmissão dos Jogos Olímpicos de Inverno. Há modalidades que o público comum nunca viu numa televisão – daí a necessidade de se realizarem transmissões didáticas, cheias de explicações e contextualizações. Nisso a TV Globo saiu-se muitíssimo bem, nomeadamente por força do elenco de seus comentaristas, quase sempre atletas que competem ou competiram nos esportes que abordavam. Mas para se transmitir uma competição como essa, não é preciso nos fazer crer que o Brasil sairá vitorioso, porque essa ainda não é nossa realidade.

Também não será fácil transmitir a Copa do Mundo diretamente da Rússia, país que detém uma cultura secular pouco afeita ao Brasil. A diferença é que, em Copas do Mundo, somos sempre levados a acreditar que o Brasil sairá vitorioso. Temos os melhores jogadores, a melhor torcida e a melhor imprensa, quiçá os melhores dirigentes.

Conde de Afonso Celso há de ter conhecido um pouco do esplendor do futebol brasileiro, haja vista ter falecido apenas em 1938. Pena é o livro Por Que me Ufano do Meu País ter sido publicado em 1900, e não em 1922, ano de centenário da Independência do Brasil. É capaz que se saísse por essa época, o futebol arte do brasileiro também constasse da lista de elementos pelos quais havemos obrigatoriamente de nos ufanar.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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José Carlos Marques

José Carlos Marques é Docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista (Unesp/Bauru) e integra o Departamento de Ciências Humanas da mesma instituição. É Livre-Docente em Comunicação e Esporte pela Unesp, Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Licenciou-se em Letras (Português Francês) pela Universidade de São Paulo. É autor do livro O futebol em Nelson Rodrigues (São Paulo, Educ/Fapesp, 2000) e de diversos artigos em que discute as relações entre comunicação e esporte. É líder do GECEF (Grupo de Estudos em Comunicação Esportiva e Futebol) e integrante do LUDENS (Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol e modalidades Lúdicas).

Como citar

MARQUES, José Carlos. Por que (não) me ufano do meu país. Ludopédio, São Paulo, v. 105, n. 8, 2018.
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