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Um bailarino, um príncipe e um antropólogo

Wagner Xavier de Camargo 30 de maio de 2021

O mês de abril de 2021 foi marcado, ao menos no Brasil, pelo cômputo recorde de mortes por Covid-19, o que fez com que muitas cidades adotassem fechamento parcial ou total como forma de aliviar as pressões sobre seus hospitais lotados. Porém, o mês também marcou três perdas que nos interessam aqui do ponto de vista das práticas corporais e esportivas sobre as quais atuaram ou escreveram. São os casos de Ismael Ivo, bailarino brasileiro negro, do Príncipe Philip, nobre inglês, e de Marshall Sahlins, antropólogo estadunidense.

Começo, por opção, pelo bailarino. Ele faleceu aos 66 anos, em decorrência do coronavírus e sua morte pouco figurou no noticiário nacional. Ivo era paulista, tinha origem humilde e foi revelado ao mundo por Alvin Ailey, um coreógrafo estadunidense que o viu dançar no Brasil, ainda nos anos 1980. De São Paulo a Nova Iorque e depois para a Europa, foi parar em Viena, onde dançou numa apresentação pela companhia ImPlusTanz, em 1984. Morreu aqui em sua terra natal, notadamente como mais uma vítima do descaso público e da pandemia em curso.

Ismael Ivo
Foto: Wikipédia

O príncipe Philip foi marido da ainda Rainha Elisabeth II da Inglaterra. Teve uma vida privilegiada e longa, e sua morte mundialmente televisionada. Nascido na Grécia na família dos Battenberg, deixou o país ainda bebê. Estudou em algumas cidades da Europa continental e acabou se alistando na Marinha Real Britânica, em 1939. Após a II Guerra, casou-se com Isabel II, a rainha que conhecemos. Logo depois, adotou o então sobrenome materno “Mountbatten”, transformou-se em Duque de Edimburgo e abriu mão de seus títulos reais para servir à Coroa britânica.

Sahlins se foi, dentro de casa, aos 71 anos. Mas ainda é um dos antropólogos mais importantes dos tempos presentes. Professor emérito da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, escreveu importantes obras e produziu polêmicas. Iniciou-se na carreira como crítico de Franz Boas e, estudando na França e sendo influenciado pelos movimentos revolucionários de maio de 1968, adotou um ponto de vista culturalista e crítico às perspectivas materialistas.

De Ivo, o mais próximo do que posso oferecer de seu “balé” (entendido aqui de modo amplo como expressão corporal em cena) é mais do que uma definição dada em revista ou para algum jornalista: assisti uma de suas apresentações em Berlim, no ano de 2010, quando lá morava, no famoso anfiteatro do Die Bühne. O contorcionismo do corpo de ébano em cena, o olhar fixo perdido no horizonte da plateia, a expressão imóvel de sofrimento eram elementos realmente impactantes. A música de fundo completava a obra de arte.

De Phillip, muito se sabe, pois grande parte de sua trajetória já foi alvo de filmes e séries televisivas, e sempre esteve na mídia até recentemente. Contudo, uma curiosidade que mesmo poucos fãs conhecem: ele era intrépido adepto de esportes, particularmente dos equestres. Jogou polo, críquete e esteve em inúmeras corridas de cavalos no Reino Unido, além de presidir a Federação Equestre Internacional por mais de vinte anos. A série Netflix, por exemplo, mostra a Rainha Elisabeth II como grande apostadora nos torneios de cavalos por sua empatia com tais animais, mas secundariza ou invisibiliza Phillip, deixando-o reservado apenas à caça à raposa, clássico esporte bretão.[1]

Príncipe Philip
Príncipe Philip com a Rainha em Cambridge, New Zealand, 1954. Foto: Wikipédia

De Sahlins, algo interessante: dos muitos assuntos que desenvolveu, o antropólogo escreveu um ensaio acerca do beisebol estadunidense dos anos 1950. Toma um artigo de outro historiador, que havia comparado o caso excepcional de virada de um time de beisebol (os Giants) sobre uma tradicional equipe ganhadora (os Dogders) nos campeonatos estadunidenses da modalidade daquele período com a disputa entre Yankees e St. Louis Bronws, na Liga Americana de beisebol de 1939, para pensar as mudanças na narrativa como mudanças históricas. Enquanto a história dos Giants foi surpreendentemente eventual (uma virada não esperada), a dos Yankees foi processual. O autor se mobiliza, justamente, com a “história eventual”, ou “o resultado de uma longa história num curto espaço de tempo e das macrorrelações em microatos[2], em detrimento da “história de grandes homens”. Com isso, demarca a preocupação com as mudanças/transformações das estruturas da história na história.

Ismael Ivo tinha uma marca registrada, uma dança com amplitude, engajada, com forte comprometimento. Seu corpo expressava formas, das mais comuns às excepcionais, num contorcionismo que fascinava e significava. Sempre se colocou como “infiltrado” numa atividade da elite branca: o menino preto que teve fome de vida, de vencer os percalços que a vida lhe deixou como obstáculo. Por isso, se tornou “antropófago”, um “bom canibal” de ideias, de momentos, de oportunidades. Nunca se exoticizou para sobreviver; considerava-se um animal “pós-exótico”. “Acostumem-se”, dizia.[3]

De rei a consorte, de titulado a servidor de uma soberana, Phillip se resignou a servir. Quanto ao mundo das práticas esportivas, talvez não tivesse destino outro que figura pública responsável por abrir ou encerrar eventos. No futebol isso fica claro: participou de várias inaugurações de estádios e de projetos arquitetônicos (do Arsenal, em 2006, por exemplo), sempre estando lá para cortar a fita, sorrir e dizer algumas palavras. Na conquista da Copa do Mundo da FIFA de futebol de homens pelo Reino Unido, em 1966, ele se apresentava junto à Rainha Elisabeth II a fim de entregar as medalhas ao escrete inglês.

Sahlins estudou tantas culturas, tergiversou sobre derivativas simbólicas delas, impactou-se com o estruturalismo antropológico. Porém teve medo, como muitos de sua época e mesmo de tempos posteriores, de escrever e analisar o esporte como fenômeno cultural e elemento moderno-contemporâneo estruturante da vida (para seguir a lógica de seu discurso). Sobre isso, um das raras menções de uma (possível) clarividência, registro aqui: “Talvez tenhamos subestimado o esporte, assim como subestimamos conversas sobre o tempo, como a camada superficial de uma comunidade que, de outro modo, é dividida e somente imaginada”.[4]

Marshall Sahlins
Foto: Wikipédia

Minha proposta no entrecruzamento dessas histórias pessoais que se vertem em coletivas, na medida que os três aqui citados foram pessoas públicas que influenciaram coletivos (de dançarinos, de súditos/fãs, de antropólogos em formação, respectivamente), tem o propósito de dizer algo da relação que estabeleceram com práticas corporais ou esportivas, em graus distintos. Se serviram somente como subsídios para uma elucubração frívola desta coluna despretensiosa de domingo, seus falecimentos acabam materializando o modo como a sociedade atual tem operado por lógicas tortas:

O preto, mesmo famoso, morre desconhecido;

O nobre, mesmo servil, morre vangloriado;

O cientista, mesmo importante, é enterrado nos anais antropológicos;

Esse é o mundo da pós-verdade, dos racismos silenciosos, das personalidades midiáticas, no qual jazem um bailarino, um príncipe e um antropólogo.

Ismael Ivo
Ismael Ivo no espetáculo solo Rito do Corpo em Lua, década de 1980. Foto: Christa Niels.

Notas de rodapé

[1] Faço referência à série “The Crown” (A Coroa).

[2] SAHLINS, Marshall. “O beisebol é a sociedade representada como um jogo”. In: História e Cultura: apologias a Tucídides. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. p. 128.

[3] Referência a uma entrevista dele à Carta Capital, logo que retornou ao Brasil em 2017 para assumir a direção do Balé da Cidade de São Paulo. Disponível em <http://web.archive.org/web/20170401144605/https://www.cartacapital.com.br/revista/945/ismael-ivo-o-canibal-do-municipal/>.

[4] SAHLINS, Marshall. “O beisebol é a sociedade representada como um jogo”… In: História e Cultura: apologias a Tucídides. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. p. 131.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Um bailarino, um príncipe e um antropólogo. Ludopédio, São Paulo, v. 143, n. 59, 2021.
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