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Um Brasil que se foi: o país dos estádios gigantes

Gilmar Mascarenhas 27 de agosto de 2018

Em 1978, a FIFA apresentou um ranking de estádios de futebol que sacudiu a imprensa esportiva tupiniquim. Nele, o Brasil continha nada menos que seis dos dez maiores estádios do planeta. Mesmo sendo, então, o incontestável “país do futebol”, maior vencedor das copas e pátria amada de Pelé e Garrincha, os dados eram de arregalar os olhos e insuflar o ufanismo reinante.

Estavam na lista, em ordem decrescente, o Maracanã, o Morumbi, o Mineirão, o Beira-Rio, o Castelão (de Fortaleza), a Fonte Nova (que já acolheu 110 mil torcedores) e, salvo engano, o Arruda, em Recife. Ao lado destes, apenas o monumental estádio Azteca, o lendário Wembley, o colossal Santiago Bernabéu e o quase pré-histórico Hampden Park, em Glasgow. Naquela época, Ásia e África não tinham vivido ainda o “boom” de construção de grandes estádios.

Naquele 1978, eu era o adolescente que colecionava cartões postais e fotografias de estádios. Por algum tempo guardei o referido recorte do jornal e, vinte anos mais tarde, já pesquisando para a tese de doutorado, encontrei a mesma informação num almanaque esportivo. Infelizmente, o material fotocopiado não encontrei mais. Mas lembro bem daquelas informações.

Hoje, nosso maior estádio, o “novo” Maracanã, ocupa a modesta 25ª colocação (em alguns casos a 23ª) em rankings mundiais não oficiais. Ainda que estejamos lidando com dados imprecisos, é bastante considerável o esforço realizado, considere-se ou não o superdimensionamento adotado. Após o apogeu que majoritariamente coincidiu com o regime ditatorial pós-1964, despencamos literalmente “ladeira abaixo” neste quesito. Tentaremos, em poucas linhas, descrever e contextualizar a epopeia construtiva, concentrada em três décadas, deste parque monumental de estádios.

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Maracanã em 1976. Foto: Fortepan.

Em nossa memória coletiva, a década de 1950 representou para o Brasil o advento da era do desenvolvimentismo. A construção de uma capital monumental na vastidão silenciosa do cerrado figurava como um dos símbolos de um novo tempo, de grandezas e mudanças estruturais. O êxodo rural persistia em seu grande fluxo rumo às novas metrópoles, que por sua vez reluziam em grandes obras públicas, bem como no início do processo de verticalização imobiliária e de difusão em massa do automóvel. A malha rodoviária nacional se expandia ao sabor dos discursos ufanistas. Sendo o futebol a consagrada paixão dos brasileiros, dificilmente escaparia ao vigor construtivo e ao monumentalismo daqueles tempos.

No rastro do Maracanã, um dos símbolos da grandeza nacional, outras cidades foram projetando seus “gigantes de concreto”. Havia um contexto favorável, reflexo da ascensão das massas urbanas a determinados bens de consumo e serviços. Gente também advinda do mundo rural que pretendia se territorializar, se sentir pertencendo ao “urbano”, compartilhar dos rituais coletivos identitários, através da adoção de um time “do coração”.

O processo de urbanização, em si mesmo, e o contínuo crescimento do futebol como espetáculo de massas já eram suficientes para promover ampliação progressiva dos estádios, como podemos verificar em vários outros países de então. Mas o que se verificou no Brasil ultrapassou as expectativas: uma febre de novos e imensos estádios, que no transcorrer de duas ou três décadas mudou completamente a paisagem urbana e gerou novos espaços de sociabilidade e expressão popular.

Antes do Maracanã, dois estádios se destacaram no cenário nacional: São Januário (1927) e o Pacaembu (1940). Assim que inaugurada, a casa do Vasco da Gama assumiu a condição de maior estádio sul-americano, sendo porém, quase que imediatamente, ultrapassado pelo congênere argentino “Avellaneda”. A iniciativa vigorosa da comunidade luso-brasileira foi, senão o ponto de partida, certamente o gesto precursor da política de estádios gigantes no Brasil. O Pacaembu, por sua vez, inaugurou a tradição de estádios estatais em nosso país, peculiaridade marcante de uma forma de regulação social e de controle das massas.

Para a série evolutiva que apresentaremos a seguir, tomaremos o ano de inauguração do estádio. Mas cumpre registrar que a construção de um equipamento deste porte exige o transcurso de, no mínimo, dois ou três anos, e que alguns consumiram período muito maior. Ademais, há o lapso muito variável de tempo entre a concepção da ideia ou do projeto, e o início de sua execução. No caso do Vivaldão, em Manaus, transcorreram quinze anos entre o projeto original e a inauguração do estádio em 1970.

Vale registrar que um primeiro momento de concepção e construção de grandes estádios foi de iniciativa dos próprios clubes, mas alguns já com alguma benesse do poder público. O Olímpico Monumental, em Porto Alegre, em 1954 (embora ainda numa estrutura mais modesta, apenas com o anel inferior); o Estádio Cicero Pompeu de Toledo, ou “Morumbi”, em São Paulo, em 1960; e o Beira-Rio, em Porto Alegre, cuja obra se iniciou em 1959, mas que somente foi inaugurado dez anos mais tarde. Nos dois últimos, houve algum apoio financeiro governamental. O Morumbi, que hoje abriga apenas 72 mil torcedores, é o maior estádio privado do Brasil e nasceu com impressionante capacidade para 120 mil espectadores, em terreno presumivelmente negociado pela municipalidade em cobiçada zona de expansão imobiliária. O Beira-Rio, por sua vez, foi construído em terreno doado em 1956 pela prefeitura, em futuro aterro sobre as águas do Guaíba, quando Leonel Brizola era o prefeito de Porto Alegre.

Em 1965, inaugurou-se outro estádio colossal, e agora inteiramente público, o Estádio Governador Magalhães Pinto, ou Mineirão, em Belo Horizonte (MG), hoje com capacidade para 61 mil, mas que já acolheu 132 mil pagantes. Situado na vastidão da Pampulha e em harmonia com as linhas modernistas do entorno, o novo estádio representou um salto evolutivo formidável na capital mineira, posto que os demais se situavam no interior do espaço original da urbe planejada, àquela altura já bastante adensado.

Estando os quatro principais centros futebolísticos dotados de grandes arenas, iniciamos um outro período, marcado pela construção de grandes estádios nas demais capitais. Havia o projeto político de aprofundar os vínculos do futebol com o regime militar, e de propiciar plena massificação deste esporte, considerado por muitos um meio de alienação, a desviar a atenção dos principais problemas sociais. Ao mesmo tempo, surgia em 1971 o Campeonato Nacional, com amplas perspectivas de integração do território. Neste novo contexto, o governo irá investir fartamente na produção de novas arenas.

Já em 1971, o Estádio Otavio Mangabeira, ou Fonte Nova, patrimônio estadual, em Salvador, cuja capacidade de público era de 50 mil pessoas, foi ampliado com a construção do anel superior, atingindo a capacidade de 110 mil, passando a se alinhar com as demais metrópoles.

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O antigo estádio Octávio Mangabeira.

Em 1970, surgiu o “Vivaldão”, em Manaus, ou Vivaldo Lima, para acolher 57 mil pessoas. A população urbana somava 470 mil habitantes. Em 1972, o inaugura-se o “Mundão do Arruda”, ou Estádio José do Rego Maciel (nome do pai do ex-presidente da República Marco Maciel), ex-governador, que doou o terreno nos 1950 e ajudou na construção, embora seja propriedade privada do clube. O estádio abrigava 110 mil pessoas (hoje apenas 60 mil) e representava a adequada inserção de Recife no cenário nacional.

Ainda em 1972, no contexto da febre de grandes estádios nordestinos, Natal (RS) apresentou o “Castelão”, dotado para 53 mil assistentes, quando a população urbana não alcançava 300 mil habitantes, e que depois alterou o nome para João Cláudio de Vasconcelos Machado, ou “Machadão”. No ano seguinte, foi a vez de Fortaleza concluir o ciclo das grandes capitais nordestinas, com o Estádio Governador Plácido Aderaldo Castelo, ou Castelão, que chegou a receber 118 mil pagantes.

Em suma, em apenas dois anos, de 1971 a 1973, o Nordeste inaugurou três imensos estádios nas suas três principais metrópoles regionais.

Em 1975, chegou a vez do Centro-oeste, através do estádio Serra Dourada, em Goiânia (GO). Em 1978, surgiu o “Mangueirão”, em Belém (PA), ou Estádio Olímpico Edgar Proença. Em 1982, com atraso em relação aos demais, e quando o projeto de integração nacional pelo futebol apresentava claros sinais de falência, surgiu o Estádio Governador João Castelo Ribeiro Gonçalves, ou Castelão, em São Luís (MA), para 75 mil assistentes. Como tantos outros, um equipamento superdimensionado e condenado a obsolescência e subutilização.

No mesmo ano de 1982, uma iniciativa pouco justificável, na esteira da febre supracitada: o estádio “Parque do Sabiá” (Estádio Municipal Doutor João Havelange), em Uberlândia (MG), para quase 80 mil assistentes, numa cidade sem tradição futebolística a altura. Mas foi o último suspiro de uma “febre” que já havia passado. O auge do ciclo construtivo, sem dúvida, localizamos entre 1970 e 1978. Portanto, situado entre o auge e o início do declínio do regime militar no Brasil.

Com o recuo do alcance espacial do campeonato nacional a partir de 1980, a febre construtiva se estancou. Outros fatores podem explicar o fim deste ciclo. Um deles, sem dúvida, é a transição política nacional, ou a “redemocratização”, que resultaria no fim dos grandes subsídios governamentais aos estádios de futebol, somente retomados recentemente, em função dos grandes eventos esportivos, mas já numa política de redução acentuada da capacidade de público. Outro aspecto a considerar é a recessão econômica que se abateu sobre o país na década de 1980, reduzindo o afluxo de público aos estádios, segundo os colegas Ronaldo Helal (1997) e Marcelo Proni (1998). Por fim, a ampliação do acesso da população à televisão e o próprio aumento de transmissão televisiva de jogos de futebol contribuíram para reduzir o público nos estádios.

Em nossos dias, o processo de “arenização” e as reformas realizadas para atender os rígidos parâmetros da Copa do Mundo de Futebol FIFA 2014 conduziram à redução brutal da capacidade de nossos principais estádios. O fato é que muita gente pobre usufruiu daqueles gigantes de concreto e hoje tem saudade daquelas tarde memoráveis. Mas isto é (e tem sido) assunto para outras postagens.


Referências:

HELAL, Ronaldo. Passes e impasses: futebol e cultura de massa no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.

PRONI, Marcelo W. A metamorfose do futebol. Campinas: Unicamp/Instituto de Economia, 2000.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Gilmar Mascarenhas

Professor Associado do Instituto de Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Como citar

MASCARENHAS, Gilmar. Um Brasil que se foi: o país dos estádios gigantes. Ludopédio, São Paulo, v. 110, n. 28, 2018.
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