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Um campeão contra o racismo

Roberto Jardim 31 de agosto de 2019

Talvez a maioria das pessoas pense que a Europa, por ser o berço da civilização ocidental, além de desenvolvida econômica e culturalmente, esteja livre dos preconceitos. Não foi isso, porém, que um garoto de nove anos descobriu ao chegar a Paris vindo das Antilhas Francesas (no Caribe), em 1981. Mesmo que tenha nascido em região de domínio da França, aquele menino alto e magro não foi visto como francês, tendo, assim, seu primeiro contato com o racismo. Pior: descobriu a situação por meio de um “inocente” desenho animado.

– Na televisão, havia um desenho animado que tinha duas vacas. Uma era negra, muito estúpida. A outra, branca e muito inteligente. Meus colegas de escola chamavam-me pelo nome da vaca negra, Noiret (Negrinha) – conta Lilian em quase todas as entrevistas quando fala do problema contra o qual luta desde pequeno.

Apesar de sentir que o apelido era depreciativo, ele não entendeu a razão daquilo. Por isso buscou a primeira ajuda em casa:

– Perguntei à minha mãe, “por que a cor negra tem esta conotação negativa?”, e ela me disse que as pessoas são racistas e que isso nunca iria mudar. Não foi a melhor resposta que tive.

Com o tempo, Lilian passou a entender a situação:

– Com sorte, encontrei pessoas que me ajudaram a entender que o racismo é uma coisa cultural. Só assim compreendi que ela (a vaca negra) era relacionada à imagem da escravidão, e que isso vinha dos políticos brancos, que construíram a imagem da inferioridade dos negros para melhor explorá-los. Passei a perceber que os negros nunca tiveram problemas, o que aconteceu é que nos disseram que tínhamos problemas.

Desde então, mesmo se tornando um atleta multicampeão dentro do campo, o terceiro titular do Democracia Fútbol Club jamais se viu livre dessa infame lição – principalmente nos tempos em que passou pelos estádios italianos e em seu próprio País. Por isso, faz questão de erguer a voz, afirmando que o racismo precisa ser combatido.

– Nenhuma criança nasce racista. Isso é ensinado. O preconceito é ensinado. Assim, temos que ensinar que o preconceito está errado – defende.

Por tal razão, ao abandonar o futebol, em 2008, depois de erguer taças importantes, como as da Copa do Mundo de 1998 e da Eurocopa de 2000, pela seleção francesa, Lilian decidiu abrir uma fundação para lutar contra o preconceito. Criou a Fondation Lilian Thuram - Éducation Contre le Racisme (Educação Contra o Racismo).

– É importante que percebamos como os preconceitos foram criados, para que possamos destruí-los. Nossa sociedade deve compreender, porém, que a cor da pele ou o sexo de uma pessoa não definem a sua inteligência, a sua língua, a religião praticada, as capacidades físicas, nem o que gosta ou o que detesta. E isso só se muda por meio da educação – afirmou à revista brasileira Raça.

E o jogador não se cansa de dizer que o futebol é uma excelente ferramenta para ajudar nessa resistência:

– Quando se vê equipes com pessoas de diferentes origens, religiões etc., muda o imaginário coletivo. E é isso é extremamente importante!

Ao jornal inglês The Independent, defendeu a ideia de que jogadores não negros têm que assumir uma posição na luta contra os preconceitos:

– As pessoas que podem ajudar a mudar essa mentalidade não são vítimas de racismo e discriminação. A questão, portanto, é se jogadores que não são negros, ou de certa religião, ou homossexuais, estão dispostos a agir e tomar posições contra esse problema? Por exemplo, se um jogador de futebol branco saísse do gramado quando um ato racista fosse feito contra um negro, as coisas se resolveriam mais rapidamente. Porque futebol é um negócio, e as pessoas buscam soluções muito rápidas nessas situações.

Dentro de campo, Lilian é o maior vencedor do DFC. Apenas ele e outro dos 11 escalados para essa série ergueram uma Copa do Mundo. Também é um dos poucos a ter atuado em grandes equipes do futebol mundial, como o italiano Juventus e espanhol Barcelona.

Mas não são, contudo, os títulos que garantem a ele a nossa camisa 3, mas a bandeira que levanta com muita dignidade.

Das praias do Caribe aos estádios europeus

Nascido Ruddy Lilian Thuram-Ulien, em 1º de janeiro de 1972, aquele menino negro, magro, alto e elegante aprendeu a jogar bola nas praias e ruas de Pointe-à-Pitre, ilha de Guadalupe. Ali, desfilou os primeiros toques, tentou os primeiros desarmes, marcou, talvez, os primeiros gols. Aos nove anos, em 1981, mudou-se com a família para a França, pouco depois da separação dos pais.

Ao lado da mãe e de outros quatro irmãos foi morar no bairro de Fontainebleu, subúrbio de Paris onde vivem os imigrantes e seus descendentes. O local é conhecido pelos constantes distúrbios contra políticas contrárias a sua população.

Mesmo que gostasse de jogar bola, Lilian dividia seu tempo entre a escola, os estudos para ser padre e a equipe de futebol Portugueses de Fontainebleu. Por isso, brinca às vezes que também é um pouco português.

Decidiu-se pelo futebol só por volta dos 19 anos. Foi, então, que sua vida mudou. Firmou contrato com o Monaco, estreando pouco depois, em 24 de maio de 1991. A equipe era comandada na época por Arsène Wenger – até recentemente técnico do inglês Arsenal, onde estava desde 1996 –, que o colocou no segundo tempo da partida contra o Toulon, pela Ligue 1. Jogou 15 minutos. No mesmo ano, conquistaria o primeiro título, a Copa da França 1990/1991.

A partir dali, entrou para o jet set do futebol mundial. Levaria dois anos para marcar seu primeiro gol, em 24 de novembro de 1993, na vitória de 4 a 1 contra o Spartak Moscou, em jogo da Liga dos Campeões.

Três anos depois trocaria a França pela Itália, indo jogar no Parma. Ali, sob o comando de Carlo Ancelotti e ao lado de Gianluigi Buffon, Roberto Sensini, Fabio Cannavaro e Hernán Crespo, fez história, chegando ao vice-campeonato italiano logo em sua primeira temporada. Junto com Cannavaro e Sensini, formou um trio de zaga que levou a equipe italiana aos títulos da Copa Uefa, da Copa Itália e da Supercopa Italiana.

Antes de trocar o Parma pela Juventus, em 2001, teria suas maiores conquistas. Em 1998, fez parte da seleção francesa que bateu o Brasil por 3 a 0 na final da Copa do Mundo da França. Aliás, não fosse por ele, Les Bleus não teriam chegado à decisão. Na semifinal, Lilian marcou os dois gols na virada de 2 a 1 sobre a Croácia. Dois anos depois, ajudaria a França a conquistar a Eurocopa.

Pela seleção do seu país, vestiu a camisa azul da França pela primeira vez em 1994, quando ainda atuava no país. Até 2008, quando abandonou os gramados, jogou 142 vezes pelos Bleus, recorde até hoje não batido.
Em 2001, o Parma tentou negociá-lo com o Lazio, equipe da capital italiana, tradicionalmente ligado à extrema direita romana, e a tudo o que isso representa. Lilian recusou a transação com um simples:

– Não jogo para fascistas!

No mesmo ano, foi parar na Vecchia Signora, onde ergueria dois italianos e uma Supercopa da Itália. Após um escândalo de armação de resultados envolvendo a Juve, trocou outra vez de país, indo para a Espanha, onde jogou no Barcelona, em 2006, então comandado pelo holandês Frank Rijkaard. No Camp Nou, porém, jamais se firmou, disputando vaga na zaga com o catalão Puyol e com o mexicano Rafa Márquez.

Em 2008, ao fazer exames para assinar com o Paris Saint-Germain e voltar à França, desmaiou. Nos testes complementares, os médicos descobriram que Lilian tinha um problema cardíaco sério – anos antes, um irmão seu morrera jogando basquete, em razão da mesma enfermidade cardíaca. Assim, decidiu encerrar sua carreira aos 36 anos.

Ativismo levado a sério

Se em campo Lilian era um lateral/zagueiro que se impunha pela qualidade técnica, velocidade e força, na vida pessoal perseguia a mesma linha. A inteligência acima da média dos jogadores de futebol, e, possivelmente, da população em geral, levou-o a destacar-se já na época em que atuava.

Em pouco tempo, comprou brigas por conta de seu posicionamento. Acabou virando ícone de campanhas da Uefa e se tornou embaixador oficial da Unicef contra o racismo. Após abandonar os gramados, não abaixou a guarda, ampliando o leque. Apoia a luta contra a homofobia e defende o casamento de pessoas do mesmo sexo, simpatiza com a separação da Catalunha da Espanha e faz campanha contra o recrutamento infantil em guerras na África.

Em meio a tudo isso, escreveu 13 livros, todos com o racismo como pano de fundo. Um deles, Minhas Estrelas Negras, no qual conta a história de grandes nomes mundiais, foi traduzido para o português.

Também teve embates políticos em seu País, com adversários como o ex-presidente Nicolas Sarkozy (2007–2012) e os partidários do ultranacionalista Jean-Marie Le Pen. Contra o primeiro, tem rusgas desde um debate na TV, em 2006, sobre uma onda de protestos em Fontainebleu, bairro no qual cresceu. Enquanto Sarkozy, então ministro do Interior, expressava suas ideias com frases preconceituosas, chamando aqueles jovens de “decadentes” e de “escória da sociedade”, o craque desconstruiu as falas racistas e culpou o político por instigar a violência e discriminar a população mais pobre em suas medidas e discursos. Lilian ainda lembrou que o pai de Sarkozy era um húngaro refugiado em tempos de guerra que migrou para a França.

Mesmo assim, quando presidente, o político convidou Lilian para ser ministro da Diversidade, em 2008. Claro que nosso camisa 3 recusou o cargo. Afirmou, em entrevista ao Le Monde, que o então presidente tinha “discurso racista”.

Já Le Pen sempre atacou os negros da seleção francesa, entre eles o próprio Lilian. Chegou a afirmar que nosso camisa 3 era “uma afronta à França” por ser negro e não ter nascido em território europeu. Sobre os campeões de 1998, o ultradireitista afirmou que a seleção tinha “negros demais”. Em resposta, Lilian e vários de seus companheiros passaram a se negar a cantar La Marseillaise (hino da França), antes das partidas do Mundial.

Além disso, partidários do direitista chamavam o jogador de hipócrita por defender os mais pobres e viver como um milionário. Ao que Lilian sempre respondia:

– Se alguém encontrar Le Pen por aí, diga que se ele tem algum problema em ser francês, nós não temos. Viva a França! Não a França que Le Pen quer, mas a França verdadeira.

Apesar do embate contra racistas, Lilian acredita que a melhor forma de acabar com o preconceito não é o confronto direto.

– A primeira coisa a fazer é ensinar quem pode ser vítimas do racismo que não há nenhum problema com eles. O trabalho que pode ser feito nesse sentido é muito mais fácil do que tentar mudar a mentalidade dos racistas. O dia em que as crianças não tiverem dúvida alguma quanto ao fato de que somos todos diferentes, mas iguais ao mesmo tempo, terão orgulho de si mesmas e da história de suas famílias – comenta.

Para isso, a Fondation Lilian Thuram tem como meta estratégica reunir todos os conhecimentos históricos, científicos, sociológicos, culturais e psicológicos para refletir sobre o racismo. Na sua tarefa, a fundação usa ferramentas pedagógicas para trabalhar nas escolas com as crianças e os professores, ao mesmo tempo em que busca envolver agentes culturais.

O francês e o racismo no Brasil

Em suas atividades, Lilian visita muitos países. Em 2014, meses antes da Copa do Mundo, esteve no Brasil, para falar do racismo por aqui. E vaticinou, em conversas com jornalistas do canal a cabo ESPN:

– O inacreditável é que quando se fala do Brasil no Exterior, temos a tendência de acreditar que não existe racismo nessa sociedade, e existe em todas. Por isso, falar do racismo na sociedade brasileira é muito importante. Se você observar, na sociedade brasileira, dependendo da cor da pele você está mais acima ou mais abaixo na escala social. Nas favelas, a maioria das pessoas é negra. É preciso discutir isso!

Mais recentemente, ao canal SporTV, o francês fez duras críticas ao maior jogador de futebol de todos os tempos no que se refere ao racismo:

– A verdade é que Pelé jamais se posicionou. Jamais falou sobre a problemática do racismo no Brasil. E, portanto, ele é alguém que poderia ter feito avançar as coisas. Não conheço Pelé, mas acho que é preciso superar certo egoísmo. E pode ser que Pelé não tenha essa grandeza de alma, porque, efetivamente, se você vir a imagem que ele tem no mundo, acredito que poderia ter feito outras coisas.

E acrescentou:

– Mais uma vez, creio que a partir do momento que você é negro e está numa situação que permite fazer avançar as coisas, deve fazer isso. Porque, de fato, se cada um de nós serve para algo, é para melhorar o futuro, para fazer uma sociedade mais justa.

E é buscando uma sociedade mais justa, sem racismo e outros preconceitos, que Lilian Thuram permanece na batalha, defendendo a educação e o esporte como ferramentas para superar essas questões.


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ANTERIORMENTE: A história do nosso camisa 2, que, além de ativista, escreve poemas, contos e crônicas: 2 — O zagueiro intelectual


A série tem a colaboração de Diego Figueira, na revisão dos textos, e do craque do traço Gonza Rodriguez, nas ilustrações.

A ideia é manter o Democracia Fútbol Club na ativa. Queremos ir atrás de mais histórias de times e clubes, de torcedores e torcidas. Afinal, como disse o técnico uruguaio Óscar Tabárez, o futebol é uma excelente desculpa para falarmos de outros assuntos. E é sobre isso que queremos falar. Futebol e outros assuntos. Assim, estamos aqui, pedindo uma força para vocês! Apoie o Democracia Fútbol Club.

 

 

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Roberto Jardim

Jornalista, dublê de escritor e pai da Antônia. Tudo isso ao mesmo tempo, não necessariamente nessa ordem. Autor dos livros Além das 4 Linhas e Democracia Fútbol Club.Como fazer jornalismo independente, mantém uma campanha de financiamento coletivo no Apoia.se, que ajuda na produção do projeto Democracia Fútbol Club, que tem o objeto de contar a história de jogadores e técnico, times e clubes, torcedores e torcidas que usaram a desculpa do futebol para irem além das quatro linhas.

Como citar

JARDIM, Roberto. Um campeão contra o racismo. Ludopédio, São Paulo, v. 122, n. 37, 2019.
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