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Um clube, um país

Miguel Enrique Stédile 23 de junho de 2019

Como a trajetória do Paris Saint-Germain e de sua torcida expõe os dilemas da França sobre o Islã, a imigração e a xenofobia
 

Paris, 10 de janeiro de 2015. Apenas três dias após o assassinato de 12 pessoas no ataque à revista Charlie Hebdo. “Je suis Charlie” era a expressão de solidariedade e consternação adotada em manifestações ao redor do mundo. No futebol, o Paris Saint-Germain decidira substituir todas as identificações dos seus jogadores nas camisas pelo nome “Charlie” para a partida contra o Sport Club Bastia, na Córsega. Quando os dois times se perfilaram para o minuto de silêncio no gramado do estádio Armand Césari, uma faixa foi erguida pela torcida da casa: “O Catar financia o terrorismo e o PSG”.

Não foi a primeira vez que o PSG teve sua torcida relacionada a episódios de intolerância ou xenofobia. Há sete ou oito anos, era comum ouvir a torcida organizada Boulogne entoar gritos de “sales árabes” (árabes sujos). Desde que o clube foi adquirido por um fundo de investimentos do Catar, porém, a torcida do PSG deixou de ser a agressora, para se tornar o alvo dos ataques contra muçulmanos no futebol francês, seja de torcedores, seja da própria imprensa ou de políticos.

Esta transformação de significados expõe uma controversa relação entre o clube e sua torcida, consequência das inúmeras mudanças pelas quais o PSG passou em sua curta história de pouco mais de quatro décadas.

Procura-se uma torcida

O clube foi fundado em 1970 por 20 mil torcedores, incluindo empresários e personalidades esportivas locais, na esperança de que a capital francesa pudesse ter uma grande equipe, inicialmente a partir da fusão do Paris FC, disputando a segunda divisão, com o time da vizinha Saint-Germain-en Laye. A parceria durou apenas uma temporada, com os parisienses retomando seu nome original, enquanto o novo PSG era rebaixado para as categorias amadoras.

Nos anos seguintes, a situação se inverteria, com o Paris FC sendo rebaixado, enquanto o PSG retornava para a primeira divisão profissional. Porém, mesmo com os resultados de campo, o time não havia conseguido constituir uma torcida com as proporções de sua pretensão. A saída foi criar promoções de ingressos mais baratos. A estratégia funcionou e os jogos passaram a atrair moradores das periferias parisienses. Foi num destes setores mais acessíveis, no lado direito do estádio, conhecido como Boulogne, que se formou uma das torcidas mais violentas da França, reunindo skinheads e outros partidários da extrema-direita.

“As torcidas na França caracterizam-se pela absorção de dois modelos europeus de torcer: o britânico, que influenciou a região norte da França, e o italiano, que influenciou a região sul do país”, explica o historiador Bernardo Buarque de Hollanda, da Fundação Getúlio Vargas.

Os Boulognes Boys, assim como outros grupos que se aglutinavam naquele setor, rapidamente se tornaram conhecidos por suas posições xenófobas — contra judeus, árabes, negros, imigrantes — pela simpatia ao nazifascismo e, principalmente, pela violência.

Os conflitos contra torcedores do Olympique de Marselha e contra a polícia eram frequentes. O próprio Hollanda testemunhou um destes confrontos na final da Copa de França em 2006. “Como se trata da maior rivalidade em âmbito nacional, aquele jogo decisivo foi revestido de alerta por parte das autoridades. O Ministro do Interior francês mobilizou um impressionante contingentes de dois mil policiais para escoltar os torcedores do Olympique à capital francesa”. A medida foi insuficiente e as imediações do estádio se tornaram cenário para um confronto generalizado. “Por cerca de 30 minutos, testemunhei a uma série de incidentes graves de confrontos e por pouco não fui atingido”, relembra.

O Paris Saint-Germain agora tinha uma grande torcida, mas ela era majoritariamente branca, intolerante e violenta. Capaz inclusive de afastar os demais torcedores do estádio: na virada dos anos 80 para os anos 90, o clube teve sua pior média de público em duas décadas, justificada pelos conflitos permanentes envolvendo os torcedores mais extremos.

Aqui é Paris. Foto: Bernardo Borges Buarque de Hollanda. 

Um clube, duas torcidas

Apesar dos primeiros títulos na década anterior, o Paris Saint-Germain entrou nos anos 90 mergulhado em uma grave crise financeira. O clube encontrou a saída nas mudanças das leis esportivas francesas: por mais de 80 anos, apenas associações sem fins lucrativos poderiam gerir os times. As alterações legislativas permitiram a transformação das entidades em sociedades comerciais com acionistas. Assim, com mediação da prefeitura de Paris, o PSG se tornou uma Sociedade Anônima, com abertura de capital em 1991. Parte significativa das ações foram compradas pela emissora de TV Canal Plus que, seis anos depois, aumentaria sua participação acionária e assumiria 56,7% das ações do clube. A Associação PSG permaneceria com 34% e o restante com acionistas minoritários.

A violência de seus torcedores era uma das principais preocupações da nova diretoria, que decidiu estimular a criação de outra torcida na arquibancada oposta a Boulogne, a chamada Auteuil, no lado esquerdo do estádio. Mais aberta e heterogênea, incluindo jovens imigrantes do Magreb e da África subsaariana, este setor passou a concentrar aqueles que eram hostilizados no outro lado pelas manifestações nacionalistas, xenófobas e pela postura fechada dos Boulogne. Assim surgiram as torcidas Supras Auteuil e Tigris Mystic.

Se a intenção da diretoria era anular as manifestações dos torcedores da Boulogne, o resultado foi o pior possível. A organização dos torcedores na Auteuil, com valores opostos aos seus, foi a senha para aumentar a radicalidade e intolerância do grupo mais antigo. Os embates de rua entre as próprias torcidas do PSG se tornaram problemas mais frequentes para a polícia do que com times adversários.

Porém, foram nos anos 2000 que os conflitos entre as próprias torcidas se acirraram, escrevendo seu capítulo final. Em setembro de 2005, em Le Mans, um torcedor ficou gravemente ferido após um confronto entre os Boulogne Boys e os Tigris Mystics. Dois meses depois, em Auxerre, novos embates e dezenas de feridos. Em janeiro de 2006, em Lens, um ônibus dos Tigris foi atacado e todo o seu material foi destruído por torcedores do setor Boulogne. Em resposta, semanas depois, centenas de integrantes do Tigris atacaram uma dezena de membros do Boulogne. Esgotados pelos constantes ataques, o Tigris Mystics anunciou sua dissolução algumas semanas depois.

Em novembro do mesmo ano, o Paris Saint-Germain perdeu em casa para o israelense Hapoel Tel Aviv pela Copa da UEFA por 4 a 2. A torcida tomou as ruas com violência e uma multidão iniciou a perseguição a um jovem judeu francês Yanniv Hazout. Um policial negro, a paisana, partiu em sua defesa e tentou protegê-lo dos torcedores. Segundo a Promotoria francesa, enquanto cercavam o policial e o torcedor, os agressores faziam a saudação nazista e gritavam “judeu sujo”, “negro sujo”, “chora, macaco” e “morte aos judeus”. Quando Hazout passou a ser chutado e espancado, o policial disparou contra a multidão, matando um integrante dos Boulougne Boys, Julien Quemener, 25 anos, um técnico de eletrodomésticos.

Os Boulogne Boys, porém, só foram dissolvidos em 2008, por iniciativa do clube, após estenderam uma faixa com os dizeres “pedófilos, incestuosos e desempregados” em uma partida contra o RC Lens. A divisão entre arquibancadas permaneceu, assim como os conflitos entre os outros grupos remanescentes.

Finalmente, em fevereiro de 2010, Yann Lorence, 37 anos, integrante da facção Casual Firm do setor Boulogne, foi espancado e morto por integrantes da Supra Auteuil, antes de uma partida contra o Olympique de Marselha. O assassinato levou à dissolução dos Supra pela polícia francesa.

O PSG testemunhava a extinção de suas principais torcidas organizadas.

As relações perigosas

Em 2007, um notório torcedor do PSG assumiu a presidência da França: Nicolas Sarkozy, da União Por um Movimento Popular (UMP, de centro-direita). Por coincidência, fora o ocupante do Ministério do Interior quando os confrontos entre Boulogne e Auteuil se tornaram mais intensos, assim como no episódio da morte de Julien Quemener. Na época, defendeu a extinção generalizada das torcidas.

Em seu governo, mudaram as orientações para as relações diplomáticas francesas. “Com a presença mais forte dos EUA e China na economia africana e em ex-colônias francesas, o país procurou outros aliados para investir e desenvolver relações econômicas ligadas ao petróleo e atrair investimentos na economia francesa”, explica o sociólogo francês Benjamin Potet.

“No vácuo deixado por Washington, entra Paris”, explica o jornalista José Antônio Lima, da Carta Capital, especializado em Oriente Médio. “A França tem um anseio de grandeza e tem conseguido persegui-lo no Golfo Pérsico, onde as monarquias árabes começaram, desde a ‘Primavera Árabe’, a ter dúvida sobre a firmeza da aliança com os Estados Unidos”.

Ao mesmo tempo, no Oriente Médio, o Catar também buscava se reposicionar no tabuleiro mundial. Considerado o país mais rico do mundo e com a terceira maior reserva gás natural do mundo, o país é um emirado governado pela família Al Thani desde o século XIX, onde é difícil distinguir o que é propriedade da família e o que pertence ao Estado. Nos últimos anos, o país tem buscado tanto investir em grandes negócios no ocidente, quanto manter uma política de aliança efetiva com os Estados Unidos e com a França, apoiando, por exemplo, política e militarmente a ocupação na Líbia.

Com diversos fundos de investimentos, o Catar passou a investir ou controlar importantes negócios, como a grife italiana Valentino e o estúdio de cinema americano Miramax, além de ações da Volkswagen. Na França, os investimentos do emirado incluem o grupo editorial Lagardère e a Veolia, maior empregadora privada do país, além de volumosos empreendimentos imobiliários.

A criação e financiamento da emissora de televisão Al Jazeera também é obra do governo do Catar. Por um lado, assim como a aliança com países ocidentais, o papel da emissora na Primavera Árabe desagradou os governos mais autoritários. Por outro, o canal é acusado de dar espaço demais para os partidos islâmicos e de fazer publicidade para a causa jihadista.

Para José Antônio Lima, a contribuição do Catar às causas fundamentalistas é mais do que publicitária. “Como a maior parte das monarquias do Golfo Pérsico, o Catar financia direta e indiretamente grupos jihadistas, bastante próximos ideologicamente a essas monarquias”, afirma. “Enquanto a organização que hoje se chama Estado Islâmico atuava sob a bandeira da Al-Qaeda, ela também era ajudada financeiramente por doações privadas de milionários de países como Catar, Kuwait e Arábia Saudita, para as quais os governos davam guarida ao manter uma fiscalização frouxa”.

Os interesses de Sarkozy e do Catar se encontraram facilmente. Não se sabe exatamente qual o grau de influência do presidente no negócio que levou a compra do PSG pelo Qatar Sports Investiments (QSI), um fundo de investimentos, onde novamente não se distingue a propriedade estatal da familiar. No ano passado, questionado sobre seu papel na compra do PSG pelo jornal L’EquipeNicolas Sarkozy, agora ex-presidente, foi ríspido: “Você acha que os cataris são bestas para comprarem um clube por causa de um presidente? Eles têm um projeto econômico”.

Segundo reportagens do semanário France Football, Sarkozy fez mais do que mediar a compra do PSG pelos fundos catarianos. Seguindo as pistas das investigações do Fifagate, o escândalo de corrupção envolvendo os altos dirigentes da entidade maior do futebol, a revista descreve um encontro secreto no Palais de l’Élysée, residência oficial do presidente, reunindo Sarkozy, o príncipe do Catar Tamim bin Hamad al-Thani, o dirigente do PSG, Sébastien Bazin, e o Presidente da UEFA, Michel Platini. A reunião teria definido a compra do time francês, a criação de um canal esportivo de televisão e a mudança do voto do ex-jogador, então favorável aos Estados Unidos, pela candidatura do emirado.

Frequentador assíduo das arquibancadas e do vestiário do time parisiense, Sarkozy enfrenta atualmente uma investigação sobre corrupção durante o seu governo. Com o desejo de retornar à presidência francesa ameaçado, antes do Fifagate, o ex-presidente chegou a cogitar, segundo o jornal L’express, concorrer à presidência do… Paris Saint-Germain.

Um novo escudo para sonhar mais alto.

Sonhar mais alto

O projeto da QSI para o Paris Saint-Germain sempre foi nítido: transformá-lo em um clube das mesmas proporções galácticas que seus concorrentes europeus como Real Madrid, Barcelona ou Manchester United. Vale lembrar que a Qatar Foundation — fundo de investimentos para o desenvolvimento da educação e tecnologia no país — patrocina também o time catalão.

Dentro de campo, o brasileiro Leonardo, ex-jogador do clube francês, foi escolhido para redesenhar e modernizar o PSG. Fora de campo, o QSI investia pesado em transformar o Paris Saint-Germain em uma “marca global”. Incluindo a mais cara contratação do futebol francês até então, o sueco Zlatan Ibrahimovic. E, em seguida, do meio-campo inglês David Beckham, para uma única temporada, em final de carreira, nitidamente para alavancar a venda de camisetas. Segundo uma pesquisa do Sporting Intelligence, encomendado pela ESPN, o PSG alcançou em 2015 a maior folha salarial de uma agremiação esportiva, superando inclusive times da NBA e concorrentes como o Real Madrid ou o Manchester United.

A nova administração investia pesado ainda em publicidade, buscando ao mesmo tempo tanto internacionalizar a marca quanto associá-la aos valores mais tradicionais da cidade de Paris. A capital francesa era a cidade-luz, capital cosmopolita e intelectual do mundo, sinônimo de elegância. E o PSG se apresentava como embaixador de sua cidade. “Sonhe mais alto”, foi o slogan escolhido para a nova fase, que incluía mudança no escudo do time, enfatizando o nome Paris.

Fora de campo, nas arquibancadas, a meta era dissolver as torcidas violentas remanescentes e pacificar o estádio de Parc des Princes. Segundo Benjamin Potet, esse processo já havia se iniciado em 2009, quando “a diretoria ‘limpou’ o estádio para vender um clube mais sossegado”, através do projeto “Tous PSG” (Todos PSG). Na compra dos ingressos, os torcedores eram dispostos de forma aleatória no estádio. Além do nome do comprador no bilhete e a exigência de identificação na entrada do estádio, havia ainda promoções como descontos para jovens e gratuidade para as mulheres.

Para Bernardo Buarque de Hollanda, dois movimentos se somam para transformar a torcida do PSG.

“Tanto a dinâmica concorrencial interna, com uma série de grupos com características sociais e ideológicas muito distintas entre si, como as que se reuniam nas tribunas de Auteuil e de Boulogne, como a política clubística, que, antes incentivadora das suas torcidas organizadas, passou a adotar a estratégia do banimento dos torcedores organizados, tachados como um mal a ser extirpado do Parque dos Príncipes, a partir de 2010, quando o clube passa a ser controlado pelos catarianos”.

O sangue impuro dos inimigos

Enquanto a QSI seguia em seu projeto de internacionalizar o PSG — incluindo a demissão precoce do técnico Carlo Ancellotti pressionado por resultados — as políticas externa e interna da França se tornaram mais complexas. Ainda no governo Sarkozy, o país participou da coalizão militar na Líbia. Sob a direção do novo presidente, o socialista François Hollande, a França interveio no Mali, sua ex-colônia, e participa ativamente dos ataques a regiões do Iraque e Síria.

“A França é alvo principalmente por ser um dos países mais assertivos na coalizão anti-ISIS liderada pelos Estados Unidos, por ser um país simbólico com seu secularismo tradicional e por ter um histórico de intervenções contra outros grupos islamistas”, explica José Antônio Lima.

As relações entre o Catar e a França não sofreram alterações. “Ao contrário de Sarkozy, Hollande não parece ter uma relação tão próxima e pessoal com a família real do Catar. A relação entre os dois países é de continuidade e não de ruptura, até porque a França tem inúmeros interesses comerciais no Catar, com dezenas de companhias de capital francês atuando no país árabe, como a Airbus, que fornece dois terços dos aviões da Qatar Airways”, diz Lima. O jornalista lembra que, em maio, os franceses venderam 24 caças Rafale para o Catar, por € 6,3 bilhões. “Uma prova da importância geopolítica que a França e o Catar depositam na aliança”, conclui.

Internamente, as consequências da crise econômica, como a estagnação e o desemprego, foram terrenos férteis para a intolerância e xenofobia, comprovado pelo crescimento de alternativas de extrema-direita, como a Frente Nacional francesa. Os principais alvos dos militantes nacionalistas são os imigrantes, de origem do norte da África (Argélia, Tunísia, Marrocos) ou da África sub-saariana e Turquia, em sua maioria fiéis ao Islã.

Os atentados de janeiro e novembro em Paris intensificaram a criminalização, ainda que não oficial, destas populações. “É bem possível que os atentados de Paris sirvam como justificativa para dificultar a entrada de refugiados na Europa e promover o fechamento de fronteiras entre países do bloco, o que, no limite, mata o ideal da União Europeia”, afirma José Antônio Lima. “Deve haver um ímpeto maior das forças de contraterrorismo e, ainda que não haja novas leis direcionadas especificamente a minorias como árabes e muçulmanos, são essas comunidades que acabarão sendo estigmatizadas”.

Antes disso, as questões religiosas e étnicas já haviam invadido o campo do esporte. “O desempenho muito ruim da França nas competições de 2008, 2010 e 2012 ajudou muitos políticos a acharem motivos para este tipo de crítica, ainda mais em um momento de crise econômica que teve inicio em 2009”, explica Benjamin Potet.

A cabeçada de Zidane, de origem argelina, em Materazzi, no final da Copa de 2006 foi considerada exemplo do temperamento “irracional” dos imigrantes de áreas islamizadas. O fracasso na Copa de 2010 foi atribuído ao seu caráter multiétnico. “A equipe francesa sofre de divisões étnicas e religiosas, é uma equipe de arruaceiros, com a ética da máfia, uma equipe de pessoas que não se importam com a França”, declarou o filósofo francês Alain Finkielkraut. Três dias depois da eliminação do país pela África do Sul, um grupo de trinta torcedores invadiram a sede da Federação Francesa e picharam a frase “Aqui é Paris, não Argélia” nos muros da entidade. Os manifestantes deram a seguinte declaração para a imprensa: “Digam ao Sr. Escalettes [Presidente da Federação] que queremos uma seleção francesa branca e cristã, e que exclua os pretos e muçulmanos do time. Digam a ele que voltaremos e quebraremos tudo”.

O histórico líder da direita francesa, Jean-Marie Le Pen, já havia protestado em 1998, quando a seleção francesa venceu a Copa do Mundo, que haviam muitos “estrangeiros” na equipe. Em 2006, Le Pen explicou a eliminação francesa na Copa pela “proporção exagerada de jogadores ‘de cor’” convocados. Uma das críticas habituais dos integrantes da Frente Nacional, o partido de extrema-direita, é de que os jogadores não sabem cantar o hino nacional francês. É notório que jogadores como Karim Benzema, de origem argelina, se recusam a cantar A Marselhesa por conta dos versos que incitam a derramar “o sangue impuro” das “multidões estrangeiras”.

“Na verdade é bom lembrar que um jogador emblemático como Platini não cantava a Marselhesa, ele também era filho de imigrantes italianos e, mesmo como presidente da UEFA, ele ainda não canta. Assim como Zidane, Barthez, francês do sul, Vieira, Ribery, Benzema, Nasri, Malouda, Karembeu ou Trezeguet nunca cantavam”, lembra Potet.

Para o sociólogo, o fato de cantar ou não a Marselhesa foi bastante instrumentalizado. “Você sempre pode dizer que o jogador não se identifica à França porque não canta o hino, que são motivos políticos ou ‘de comunidade’ para não cantar, mas o fato é que franceses como o Barthez ou todo o time de 1986 não cantavam o hino”.

Não tardou para que o Catar e o Paris Saint-Germain também entrassem no radar da extrema-direita francesa. Uma das principais críticas ao time da capital e seus proprietários é Marine Le Pen, herdeira política de seu pai Jean-Marie e candidata derrotada nas eleições presidenciais em 2012 pela Frente Nacional. Durante a campanha, em um discurso contra os investimentos dos fundos do Catar em áreas de predominância muçulmana na capital, Marine declarou-se incomodada com a compra do PSG pelo Catar.

Quando o clube lançou sua página na internet em árabe, foi duramente criticado por uma nota pública, assinada pelo assessor de esportes do partido, Eric Domard, perguntando “se o PSG ainda é um clube francês?”. A nota dizia ainda que temia que o PSG se tornasse “um vetor da infiltração de um emirado islâmico na França (…) apoiador de movimentos jihadistas, que investe em subúrbios e no esporte por motivos obscuros”. O site do PSG está disponível em sete idiomas.

No mesmo tom ou acima da Frente Nacional, é comum encontrar nas centenas de páginas anti-islâmicas na internet referências ao clube parisiense. Alguns questionam quando será que os jogadores muçulmanos exigirão salas de orações ou a proibição de jogar bola no Ramadã. Outros acusam os torcedores de portarem bandeiras da Argélia e de gritarem “Viva os arábes!” nas comemorações de vitória do clube.

Saindo do espectro da extrema-direita, a própria Charlie Hebdo já havia estampado um torcedor do PSG como um radical anti-semita, trajando o tradicional lenço árabe.

Na capa da Charlie Hebdo: “A Palestina tem dois problemas: seus inimigos lá; seus amigos, aqui”. 

Somos todos Paris

Para Benjamin Potet, a ideia de que a torcida do PSG seja, agora, uma torcida islâmica não tem sentido. “Não existem torcidas muçulmanas, como não existem clubes muçulmanos ou partido político muçulmano, eles estão diluídos, em geral, nas torcidas orientadas à esquerda”, explica.

A opinião é compartilhada por Bernardo Buarque de Hollanda, que pesquisou as torcidas no país entre 2008 e 2009.

“O fator religioso não chegou a me chamar a atenção, mas o fator étnico, sim, é mais destacado, em particular entre determinadas franjas da torcida do PSG, onde havia territórios cujos códigos eram de negação à presença de negros e migrantes”.

Para Hollanda, são os elementos tradicionais, os geográficos, que exercem maior peso no imaginário futebolístico francês, com uma oposição grande das províncias a Paris, por um lado, e pela presença de rivalidades regionais acentuadas — Saint-Etienne vs Lyon — por exemplo — por outro.

A questão é também política, segundo Benjamin Potet. “O debate da exclusão nas torcidas é diretamente ligado ao tema do fascismo e antifascismo, existem grupos nacionalistas em Paris, Nice, Bastia, Lille, Lyon, por exemplo, e torcidas antifascistas em Marseille, Saint-Etienne, Nantes…”, explica. Potet cita o exemplo de Marseille, cidade multicultural com 25% de votos na extrema-direita, onde o Olympique tem torcidas de esquerda, ligadas ao antifascismo e que impedem as manifestações de extrema-direita no estádio.

Para o sociólogo francês, a questão religiosa e o futebol continuarão se encontrando, pelo menos dentro de campo. Por um lado, islamismo é hoje a segunda maior religião na França, com cerca de seis milhões de praticantes. Por outro, o futebol é um esporte popular, sendo “uma forma de ascensão social para muitos filhos de muçulmanos, vindos de bairros populares.”

Uma semana após aos ataques terroristas de novembro de 2015, o PSG entrou em campo contra o Loriant pela Ligue 1. Ao contrário do início do ano, nenhuma manifestação contra o PSG ou o Catar foram registradas. Todos os jogadores usaram braçadeiras negras em luto e La Marseillaise, como em vários pontos do mundo naquela semana, foi entoada vigorosamente. Após os atentados, o clube tem reafirmado sua imagem de representante da cidade-luz. Mais uma vez, a palavra “Paris” tem sido enfatizada nos comunicados e menções como nome do clube, ao invés da tradicional sigla PSG e em detrimento do “Saint-Germain”. Novamente, a equipe alterou o uniforme oficial durante o mês de novembro, adotando a frase “Je suis Paris” abaixo do escudo. Segundo o site oficial do PSG, a iniciativa partiu do presidente do clube Nasser Al Khelaifi. Alguns dias antes, Khelaifi juntou-se aos funcionários do clube em um minuto de silêncio em homenagem às vítimas. Anteriormente mais discreto, nos últimos meses, o presidente do clube tem se manifestado publicamente com mais frequência. Em outubro, havia reclamado que sua torcida era, agora, “comportada demais”.

Em quatro décadas, o PSG trocou de donos três vezes, alterou seu escudo outras sete vezes. Porém, não foi o único a passar por transformações. O próprio futebol francês ganhou outras dimensões, seja pela conquista da Copa do Mundo em 1998, sejam pela valorização do campeonato nacional e sua transmissão internacional. Assim como aumentaram a presença de imigrantes e seus descendentes fardando a camisa azul nas arquibancadas ou em público, independente de suas religiões. A França mudou, o PSG mudou com ela. “As torcidas estão em mudança contínua, o que se deve a pelo menos três instâncias de mutação: a sócio contextual, a futebolística e a grupal. Mudam os atores e muda a sociedade”, conclui Bernardo Buarque de Hollanda.

Em 2015, após quatro décadas, o Paris Saint Germain alcançou a meta de seus fundadores, comemorando uma inédita conquista dos quatro campeonatos franceses na temporada: a League 1, a Copa da Liga, a Supercopa e a Copa da França. A equipe contava com dez jogadores franceses. Entre os estrangeiros, há dois católicos praticantes, o argentino Lavezzi e o italiano Veratti, e sete evangélicos: os brasileiros Thiago Silva, David Luiz, Lucas, Marquinhos e Maxweel, o uruguaio Cavani, além do francês Blaise Matuidi. E, claro, Zlatan Ibrahimovic, que acredita ser o próprio Deus.


Puntero Izquierdo menorPublicado originalmente no Puntero Izquierdo em 2016, que é uma revista digital de publicação de histórias de futebol.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Miguel Enrique Stédile

Doutor e Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Autor de "Da Fábrica à várzea: clubes de futebol operário em Porto Alegre" (Prismas, 2015) e co-autor de "À sombra das chuteiras meridionais: uma História Social do futebol (e outras coisas...)" (Fi,2020).

Como citar

STéDILE, Miguel Enrique. Um clube, um país. Ludopédio, São Paulo, v. 120, n. 31, 2019.
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