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Uma arena vazia: Mancha Verde e os deslocamentos simbólicos no Allianz Parque

Mariana Mandelli 28 de setembro de 2020

A série “Práticas torcedoras em territórios palmeirenses” é baseada na dissertação de mestrado de Mariana Mandelli, intitulada “Allianz Parque e Rua Palestra Itália: práticas torcedoras em uma arena multiuso” (Antropologia-USP, 2018). A pesquisa de campo foi realizada entre 2015 e 2017 nos arredores do Allianz Parque com o objetivo de investigar os efeitos da modernização do estádio da Sociedade Esportiva Palmeiras entre a torcida. Confira a série de textos aqui.

Foto: Mariana Mandelli

O torneio que não deveria ter começado avança a despeito dos mais de 140 mil mortos e dos 4,7 milhões de brasileiros infectados com o novo coronavírus. Com arquibancadas vazias – ao menos por ora[1] –, o noticiário futebolístico ganhou novas pautas, como a contaminação de jogadores e funcionários dos clubes, e as consequentes decisões dos tribunais do trabalho[2] para impugnar partidas, como ocorreu na 12ª rodada do Campeonato Brasileiro de 2020.

Assim como nos estádios pelo mundo e pelo País, as cadeiras do Allianz Parque[3] encontram-se preenchidas por faixas, mosaicos e bandeiras, no esforço de emular a torcida palmeirense nessa retomada do calendário esportivo. Como se nota, a maior parte desse material é de propriedade das torcidas organizadas, cujos membros comprometem-se a levar, distribuir e recolher os itens em todos os jogos que o Palmeiras disputa em casa.

A presença de uma grande quantidade de adereços de grupos organizados como a Mancha Alvi Verde, a maior torcida desse tipo ligada ao Palmeiras, em uma arena multiuso localizada em São Paulo[4] pode ser interpretada dentro de duas chaves: a da ironia institucional e a da artificialização da festa torcedora, que tem provocado deslocamentos simbólicos nas formas de torcer.

No primeiro escopo interpretativo, o artigo do pesquisador Lucas Giachetto de Araujo é didático ao classificar o momento do futebol sem torcida como “a hipocrisia das bandeiras”: tendo em vista a forma como as entidades organizadas são tratadas por órgãos públicos de controle nas últimas décadas, é irônico que elas tenham tanta presença nesse momento de ausência, por assim dizer. Nas palavras do autor:

“O simulacro de futebol visto após a paralisação tem nas arquibancadas algo muito intrigante para quem frequenta os estádios, principalmente no estado de São Paulo: a quantidade de bandeiras presentes nas bancadas. Para cobrir os lugares vazios das arquibancadas, foi permitida a entrada de torcedores para estenderem suas bandeiras e dar um clima de jogo, que, apesar de deixar menos ridícula a volta do futebol, não diminui a hipocrisia de como são tratados os torcedores, principalmente de organizadas, que têm seus materiais, cantos e apoio incondicional sempre bem-vindos, mas que sua presença dentro dos estádios, com os mesmos materiais, cantos e apoio como um inimigo que deve ser expurgado”. (ARAUJO, 2020)[5]

Na segunda chave de análise, é possível observar elementos para além de um torcer artificial no Allianz Parque, composto por bandeiras inertes, sons gravados de torcida e totens de papelão, como se vê também em outros clubes, quando investigamos os modos de fazer o estádio em tempos pandêmicos. Assim, cabe a questão: na ausência e no silêncio de formas de torcer, quem são os torcedores responsáveis por imprimir algum tipo de identidade à arena nesse período?

Foto: Divulgação

Para entender melhor essa dinâmica, conversei com Mauro[6], um torcedor organizado da Mancha Verde com quem mantenho contato desde o início da pesquisa de mestrado, em 2015. Ele aparece em alguns trechos da minha dissertação e hoje é um dos responsáveis por adornar a arena com o patrimônio da torcida. Segundo ele:

O jogo começa bem antes do que imaginam. O Palmeiras nos dá um horário estipulado e temos que estar fora do estádio antes que as delegações dos clubes e a federação estejam lá. Então tem vezes em que entramos 6 ou 7 horas da manhã… ou seja: é acordar cedo, pegar ônibus ou até dormir na quadra[7] um dia antes para não se atrasar. Exemplo: se marcamos às 6h com o Palmeiras, temos que estar às 4h na sede da torcida para separar o que vai levar, encher o caminhão e ir até o estádio. Segundo Mauro,

“se o jogo é às 16h, até às 12h tem que estar tudo pronto. Se for às 18h, até umas 14h, no máximo”, os materiais devem estar preparados. Para as partidas marcadas às 21h30, os manchistas adentram o Allianz Parque por volta das 9h para “deixar tudo pronto bem cedo”.

É interessante observar que, mesmo sem a presença de torcedores nos jogos, há uma espécie de manutenção da rotina dos palmeirenses organizados, acostumados a estarem na arena horas antes das partidas para levarem e ajeitarem o patrimônio nas arquibancadas.

Segundo Mauro, a quantidade de manchistas que levam as faixas e bandeiras para o Allianz Parque desde a retomada do futebol varia: “Em um jogo normal vão de 10 a 15 pessoas, as figurinhas carimbadas de sempre que fazem acontecer realmente. Mas Palmeiras x Gambá na final[8] tinha cerca de 30, 50”, disse.

Ao ser questionado sobre como é feita seleção de lugares onde as faixas são posicionadas, Mauro ressaltou que existe um ordenamento da arquibancada respeitado pelas torcidas organizadas e seus membros:

“Como não tem público e torcida, escolhemos pelo lugar de mais visibilidade. Para colocar uma alma, uma vida no estádio. Todas as organizadas se fazem presente com faixa e bandeira e os lugares sempre são os mesmos, pelo menos até agora não vi ninguém mudando o lugar. […] Entramos com mastros e com o maior número de material possível, para não deixar espaços em branco. […] Fazemos o melhor sempre, aliás entre as torcidas de São Paulo e arrisco a dizer até do Brasil, somos a melhor. Mas tem umas que dão espetáculo, tipo a do Fortaleza”.

Foto: Divulgação

É preciso frisar que, para a colocação de faixas no Allianz Parque, o Palmeiras impõe algumas regras. O torcedor ou grupo que deseja participar precisa entrar em contato com o clube de modo institucional, recebendo a seguinte mensagem:

Prezado torcedor, bom dia.

Agradecemos sua participação através do e-mail. Abaixo seguem as regras que regem esta campanha:

– Esta ação é gratuita e exclusiva para sócios Avanti[9] adimplente;*

– Favor informar nome completo, CPF e telefone;

– A bandeira deve conter as dimensões 2m x 1m (dois metros por um metro);

– A imagem da bandeira deverá ser enviada por e-mail, respondendo para este mesmo endereço;

– Sua bandeira ficará exposta em todos os jogos do Palmeiras como mandante sem a presença de torcida. As bandeiras não serão exibidas em partidas cuja a organização do torneio não autorizar;

– Sua bandeira passará por um processo de análise e, sendo aprovada, deverá ser entregue diretamente na [a definir], das 9h00 às 15h00, impreterivelmente 2 (dois) dias antes de cada partida;

– Para sua segurança, a bandeira será identificada com etiqueta numerada contendo nome, telefone e a foto enviada.

– Bandeiras com cunho comercial e político não serão aceitas.

*Quantidade limitada de vagas.

Qualquer dúvida, estamos à disposição.

Atenciosamente,

Sociedade Esportiva

Como reforça a fala de Mauro e como mostram as imagens da transmissão dos jogos, as faixas da Mancha Verde têm ocupado as cadeiras centrais do Allianz Parque. Isso é interessante porque, em termos de preenchimento de espaço da arena, há um deslocamento da entidade do setor Gol Norte, o de ingressos menos custosos[10] e o único onde se é permitida a permanência de torcedores organizados, para o setor Central Leste, um dos mais caros do novo estádio.

O Allianz Parque é dividido da seguinte maneira:

Foto: Divulgação

Antes da pandemia, é necessário lembrar que, por ser a maior torcida organizada ligada ao clube, os estilos de torcer da Mancha Verde acabam se sobressaindo em relação aos demais, tanto no Gol Norte a quanto no restante da arena. Além de ter seus cânticos reproduzidos em todos os setores, ela é responsável pela organização dos grandes mosaicos das arquibancadas, como ocorreu na final da Copa do Brasil de 2015, nas oitavas de final da Libertadores de 2017 e na final do Campeonato Paulista de 2018 e 2020, por exemplo. Também distribui bexigas, a depender da partida, e tem o maior bandeirão entre as torcidas organizadas do Palmeiras. Assim, por ser quantitativamente dominante no Gol Norte, pode-se afirmar que o grupo exerce um domínio entre os gomos 117 e 118 do setor, o que fica evidente pela quantidade de torcedores não organizados que são impelidos a seguir algumas práticas torcedoras dos manchistas – que funcionam quase como normas – se quiserem ocupar aqueles assentos, tais quais o uso de camisa branca[11], por exemplo.

Durante o período que etnografei os jogos do Palmeiras, entre 2015 e 2017, era possível ver a maior parte dos torcedores no setor Central Leste sempre sentada, especialmente em jogos não decisivos. Quando o Palmeiras vai ao ataque, os torcedores desse setor costumam se levantar, assim como na comemoração dos gols ou de revolta e reclamações com a arbitragem – prática essa comum, aliás, em diversas torcidas. É possível ver poucos palmeirenses em pé continuamente, o que ocorre apenas no fundo da arquibancada, onde não atrapalham a visão dos outros torcedores, e próximos à grade que divide esse setor do Gol Norte. Ou seja: existe um grande contraste entre as formas de torcer dos dois setores, o que fica evidente justamente pela presença da torcida organizada em um deles.

Assim, ver o patrimônio da Mancha Verde ocupando hoje as cadeiras da Central Leste é, além de irônico, simbólico. Isto porque, além de deslocar a maior entidade organizada do clube para um setor caríssimo, cujo ingresso custa mais do que o dobro do que o do Gol Norte, reforça a presença da torcida mesmo a contragosto da lógica pasteurizadora da arena multiuso. Mais do que isso: devolve ao grupo seu lugar antigo no Palestra Itália, já que antes da reforma que transformou o “jardim suspenso” de concreto no metálico Allianz Parque, a Mancha Verde costumava posicionar-se precisamente onde hoje é o setor Central Leste.

É possível dizer que, mesmo na lacuna provocada pela pandemia, há o protagonismo das torcidas organizadas. Com ou sem público, são elas quem resistem e representam. Na presença e na ausência de torcedores, é preciso compreender que a dinâmica desses grupos ainda é majoritária, mesmo sob as decisões de instituições estaduais, sob a filosofia higienista das arenas multiuso e, mais recentemente, sob uma crise sanitária sem precedentes em curso.

Foto: Divulgação

É como Sandro, outro torcedor com quem mantenho contato há 6 anos e que aparece na minha dissertação, disse-me em 2017 após um jogo do Palmeiras contra o Sport Club do Recife: “Hoje os estádios são frios. Um estádio frio que nem o jogo de hoje, só a Mancha ali cantando e não é naquela intensidade de um jogo pegado, então o time acaba se tornando frio”. Sua fala de três anos atrás, de outro momento do futebol e do mundo, combina com a de Mauro sobre o que estamos vivenciando hoje:

“Eu me sinto honrado por poder estar representando a torcida do Palmeiras de alguma forma. Já que não podemos estar presentes no jogo, então estamos deixando o estádio bonito e com uma vida. Isso me deixa mais próximo do que eu amo, que é o Palmeiras, e dos meus amigos. Já o clube fica mais perto das entidades como a Mancha, a T.U.P. e etc”.

Estádio, arena, casa, rua, cerco, formas de torcer, agrupamentos, torcidas organizadas, programa de sócio-torcedor etc., são alguns dos elementos que compuseram minha pesquisa e que tenho abordado ao longo de uma série de textos quinzenais publicados na Arquibancada do Ludopédio.

Notas

[1] Alguns clubes pressionam para a volta das torcidas aos estádios, mesmo que em menor número do que o regular. É o caso do Flamengo. Até o momento, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) manifestou-se contra. Ler em CBF veta volta do público aos estádios, e Flamengo aciona Brasília. O Globo, 26 de setembro de 2020. Acesso em 26/09/2020.

[2] Menção à partida entre Palmeiras e Flamengo do dia 27 de setembro, antecedida por uma série de decisões judiciais, troca de farpas entre os clubes e atuação da CBF.

[3] Todos os setores da arena palmeirense têm cadeiras.

[4] Desde 1995, ano em que ocorreu a chamada “Batalha do Pacaembu”, as torcidas organizadas paulistas vêm enfrentando uma série de sanções do Estado, manifestadas de diversas formas, como a proibição de bandeiras nos jogos e, mais recentemente, a presença de torcida única em clássicos no período pré-pandemia.

[5] Ler o artigo completo em Organizadas em tempos de pandemia: a hipocrisia das bandeiras. Ludopédio, 18 de agosto de 2020. Acesso em 26 de setembro de 2020.

[6] Para proteger a identidade de todos os meus interlocutores, todos os nomes foram trocados na dissertação de mestrado e nesta série de artigos. Mauro também aparece na minha pesquisa, sob o mesmo codinome.

[7] Mauro refere-se à quadra da escola de samba da Mancha Verde, onde é a sede da torcida.

[8] A final citada é a do Campeonato Paulista de 2020, disputada entre Palmeiras e Corinthians no Allianz Parque. Como se sabe, é comum torcedores palmeirenses denominarem, de modo pejorativo, os corintianos como “gambás”.

[9] Nome do programa de sócio-torcedor do Palmeiras, tema a ser abordado em futuro artigo desta série.

[10] No último jogo com público no Allianz Parque (Palmeiras x Guarani pela Libertadores), em março, os ingressos para o Gol Norte custavam R$ 100 e para a Central Leste, R$ 230. Para quem é sócio-avanti, os valores têm desconto.

[11] Não é necessário trajar uma camisa da organizada. O mandatório, nesse caso, é o vestuário branco.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Mariana Mandelli

Doutoranda em Antropologia Social na USP, com mestrado na mesma área e instituição, com pesquisa que investigou o processo de "arenização" do Allianz Parque. É graduada em Jornalismo pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e em Ciências Sociais pela USP.

Como citar

MANDELLI, Mariana. Uma arena vazia: Mancha Verde e os deslocamentos simbólicos no Allianz Parque. Ludopédio, São Paulo, v. 135, n. 66, 2020.
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