142.52

Uma dança constante com o movimento das ondas: Gabriel Medina e a sua intensa relação com o mar

Fidel Machado 26 de abril de 2021
115 notas excelentes, entre 9 e 10 em etapas do WCT (World Championship Tour); duas vezes campeão mundial de surf; viradas de baterias históricas com menos de 2:24 minutos e com menos de 5’ minutos para o fim da bateria com a necessidade de alterar duas notas; brasileiro; alguns tímidos e controversos posicionamentos políticos; atual líder do circuito mundial e contando… Gabriel Medina levou a última etapa e venceu o Rip Curl Narrabeen Classic. Com um repertório variado de aéreos e um leque vasto de manobras, o brasileiro brincou de quebrar recordes na temporada 2021 do World Surf League Championship Tour. Vinte sete finais em etapas do CT, décima quinta vitória e maior somatório de notas (18,77).
Gabriel Medina
Gabriel Medina. Foto: WSL/ED SLOANE/Fotos Públicas

Por mais que o primeiro parágrafo tenha versado sobre métricas, majoritariamente, quantitativas, o intuito desse texto não possui esse direcionamento. Entendo e respeito a relevância dessa significativa parcela. Contudo, não sou um analista técnico nem pretendo ser. Não possuo competência mínima para emitir pareceres sobre o desempenho ou a performance dos surfistas. Ademais, tenho uma certa relutância em pensar o surf de forma circunscrita ao dado objetivo e ao gesto motor bem executado. Nutro um apreço por um olhar mais relacional, mais dialógico e, portanto, menos objetivista, utilitário ou até mesmo mais distante de uma visão mais funcionalista. Uma perspectiva mais balizada e interpretada pela ótica das afecções, compreendida como aquilo que afeta. Isso posto, a proposta aqui pretendida fará um empréstimo de dois conceitos do filósofo alemão, Friedrich Nietzsche, a saber, Amor Fati e Eterno Retorno com o intuito de brincar com a intensa relação com o mar e a dança com as ondas protagonizada por Gabriel Medina na etapa supracitada.

A afirmação da imponderabilidade do mar e da imprevisibilidade do formato, tamanho e extensão das ondas parece dialogar de forma muito prolífica com a presentificação na intensidade do momento, do instante. É nesse rumo que tentarei ensaiar as próximas linhas.

A filosofia de Nietzsche é um novelo. Por esse motivo, pinçar alguns termos se torna algo difícil, pois os conceitos possuem íntima relação entre si e, na grande maioria das vezes, há um lastro de outros saberes atrelados que subsidiam as definições. Todavia, farei uso dos dois conceitos já anunciados e os lerei a partir da sua dimensão ética. Um convite nietzschiano para afirmar a vida, para assumir uma postura mais ativa e afirmativa perante as atribulações da vida.

Amor Fati, de maneira muito geral é o amor ao fato, ao momento presente, ao destino. Se pensarmos no surf, seria a afirmação das oscilações do oceano, da modificação constante de diversos fatores incontroláveis. Ao entrar em contato com o mar, o controle passa a ser, constantemente, negociado, borrado e incessantemente revisitado. Ondas mais fortes, mais fracas, para a direita, para a esquerda, tubulares, “fechadeiras”. Praias com o fundo de pedra, fundo de areia, muita remada, ondas pequenas, cavadas ou ondas grandes. O surf se constitui por essas negociações, por esses ajustes, por essas adaptações e por esse cont(r)ato. Negar todas essas condições impediria o surf. Por sua vez, caso haja uma resignação, poderia culminar em uma ação passiva ou até mesmo a uma inação. Porém, para os fins aqui anunciados, afirmar e dançar com as dificuldades imponderáveis resulta em uma outra conjuntura, em outras formas de sentir, de pensar e de agir.

Estar permeável à dinamicidade e a intensidade do instante no surf são elementos alucinantes. A fluidez, a intenção da remada, a presença no momento do drop e do andar a onda, a sensação de pertencimento, unidade e uma certa simbiose entre o surfista e o mar, pode propiciar um sentimento de êxtase, de embriaguez. Um convite a afirmação do ris(c)o iminente. Sob a ótica aqui anunciada, declaradamente, Medina faz e fez de todo esse caldo de sensações, uma dança com as ondas.

Na mesma esteira do Amor Fati, o Eterno Retorno também possui uma forte relação com a dimensão ética e, por esse e outros motivos, os dois conceitos guardam um grau de complementaridade.

O maior dos pesos. – e se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: “Esta vida, como vocêa esta vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma sequência e ordem – e assim também essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse instante e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente – e você com ela, partícula de poeira!”. – Você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: “Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!”. Se esse pensamento tomasse conta de você, tal como você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa, “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?”, pensaria sobre os seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela? (NIETZSCHE, 2012, p. 205)

Gabriel Medina
Gabriel Medina. Foto: WSL/LAURENT MASUREL/Fotos Públicas

Reiteradamente, Gabriel Medina comenta em entrevistas da sua conexão com o mar. Por diversas vezes, relata que no oceano não está só. Certamente, outros surfistas também possuem uma comunhão com o oceano, com a água. Invariavelmente, temos muitos surfistas incríveis com um enorme potencial, como o também campeão mundial Ítalo Ferreira. Todavia, Medina, tem me chamado bastante atenção, pois, em certa ocasião, quando foi indagado se abriria mão dos dois títulos mundiais para viver tudo aquilo de novo, sem titubear, ele responde: “Sim, eu faria tudo de novo”.

O imponderável e o imprevisível dialogam diretamente com a existência, com as dúvidas, com a insegurança de nos percebermos não mais ancorados em muletas metafísicas, mas construtores e artistas da nossa própria vida. Tais características, aqui elencadas, se correlacionam, em alguma medida, com a dimensão inconstante e porque não dizer caótica da vida, do mar. Para este que vos escreve que não tem nenhum interesse em ser árbitro nem tampouco juiz, Gabriel Medina tem sido um artista dançante.

A América do Sul continua comemorando. O baile é bom. Dancemos!!

 

Conversas com:

NIETZSCHE, F. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2012

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Fidel Machado

Bacharel em Educação Física pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Filosofia e Estética do Movimento (GPFEM - Unicamp).

Como citar

MACHADO, Fidel. Uma dança constante com o movimento das ondas: Gabriel Medina e a sua intensa relação com o mar. Ludopédio, São Paulo, v. 142, n. 52, 2021.
Leia também:
  • 145.32

    “Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar”: viver não é preciso, surfar também não

    Fidel Machado
  • 138.10

    A ampliação da visibilidade do surf e a invisibilidade de alguns corpos: o outside é democrático?

    Fidel Machado
  • 137.54

    Um rapaz latinoamericano, um dançarino profano, um gênio

    Fidel Machado