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Uma história do futebol feminino no Brasil

Giovana Capucim e Silva 11 de setembro de 2013

Apesar de historiadora, nunca ocupei esse espaço para escrever sobre História. Entretanto, a falta de conhecimento do público em geral sobre o passado do futebol feminino leva-me a fazê-lo. O primeiro registro de uma partida de futebol (ou um match, como era chamada na época) entre mulheres ocorreu em de 1921 quando jogaram no campo do Tremembé F. C. “Senhoritas Tremembenses” versus “Senhoritas Cantareirenses”. Desse pontapé inicial até a equipe de Marta e cia que brilhou ao longo da última década, as resistências enfrentadas pelas praticantes dessa modalidade foram enormes: da produção social do adequado para o corpo feminino às políticas públicas.

Para a nossa sociedade a ciência é portadora da verdade. Dificilmente vemos algo que seja “cientificamente comprovado” ser contestado. Esse paradigma surgiu no final do século XIX quando os avanços científico e tecnológico levaram a ciência a ocupar tal posto, que outrora fora ocupado pela religião. Naquele momento os produtores deste saber eram homens. Eles forjavam conhecimento inclusive sobre o corpo da mulher. Desta maneira, estabeleceram, através de seus estudos, que a natureza feminina era ser mãe e criar seus filhos. Foi nesse mesmo século que se criou a noção de esporte cujo objetivo era honrar os melhores “exemplares” de homens. A ideia da competição esportiva era determinar aquele cujos atributos de masculinidade se mostrassem superiores aos demais. As habilidades requeridas para a prática esportiva – força física, coragem, superação de limites, resistência e exposição pública – eram marcas do que se entendia na época como parte da natureza masculina, já compreendida na época como oposta à feminina.

Seleção feminina posa para a foto antes da partida contra a Grã-Bretanha nos Jogos Olímpicos de 2012. Foto: Ricardo Stuckert – CBF.

Adentrando o século XX consolidaram-se as teorias higienistas e eugenistas que tinham como uma de suas premissas a busca de um corpo saudável através dos esportes. Assim, as mulheres passaram a fazer parte, gradualmente, do universo esportivo. Nasceu naquele momento, no entanto, uma preocupação: poderia a mulher praticar qualquer esporte? Afinal as modalidades esportivas haviam sido pensadas primeiramente como práticas voltadas aos homens, havia, então, a possibilidade de algumas delas serem prejudiciais para as mulheres. Não tardou para que certos grupos da sociedade passassem a ver com maus olhos o crescimento do número de mulheres praticando o futebol.

Desta forma, em 1941 em plena ditadura estadonovista foi assinado pelo presidente Getúlio Vargas um decreto-lei que regulamentava as práticas esportivas no Brasil. Seu artigo 54 proibia as mulheres de praticarem esportes inadequados a sua natureza. Não foi divulgada naquela época nenhuma lista de quais seriam esses esportes. Apenas afirmava-se que tal incumbência caberia ao Conselho Nacional de Desportos (CND). Com o fim da Era Vargas houve a confecção de uma nova constituição, mas não foi modificado este aspecto da legislação esportiva. As mulheres continuavam, na teoria, proibidas de jogar futebol.

No entanto, não era exatamente o que se dava na prática. Muitas foram as formas encontradas de burlar essa proibição, destacando-se o futebol beneficente. Os jogos organizados em prol de entidades assistenciais possuíam um caráter de entretenimento e solidariedade, apresentando-se fora da dinâmica esportiva. Essas brechas encontradas pelas mulheres e empresários fez com que a prática do futebol não desaparecesse. Também organizaram-se durante a democracia populista equipes femininas em clubes profissionais na versão masculina, como o Atlético-MG, Bahia, Vitória, Guarani e Ponte Preta.

Algo impensável durante a época da proibição, a seleção brasileira feminina sub-17 realiza treino físico. Foto: Rafael Ribeiro – CBF.

O crescimento da prática do futebol por mulheres, porém, novamente foi interrompida. Com a chegada dos militares ao poder muito mudou no Brasil. A repressão tomou conta de múltiplos espaços da sociedade. Os novos donos do poder preocuparam-se também em reafirmar a proibição do futebol feminino. Em 1965 o CND cumpriu com a incumbência que lhe fora dada pelo decreto-lei de 1941. Divulgou uma lista das modalidades cuja prática estava proibida para as mulheres, dentre as quais constavam o futebol, futebol de areia e de salão. O governo brasileiro revogou tal deliberação apenas em 1979, motivado pela aproximação da FIFA com o esporte e o eminente reconhecimento da mesma pela instituição.

Ainda assim, tal oficialização deu-se apenas em 1981 e a regulamentação do futebol feminino como esporte no Brasil foi feita pelo CND em 1983. A partir disso foi intenso o crescimento de equipes no país e no resto do mundo. De tal maneira que em 1991 foi organizada a primeira Copa do Mundo pela FIFA. O sucesso vinha sendo tão surpreendente que na ocasião da realização da segunda edição em 1995, Joseph Blatter, então presidente da FIFA, chegou a afirmar que por volta de 2010 o futebol feminino seria tão importante quanto o masculino.

Tal profecia não realizou-se em 2013 e parece ainda bastante distante de fazê-lo. As razões para isso, como se viu, não vem de hoje, mas são históricas. A ideia de que futebol não é esporte para mulher vem de longa data. O estranho é ainda ouvirmos isso. Parece-me que, apesar das mudanças institucionais com relação ao futebol feminino as mentalidades e olhares sociais sobre esse esporte e a função da mulher na sociedade pararam no tempo.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Giovana Capucim e Silva

Mestre em História pela Universidade de São Paulo (USP) e é integrante do GIEF (Grupo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol) e do LUDENS (Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol e Modalidades Lúdicas-USP).

Como citar

SILVA, Giovana Capucim e. Uma história do futebol feminino no Brasil. Ludopédio, São Paulo, v. 51, n. 4, 2013.
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