32.6

Vagabundo jogador de futebol

Marcos Alvito 20 de fevereiro de 2012

“Não quer que o chutem também, vagabundo jogador de futebol?” É com estas  palavras, seguidas de um pontapé, que o leal Conde de Kent agride um mordomo que ousara desrespeitar o Rei. É uma cena da tragédia Rei Lear, escrita por Shakespeare há quatrocentos anos atrás. Naquele tempo o futebol era considerado um jogo da ralé e ser chamado de jogador era um xingamento. Na verdade, Shakespeare não era o primeiro e nem seria o último a condenar o jogo de futebol. Philip Stubbes, um contemporâneo do bardo, considerava o jogo “um passatempo demoníaco… que nos afasta da divindade, seja jogado no domingo ou em outro dia, é maldito e deve ser proibido… uma prática sangrenta e mortal mais do que um esporte ou passatempo.”

Mas em 1914, quando o rei da Inglaterra, Eduardo VII, cumprimentou os jogadores que disputaram a final da FA Cup (Copa da Inglaterra), o futebol já era respeitável o suficiente para justificar a presença da família real, interessada na enorme popularidade do esporte. Exatos seiscentos anos antes, em 1314, o também rei Eduardo II proibira os jogos de futebol em Londres devido “aos tumultos causados pelo futebol em locais públicos, gerando inúmeros males.” Como é que se deu essa transformação?

Jogos com bola existiram em diversas sociedades ao longo da história, na Grécia e em Roma, na China do início do século II,  bem como em diversos países da Europa durante a Idade Média (França e Itália dentre outros). Mas  a matriz do futebol jogado hoje em todo o planeta veio da Inglaterra.

Durante séculos, não havia apenas uma, mas várias modalidades do jogo de foot-ball. Na ausência de um sistema de transportes e de comunicações mais desenvolvido, cada localidade desenvolvia tradições próprias. Esses jogos faziam parte do calendário agrícola, tradicional e religioso dessas comunidades: eram disputados no Natal, na Páscoa e sobretudo na Terça-Feira Gorda, quando assumia um caráter carnavalesco de inversão da ordem social. Por um dia, os jovens da aldeia se reuniam às centenas para beber, brincar e finalmente jogar o futebol. Por vezes, jogavam contra os jovens de uma aldeia vizinha, às vezes dividiam-se em casados contra solteiros ou simplesmente em dois grupos, sem que houvesse preocupação em que os dois lados tivessem números iguais.

A bola normalmente era uma bexiga de animal, às vezes revestida de couro e na maioria das vezes não havia propriamente regras, era um vale-tudo com o propósito de levar a bola até os goals (objetivos). Olhos roxos, braços machucados e pernas quebradas eram muito comuns e as mortes não eram raras, caso em que os legistas costumavam registrar como “Death by Football” (morte por futebol). Ainda hoje, em algumas regiões da Inglaterra, existem festas em que há um jogo de bola muito semelhante aos descritos nas fontes históricas. Em Ashbourne, por exemplo, no norte da Inglaterra, perto de Derby, há dois jogos em dias seguidos, na Terça-feira Gorda e na Quarta-feira de Cinzas. Os confrontos se dão entre os Up’ards (os “de cima”) e os Down’ards (os “de baixo”), representando duas áreas da cidade. A disputa começa nas ruas da cidade mas depois se dá em campo aberto e a distância entre os gols é grande: mais de cinco quilômetros. O percurso inclui um pequeno rio e a massa de jogadores briga pela bola na água. O jogo de Ashbourne é atestado pelo menos desde 1683, mas é bem possível que já ocorresse bem antes. 

O jogo de Ashbourne.

Voltando à Idade Média, os reis e as autoridades locais promulgaram uma série de proibições, impondo multas e até a prisão, mas de nada adiantou. Este tipo de jogo tornara-se uma diversão popular tradicional. Quando era jogado nas cidades causava ainda mais problemas, interrompendo o comércio e os negócios em geral, destruindo propriedades e ameaçando a ordem pública. Além disso, os reis preferiam que seus súditos praticassem o arco-e-flecha, preparando-se para a guerra, ao invés de baterem-se uns aos outros em disputa da pelota.

Ajuntamentos de jovens eram por si uma ameaça à ordem pública, em uma época em que não havia sistema de policiamento e os ânimos populares inflamavam-se com facilidade. Para “piorar”, jogos de futebol começam a ser utilizados como uma forma de resistência contra medidas impopulares.

Há pelo menos dois registros do século XVIII de multidões que se reuniram pretensamente para jogar futebol, mas na verdade agruparam-se para destruir as cercas que lhes estavam roubando o acesso a uma terra que durante séculos fora comum. Em 1765, em West Haddon, no condado de Northampton, depois de verem seus protestos formais ignorados pelas autoridades, os camponeses colocam um anúncio no jornal, convocando os “jogadores” a reunirem-se nos pubs para depois praticarem o futebol. Poucos momentos depois da bola rolar a multidão toca fogo nas cercas causando um enorme prejuízo aos proprietários que queriam expulsá-los daquelas terras. Cinco homens chegam a ser presos mas os organizadores do “jogo de futebol” desaparecem. O aumento do preço dos alimentos também gerava revoltas populares, como a ocorrida em Kettering em 1740, quando quinhentos homens se reunem com o pretexto de jogar futebol, para em seguida destruirem um moinho como forma de protesto.

As autoridades laicas não eram as únicas inimigas do jogo. Muitas vezes o futebol era praticado no domingo, o único dia livre de que dispunham os trabalhadores, no campo ou na cidade. Em vão as autoridades eclesiásticas clamaram contra o desrespeito ao dia santo, pedindo a supressão do futebol e a punição daqueles que blasfemavam contra o Senhor. Pelo número de condenações que conhecemos a turma da bola não estava muito preocupada com a possibilidade de vir a arder no Inferno. Em 1589, dois homens foram multados em Chester por jogarem futebol no cemitério da Igreja durante o sermão. Em 1688, dez foram processados em Richmond por baterem sua bolinha durante a missa. Em 1722, um furacão derrubou o teto da Igreja em Looe, Cornwall, mas o número de vítimas foi pequeno porque a maioria dos paroquianos estava longe dali jogando futebol…

Mais do que um divertimento, o futebol tradicional era uma forma de afirmar identidades locais, fortalecendo a solidariedade de uma comunidade ou de um grupo. Seu caráter violento deve ser entendido no contexto das outras diversões populares: brigas-de-galo, luta livre, disputas entre animais envolvendo ursos contra cachorros e outras modalidades do mesmo teor. O bulldog tinha esse nome porque era utilizado no bull-baiting, quando um touro (bull) com uma das patas presas ao chão enfrentava um ou mais bulldogs. Estes cães eram famosos por suas poderosas mandíbulas: normalmente atacavam os genitais ou uma perna do touro e só largavam depois de arrancar pedaço ou quando se jogava farinha no focinho. Essa ferocidade era tão admirada que o bulldog acabou virando símbolo nacional da Inglaterra.

Todas estas formas de recreação da plebe eram vistas pelos reformistas sociais como exemplos de crueldade, indisciplina e descontrole que barravam o desenvolvimento moral, social e material. Uma classe média cada vez mais influente, educada e abraçando o ideal civilizatório de um comportamento regrado, racional e produtivo vai lançar-se em campanhas contra os maus-tratos aos animais e, consequentemente, a diversas práticas populares. Também o futebol era condenado por incitar à vadiagem, perturbação da ordem e uso da violência. Os inimigos do futebol eram muitos e poderosos, mas o jogo, em suas diversas variações, era mais popular do que nunca, apesar e também graças às proibições: desrespeitá-las era uma maneira das classes populares afirmarem seus valores e práticas.

Logo, entretanto, o futebol tradicional iria enfrentar uma ameaça muito maior: as transformações provenientes do processo de urbanização e de industrialização. No campo, com os cercamentos e nas cidades com a crescente concentração populacional, cada vez havia menos espaço para praticar o jogo. Obrigados a trabalhar durante catorze e até dezesseis horas por dia, os operários tinham cada vez menos tempo e disposição para o futebol. O enorme desenvolvimento das indústrias e do comércio nas cidades fazia com que o futebol passasse de mera perturbação a um sério inimigo do progresso material. E vem a ser duramente reprimido com a ajuda da recém-formada força policial.

Em 1835, o Parlamento baixa uma lei proibindo o futebol de rua em toda a Inglaterra. Mas houve resistência popular a este processo. Em Derby, por exemplo, havia um jogo entre duas paróquias disputado na Terça-Feira Gorda e que se transformara em um grande festival popular iniciado com o pontapé inicial na praça do mercado. Chegava a reunir mil jogadores. Durante toda a década de 1830 formou-se uma oposição ao jogo, composta de industriais, comerciantes, lojistas e artesãos, bem como religiosos e até um movimento contrário à bebida alcóolica (os teetotallers). As autoridades e os homens de negócios viam o jogo como uma grave ameaça à ordem em um contexto de crescente influência dos sindicatos e de outros movimentos sociais. Finalmente, conseguem que o prefeito declare o futebol ilegal em Derby em 1845. Durante pelo menos uma década os trabalhadores resistiram a essa proibição, o que levou a revoltas contidas com o auxílio de tropas militares chamadas especialmente para isso.

Até dentro da própria classe trabalhadora havia aqueles que consideravam o jogo como algo promovido pela elite local como uma forma de paternalismo que encorajava os trabalhadores a se comportarem de uma forma pouco respeitável. Sindicalistas de Derby, a mesma cidade onde ocorria o importante festival acima mencionado, afirmaram que o jogo local era “uma imprudência bárbara e uma suprema estupidez”.  A parcela melhor remunerada da classe trabalhadora, sobretudo, começa a dedicar-se a outros lazeres como a leitura, a dança, a ida aos parques e a jardinagem. Isso mostra que estava havendo uma mudança gradativa na sociedade, no sentido de uma “pacificação dos costumes”, embora as diferenças de comportamento e valores entre as classes ainda fossem muito significativas.

Ironicamente, a sobrevivência do futebol será garantida por alguns membros das classes dominantes que não só defendiam o jogo mas até mesmo o praticavam com uma frequência ao menos semanal. Mas de uma forma regrada e domesticada.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marcos Alvito

Professor universitário alforriado. Escritor aprendiz. Observador de pássaros principiante. Apaixonado por literatura e futebol. Tenho livros sobre Grécia antiga, favela, cidadania, samba e até sobre futebol: A Rainha de chuteiras: um ano de futebol na Inglaterra. O meu café é sem açúcar, por favor.

Como citar

ALVITO, Marcos. Vagabundo jogador de futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 32, n. 6, 2012.
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