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Velhos projetos, novos projetos: os estádios construídos para as competições internacionais no Brasil

João Manuel Casquinha Malaia Santos 30 de setembro de 2011

Em tempos de construção de estádios para a Copa do Mundo de 2014, um dos assuntos que mais chamam à atenção de todos é o custo das obras. Quando a Fifa anunciou as cidades-sede brasileiras, em maio de 2009, a soma dos custos dos projetos não chegava a R$3,62 bilhões.

Passado mais de um ano, os custos dos estádios foram elevados a quase de R$7 bilhões, as obras estão atrasadas, os operários estão fazendo greves para aumentar seus salários pífios e o pior é sabermos que nós é que estamos pagando a conta.

O site UOL montou uma reportagem sobre os estádios brasileiros e que mostra não só o aumento abusivo nos orçamentos dos estádios, mas também a massiva participação do governo no financiamento das novas arenas, seja por meio da injeção de capital diretamente efetuada pelos governos estaduais, seja por financiamento do BNDES.

Vejamos a situação de cada estádio:
Os custos dos estádios para a Copa 2014

Fonte: UOL.

Os números são estarrecedores. Em dois anos, as obras tiveram os orçamentos majorados em quase 100%. Ao analisarmos os números percebemos alguns dados interessantes. Por exemplo, o estádio Beira-Rio, de propriedade do Internacional, de Porto Alegre, é o único a ser financiando 100% pela iniciativa privada e seus gastos subiram “apenas” 64%, enquanto que alguns dos estádios financiados pelo governo (seja por financiamento direto ou via BNDES) tiveram seus orçamentos majorados em 72% (Verdão), 85% (Fonte Nova), 100% (Itaquerão) ou 120% (Maracanã). O aumento dos gastos com esses quatro estádio foi de quase 1 bilhão e meio de reais, dinheiro suficiente para reformar o Beira Rio seis vezes. Impressionante é também saber que o poder público investirá cerca de R$640 milhões para a construção de um novo estádio na cidade de São Paulo para ser de propriedade de um clube, quando outros dois clubes da cidade têm estádios próprios e um deles, o Palestra Itália, está sendo reconstruído dentro dos padrões FIFA com investimento 100% privado, ao custo de R$250 milhões e estará pronto em abril de 2013, antes do Itaquerão.

A história do envolvimento do Brasil com as competições internacionais e com a construção de arenas para abrigar tais competições não é nova. Remonta ao Sul-Americano de futebol de 1919, sediado pelo Fluminense, no Rio de Janeiro, assim como os Jogos Sul-Americanos de 1922, momento em que o estádio construído para 1919 foi totalmente reformado.

Refletir sobre esses momentos da história dos esportes no país pode nos levar a pensar mais sobre tais projetos. Em artigo ainda inédito e que será publicado na edição de novembro de 2011 pela Revista de Economia Política e História Econômica, analiso como o Fluminense, através de seu presidente Arnaldo Guinle conseguiu a viabilização do capital necessário para a construção e posterior reforma daquele que se tornou o maior e mais moderno estádio de futebol da América Latina do período.

A construção daquele que ficou conhecido como “Estádio das Laranjeiras”, em 1919, foi feito através de um empréstimo obtido pelo clube ao Banco do Brasil de 2.000:000$000 (dois mil contos de réis). A empresa responsável pela obra foi a Companhia Locativa e Constructora, que em relatório aos acionistas publicados no Diário Oficial da União, demonstrava a importância das obras do Fluminense para a empresa. Caracterizando o período como “anormal” para a indústria da construção civil e que requeria ações prudentes em circuito restrito, os relatores colocaram a honra de construir o “stand” de tiro, as piscinas e o “grandioso Stadium”, local das competições de futebol. De acordo com o relatório, esses foram os trabalhos “que, pela urgencia que a construcção requeria, teriam absorvido toda a capacidade da nossa organização” (BRASIL. “Companhia Locativa e Constructora”. Diário Official dos Estados Unidos do Brasil, 29 de março de 1919, p. 4.188.).

Estádio do Fluminense em 1919. Fonte: Revista Careta, 1919.

Três anos depois, o clube conseguiu receber a maioria das competições esportivas dos Jogos de 1922, competição organizada como parte dos festejos do Centenário da Independência do Brasil. Porém, dessa vez o clube não conseguiria novo empréstimo hipotecário. O Fluminense acumulava dívidas de 2.500:000$000 e precisaria de uma autorização especial do governo, através da assinatura de um decreto-lei, para conseguir operacionalizar uma nova captação de recursos para as reformas no clube, inclusive a ampliação do estádio. Arnaldo Guinle conseguiu aprovação junto ao governo, em decreto assinado pelo presidente Epitácio Pessoa, para contrair empréstimos através de obrigações ao portador, as debêntures, no valor de 100$000 cada uma. Poderia contrair no máximo 5.000:000$000 de dívida, ou seja, poderia emitir 50.000 títulos ao portador, pagando juros de 7% ao ano, no prazo de 30 anos (BRASIL. Decreto n. 3.955. Diário Official dos Estados Unidos do Brasil, 31 de dezembro de 1919, p. 19.350).

Estádio do Fluminense em 1922. Fonte: Revista Careta, 1922.

E assim foi feito. O clube conseguiu mudar a sua razão social para poder emitir as debêntures e até 1950 continuou publicando notas no Diário Oficial semestralmente para informar aos investidores sobre o pagamento das parcelas. Ao que parece, os gestores do clube conseguiram pagar, ou pelo menos informaram que pagaram todos os seus débitos. É claro que o clube se beneficiou com esse processo. Elevou largamente seu número de sócios, melhorou sobremaneira as instalações de seu clube, seus dirigentes ganharam prestígio e projeção nacional e internacional e o clube se consolidou como uma referência nos esportes para o Brasil e para o mundo. O governo também ajudou nesse processo. Epitácio Pessoa, presidente que assinou o decreto n. 3.955 que autorizou o clube a realizar tal operação financeira era sócio honorário do Fluminense. Não quero aqui defender o Fluminense, nem os processos pelos quais o clube e seus dirigentes conseguiram os privilégios para se consolidar como um dos maiores e mais ricos clubes do Brasil. Quero é levar algumas situações que nos façam refletir um pouco mais sobre a lamentável situação em que nos encontramos às vésperas de sediar a Copa do Mundo de futebol, em 2014.

O governo brasileiro, sem dúvida, beneficiou o Fluminense em 1919 e 1922. Mas não construiu um estádio para o clube. Naquele tempo, não havia outro estádio no país em condições de receber as competições internacionais e o Estádio das Laranjeiras foi por muito tempo o maior palco do futebol brasileiro. A obra impulsionou, inclusive, iniciativas como a da Vasco da Gama em construir seu próprio estádio, ainda maior e mais moderno que o do Fluminense, inaugurado em 1927. Ademais, o estádio do Tricolor atendia a uma demanda de crescimento do mercado de espectadores nas praças esportivas e frequentemente encontrava suas dependências absolutamente lotadas. E apenas para se ter uma ideia dos valores, o investimento do Fluminense em seu estádio, em 1922, representou apenas 2,5% dos gastos do governo com as celebrações do centenário, que chegaram a 200.000:000$000, principalmente com o financiamento da Exposição Internacional no Rio de Janeiro.

E por mais que os questionamentos sobre os gigantescos investimentos nos estádios sejam constantemente feitos, nunca é demais repeti-los. Vou citar apenas um exemplo: para que está sendo feito um investimento de R$500 milhões na construção de um estádio para 48 mil pessoas em uma cidade (Cuiabá) de 550 mil habitantes e que não tem nenhum time de futebol nem na Série A, nem na série B do Campeonato Brasileiro? Para se ter uma ideia, o diretor executivo da Federação Matogrossense de Futebol, Laércio de Arruda, considerou positivos os números de público e renda da primeira rodada do campeonato estadual de 2011. Pasmem: o jogo que mais levou torcedores ao estádio foi União de Rondonópolis x CRAC, que levou singelas 2.694 almas ao Estádio Engenheiro Luthero Lopes, que geraram R$24.209,00 de renda.

O jogo da rodada na capital foi Cuiabá x Luverdense, no Estádio Presidente Eurico Gaspar Dutra, o “Dutrinha”, com capacidade para 7 mil pessoas. O Cuiabá, um dos favoritos e time mais popular da cidade, goleou o Luverdense por 4 a 0 diante de 563 testemunhas que geraram uma renda de R$3.280,00. Se esses números foram considerados “positivos” pelo diretor executivo, não quero nem saber o que ele considera negativo (dados: site da Federação Matogrossense de Futebol).

Um cálculo bastante simplista e grosseiro pode mostrar ainda melhor a gravidade do caso. A primeira rodada do campeonato, com “números positivos”, levou um total de 7.451 torcedores aos estádios de todo o estado. Ou seja, precisaríamos de mais de seis rodadas das “boas” para que o público de todos os jogos pudesse encher o novo estádio, o “Verdão”. Mais: com uma “boa” renda total de R$45.110,00 na primeira rodada, precisaríamos da renda de mais de 10.000 rodadas desse tipo para atingirmos os valores investidos no estádio. Pensando numa hipotética situação em que todo o dinheiro arrecadado com a venda de ingressos fosse destinado a cobrir o investimento, como o campeonato tem cerca de 13 rodadas e mais quartas-de-final, semi-final e final, seriam necessários mais de 500 campeonatos matogrossenses para se pagar o estádio. Só no ano de 2.514 o estádio estaria pago.

Poderíamos fazer cálculos desse tipo com os estádios de Manaus, Brasília e Natal e as conclusões seriam parecidas. O jornalista Diego Salgado apontou as rendas e médias de público dos principais clubes dessas cidades, que podem ser vistas neste endereço: .

E enquanto isso, o Fluminense, cerca de 90 anos depois de construir seu estádio, não pode mais usar seu campo para jogos oficiais. Parte da arquibancada foi destruída após a desapropriação do terreno feita pela prefeitura para a duplicação da Rua Pinheiro Machado e o estádio ficou pequeno, “inapropriado”. O campo serve hoje apenas para o treinamento das equipes de futebol.

Quem, em 1922, se arriscaria a afirmar que o maior e mais moderno estádio da América Latina que se construía, seria, menos de cem anos depois, impossibilitado de ser usado como estádio? Quem se arrisca a afirmar o que vai acontecer com a maioria dos estádios que estão sendo construídos para a Copa do Mundo de 2014?

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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João Malaia

Historiador, realizou tese de doutorado em História Econômica pela Universidade de São Paulo sobre a inserção de negros e portugueses na sociedade carioca por meio da análise do processo de profissionalização de jogadores no Vasco da Gama (1919-1935). Realizou pós doutorado em História Comparada na UFRJ pesquisando as principais competições internacionais esportivas já sediadas no Rio de Janeiro (1919 - 2016). Autor de livros como Torcida Brasileira, 1922: as celebrações esportivas do Centenário e Pesquisa Histórica e História do Esporte. Atualmente é professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e atua como pesquisador do Ludens-USP.

Como citar

SANTOS, João Manuel Casquinha Malaia. Velhos projetos, novos projetos: os estádios construídos para as competições internacionais no Brasil. Ludopédio, São Paulo, v. 27, n. 9, 2011.
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