Quando a montadora FIAT lançou o slogan “Vem pra rua! – A rua é a maior arquibancada do Brasil” (ver propaganda ao final do texto), certamente ela imaginava que seria mais uma propaganda para aproveitar o filão da Copa das Confederações e da Copa do Mundo através do apelo sentimental patriótico.

Por ora, a campanha publicitária vinha cumprindo seu objetivo. Entretanto, por uma conjunção de fatores, o jingle que bombardeou as telas de televisores, computadores e celulares se transformou na trilha sonora que explodiu a maior arquibancada do Brasil – as ruas!

Dentre os elementos propulsores desta vazão de pessoas pelo asfalto paulistano destaca-se o papel do Movimento Passe Livre (MPL). As manifestações populares ocorridas no mês de junho em São Paulo e que se espalharam pelas inúmeras cidades brasileiras foram um desdobramento do mais recente ciclo de atos organizados pelo MPL que protestou contra o aumento de R$ 0,20 centavos da tarifa de ônibus, trem e metrô na capital.

Porém, após ação truculenta da Polícia Militar durante o IV ato no dia 13 de junho, a bandeira da “catraca livre”, como é definida a militância do MPL, tornou-se apenas uma parte do rol de reivindicações da multidão que ocupou as principais vias da cidade.

A manifestação reuniu cerca de 30 mil pessoas, conforme a Polícia Militar. O protesto concentra-se na Avenida Paulista até o Parque Ibirapuera, mas há também manifestações na Avenida 23 de Maio e na Rodovia Castello Branco. Os atos são pacíficos. Foto: Marcelo Camargo – Agência Brasil.

O inchaço das manifestações foi fundamental para que em menos de uma semana o prefeito Fernando Haddad e o governador Geraldo Alckmin retrocedessem ao aumento e assim o MPL atingisse uma primeira vitória dentro de sua agenda.

Contudo, o protagonismo do MPL se diluiu diante da multidão que o seguia. Embora sem perder a legitimidade perante os diversos grupos e indivíduos, as demandas esbravejadas pelos manifestantes se revelaram diversas, contraditórias e muitas vezes vagas. Um aspecto importante deste fenômeno histórico é o próprio momento em que ele está inserido. A era informacional, como diz o professor e editor da revista Fórum Renato Rovai, permite o estabelecimento de uma relação com menos mediações entre indivíduos e grupos, o que ficou evidente através das redes sociais.

Manifestação e o seu cartaz: “Contra tudo”. Foto: Marcelo Camargo – Agência Brasil.

Esta reflexão é importante para compreender os rumos tomados pelas mobilizações, conforme mapeamento das conversas nas redes durante a última semana. A pauta da tarifa tornou-se periférica nas enxutas, dinâmicas e heterogêneas praças virtuais. E viu-se o Gigante Acordar – outro bordão reproduzido pelos neomanifestantes. Quem viu de perto os rios humanos que inundaram as vias da cidade pôde notar um sentimento de insatisfação e intolerância com o poder público, através de cartazes e palavras de ordem que acusavam políticos, leis, tributos e entidades.

No entanto, este “gigante” que despertou sedento de vingança é um ser deformado ideologicamente e ignorante político que foi embriagado pela estabilização econômica do país, seduzido pela ficção de liberdade fabricada pela sociedade de consumo da era neoliberal, e cujos desejos diversos são alimentados por uma agenda de reivindicações produzida pela mídia tradicional.

Disso, o resultado preliminar é a transformação do sentido do movimento: num primeiro momento projetado pela demanda do MPL; em seguida tornou-se difuso e conflituoso com a repressão policial e o inchaço das manifestações; e, a partir de agora, fracionado – indicando uma polarização – e muitas vezes preconceituoso e intolerante.

Neste cenário uma das grandes aporias é a constituição de um senso comum, ou ao menos um elemento aglutinador das massas, capaz de canalizar a energia da multidão numa reivindicação comum e concreta.

Dentre as diversas articulações que intuíam objetivar este propósito existe a Frente Nacional de Torcedores (FNT) que endossou as passeatas desde a partida de abertura da Copa das Confederações. No topo da agenda da FNT está o slogan “Fora Marin – Regulamentação Desportiva Já”, no entanto, a temática dos gastos com os estádios da Copa preenchem as fissuras dos blocos manifestantes e funcionam como textura aderente para os demais se juntarem.

Tal como a campanha publicitária se beneficiou do contexto futebolístico e festivo que precede as Copas, a fúria dos manifestantes também se alimentou da indignação com os gastos exorbitantes do governo brasileiro com a preparação para os mega eventos.

Neste sentido, a analogia rua e arquibancada explorada pela propaganda se torna profícua por diversas razões. Se quem participou das manifestações é uma pessoa que frequenta os estádios brasileiros deve ter percebido uma série de semelhanças entre o que viu nas ruas e o que se vê nos estádios.

Manifestantes agitam bandeiras do Brasil. Foto: Marcelo Camargo – Agência Brasil.
Torcida comemora gol do Brasil contra o Japão na abertura da Copa das Confederações no Estádio Nacional Mané Garrincha. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom – Agência Brasil.

 

Ir a um jogo de futebol, especialmente partidas decisivas, é ter uma experiência corporal. Nas ruas, a tensão e ansiedade estavam colocadas. Quando os milhares de brasileiros transformaram a rua na sua arquibancada, a Polícia Militar agiu com a truculência esperada, tal qual acontece nos estádios e em seu entorno.

No entanto, essa simetria não se repete outros momentos da história recente brasileira – e este é o ponto de inflexão importante deste ensaio. As arquibancadas e as ruas não são mais as mesmas. Não se trata de uma visão romântica de um saudosismo de esquerda; como mencionado pouco acima, esta geração de jovens – que compõe boa parte dos manifestantes – nasceu e cresceu numa realidade política e ideológica sem os referenciais tão claros quanto os das gerações de 1960, 1970 e 1980 – e até mesmo os caras pintadas de 1992.

As manifestações e passeatas que despontavam nas décadas de 1960 e 1970 possuíam um viés ideológico mais evidente e uma estrutura mais estabelecida. Partidos de esquerda e organizações estudantis de um lado e passeatas como a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” de outro se inseriam nas polarizações subversão x repressão; liberdade x censura; democracia x regime militar, interrelacionadas sob o clima da Guerra Fria.

Contudo, tanto a reprimida oposição ou o ativismo conservador estavam alicerçados num sentido coletivo, em organizações civis com lideranças e pautas estabelecidas. Este fenômeno é tão profundo que inundou o universo do futebol: a partir da segunda metade da década de 1960 surgem as torcidas jovens – coletivos organizados de torcedores articulados através de lideranças politizadas e catalisadas pelo zeitgeist da juventude da época.

Em Brasília, manifestantes protestam contra os gastos públicos na Copa das Confederações, a PEC 37 e pedem mais verbas em educação e saúde. Foto: José Cruz – Agência Brasil.

As torcidas organizadas desempenharam papel importante tanto na esfera esportiva quanto política: seja ao garantir um público mínimo nas partidas quanto ao se posicionar a respeito da política nacional – como o episódio da abertura da faixa “Anistia ampla, geral e irrestrita” pela torcida Gaviões da Fiel, em partida no Morumbi em 1979.

As novas ruas e arquibancadas, no entanto, revelam ao menos duas características distintas do seu passado recente: o desprestígio dos coletivos e a despolitização. Nas ruas, o desinteresse e a descrença nas instituições, nos partidos e nas figuras políticas atraiu uma multidão revoltosa, porém desprovida de repertório político e de experiências democráticas significativas – reféns da participação política limitada às eleições, escassos plebiscitos e petições online; embasados pelas pesquisas e análises da grande imprensa, pelas propagandas do horário eleitoral, que mais se parecem anúncios de cereal matinal, e pela circulação de memes e links de endereços virtuais de procedência duvidosa ou que apenas reiteram os paradigmas do Fantástico do último domingo (23/06/13).

Nas arquibancadas, os sintomas são claros e precedem estas ondas de manifestações. Existem diversos autores e trabalhos que lidam com a transformação dos espaços e as formas de torcer que não afetam apenas os estádios brasileiros. Estabelecendo uma relação diacrônica entre o esvaziamento dos estádios e o aumento da violência entre torcidas, a análise feita pelos diversos órgãos gestores do futebol – endossados pelo poder público e por partes da imprensa esportiva – é a necessidade de transformar o futebol em um espetáculo distinto.

Decorrem duas consequências evidentes nesta nova orientação política: a condenação às torcidas organizadas e a desmobilização política das arquibancadas. É notória a simetria da multidão das ruas que esbravejam “Sem Partido! Sem Partido!”, que hostilizam e agridem os manifestantes de movimentos sociais e partidos de esquerda, e a condenação e sufocamento das organizadas nos estádios – e nos dois espaços, abastecidos pelas avaliações dos grandes veículos de comunicação.

Em São Paulo, durante o protesto teve confrontos entre manifestantes e militantes de partidos políticos. Foto: Marcelo Camargo – Agência Brasil.

Ao mesmo tempo, a contradição do discurso é vívida. Tanto a criminalização das organizadas quanto a intolerância com os partidos nas manifestações se sustentam, sobretudo pela bandeira “Sem violência” – propulsionada pela repressão policial e cultivada pelos meios de comunicação e lideranças do governo.

A despolitização e desprestígio com os coletivos forma uma massa amorfa, integrada num grande espetáculo de cores e cantos, senão ingênuos – “Fora inspeção veicular” -, vagos e acríticos, aplaudidos e insuflados pela grande imprensa numa relação simbiótica – alguns veículos até cedem espaço e solicitam aos manifestantes (1 e 2) o envio de fotos e vídeos das passeatas.

Nas ruas, os gritos e faixas, “Contra corrupção”, “Fora Governo”, “Onde está o meu dinheiro dos impostos?”, “O povo acordou” e o emblemático “Sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor” emudecem os focos de reivindicações mais delimitadas e objetivas do ativismo politizado e criam uma atmosfera patriótica espetacularizada, e com certos limites, orquestrada pelas poderosas editorias.

Nas arquibancadas, a uniformização e estereotipação das formas-representações do torcer se afinam ao plano de marketing dos clubes. O caso mais emblemático é o do “Bando de Loucos” do Corinthians. Há um esforço de transformar a heterogênea massa de torcedores num rosto só que canta “eu nunca vou te abandonar”, nós somos “o time do povo”. Esta cooptação das mentes e corações dos corinthianos suprime qualquer espaço de crítica sobre a própria instituição, o clube: não se fala da verba pública gasta com o novo estádio; não há voz capaz de sobrepor a maioria entorpecida.

Ademais, a despolitização não “apenas” produz um discurso vago e rarefeito. Há uma vitimização de figuras centrais nos dois universos: nas ruas, a presidenta Dilma Rousseff acumula o fardo de décadas de sistema político anacrônico e de seus pares sem credibilidade; nas arquibancadas, reforça-se o ódio ao maior bode expiatório do futebol, o árbitro.

Tanto os neomanifestantes ativistas de Facebook quanto a plateia das novas arenas advêm, grosso modo, de um estado de imobilismo que afeta toda a sociedade. Nas últimas décadas, a violência das ruas e dos estádios afugentou as pessoas; e a falta de infraestrutura e mobilidade desestimulou a ocupação dos escassos e precários espaços públicos e estádios degradados.

Da estagnação partem para um rumo que todos analistas quebram a cabeça para mapear. Não há grandes certezas, apenas indícios: existe uma polarização político-ideológica aprontada que vai catalisar partidos, instituições e figuras públicas influentes e formadoras de opinião.

Este quadro acumulou energia suficiente para o cada vez mais entusiasmado deputado federal Romário (PSB-RJ) propor uma CPI da CBF – muito embora, para se concretizar, atravessará obstáculos mais globais.

Manifestações durante o jogo Espanha x Taiti, pela Copa das Confederações, no Estádio do Maracanã. Foto: Tânia Rego – Agência Brasil.

Para o futebol, a propaganda “Vem pra rua!” que o explorou também diagnosticou um espírito do tempo – perspicácia típica das mentes da publicidade. Seja através da FNT ou de outros grupos, há um conjunto de itens importantes referentes ao universo do futebol na agenda de reivindicações que precisam ser contemplados.

Discutir e refinar essa agenda é preciso. Não há como o MPL aglutinar os neomanifestantes, partidos e movimentos de outros segmentos na sua legítima campanha da catraca livre. As ruas estão lotadas, confusas e impacientes. A cada dia novos atores se manifestam: enfim a presidenta passou a se pronunciar (ver o pronunciamento ao final do texto); os partidos de esquerda começam a se reaproximar; os grupos mais conservadores se apoiam num símbolo, que embora anônimo, carrega seu significado autoritário e totalitário bem claro.

Enquanto se diz em qualquer jornal, site ou praça virtual que o Gigante Acordou, imagina-se quando a periferia ocupar o centro. Aqueles à margem dos grandes atos e manifestações que assistiram pelas formas mais diversas os acontecimentos dos últimos dias irão se pronunciar e agir do seu jeito próprio, com suas demandas próprias, com seu rancor com a cidade que os deixa na beirada. Talvez seja essa a força capaz de provocar um verdadeiro abalo no sistema político? Sabe-se pouco, prevê-se muito com pouca certeza.

E quando os despejados pelas obras dos megaeventos caminharem seguidos pelos demais habitantes das regiões esquecidas de nossas capitais rumo às novas arenas, aos parlamentos, às sedes de governo? Há um tanto de entusiasmo ao vislumbrar esse roteiro – ainda mais com o colorido dos diversos movimentos sociais e militantes de esquerda.

Tememos a cara da direita que ocupa as ruas. De outro lado, ao pequeno sinal de ataque à Dilma, diversos grupos de periferia sinalizaram uma marcha em sua defesa.

Qual o tamanho desta força?

Não sabemos.

Só há uma coisa a torcer: Vem pra rua!

 

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Marco Lourenço

Professor, Mestre em História (USP), Divulgador Científico (Ludopédio) e Produtor de Conteúdo (@gema.io). Desde 2011, um dos editores e criadores de conteúdo do Ludopédio. Atualmente, trabalha na comunicação dos canais digitais, ativando campanhas da Editora Ludopédio e do Ludopédio EDUCA, e produzindo conteúdos para as diferentes plataformas do Ludo.

Sérgio Settani Giglio

Professor da Faculdade de Educação Física da UNICAMP. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Esporte e Humanidades (GEPEH). Integrante do Núcleo Interdisicplinar de Pesquisas sobre futebol e modalidades lúdicas (LUDENS/USP). É um dos editores do Ludopédio.

Como citar

LOURENçO, Marco; GIGLIO, Sérgio Settani. Vem pra rua! Vem pra arquibancada!. Ludopédio, São Paulo, v. 48, n. 9, 2013.
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