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Viagem ao reino do terror

José Paulo Florenzano 4 de fevereiro de 2021

As excursões de equipes brasileiras ao Haiti tiveram início, ao que tudo indica, em meados dos anos sessenta. Em maio de 1966, o América do Rio de Janeiro fez uma partida contra o selecionado local.[1] Três anos depois, em julho de 1969, foi a vez da Portuguesa de Desportos aterrissar na ilha do Caribe, no regresso de uma viagem aos Estados Unidos.[2] De acordo com o jornalista Jorge Moreira Fernandes, enviado especial de A Gazeta Esportiva, mais do que simples jogos de futebol, os amistosos podiam e deviam ser encarados como um “atestado de amizade entre os dois países”.[3]

Emblema dos “Tontons-macoutes”. Foto: Wikipedia.

O “documento” que atestava o elo ente Brasil e Haiti, no entanto, parecia conter uma cláusula de silêncio a respeito das mazelas vividas por uma população pobre, iletrada, submetida à ditadura de François Duvalier (1957-1971). Cognominado Papa Doc, o médico sanitarista que ascendera ao poder central através de eleições livres, logo se convertera em um político autoritário, empenhado em reprimir quaisquer sinais de contestação, recorrendo, para tanto, à organização paramilitar denominada “tontons-macoutes”, cujo significado, na língua créole remetia à personagem folclórica do “bicho papão”.[4]  Os integrantes do esquadrão da morte tinham permissão para prender, torturar e eliminar os opositores do regime, exibindo-os em seguida com as gargantas cortadas, os corpos amarrados em cadeiras ou pendurados em locais públicos.[5]

As elites locais, no entanto, não perdiam o sono por causa dos esquadrões da morte, ao contrário, sentiam-se satisfeitas com o reino de terror instaurado no país. Uma “senhora haitiana”, descendente de italianos, assegurava ao jornalista brasileiro que o povo ali era feliz, “apesar da miséria”. E acrescentava à guisa de explicação: “Ele dança todas as noites e aqui quase não há crimes. Nossos negros não são como aqueles horríveis negros americanos”.[6] O movimento Black Power se lhe afigurava uma ameaça distante, sem chance de incendiar o imaginário social da ilha. O correspondente de A Gazeta Esportiva corroborava sem questionamento o quadro idílico esboçado pela “senhora haitiana”:

É um povo simpático, laborioso e sobretudo valente no seu trabalho, já que há fases do ano em que as chuvas torrenciais provocam inundações, dizimam colheitas, mas há sempre um renascimento da luta e uma intensidade de amor ao solo com todos retornando às suas atividades com maior dedicação, como que desafiando as intempéries e não se deixando abater por elas.[7]

Se, vista da base da pirâmide social, a natureza mostrava-se madrasta, contemplada do alto de uma colina, onde se encontrava localizado o hotel de luxo da delegação da Portuguesa, ela adquiria uma feição bem diversa, nada ameaçadora, desvelando-se como “uma paisagem das mais belas”, que o hóspede estrangeiro podia apreciar enquanto se desenrolava o jantar “à luz de vela”, realizado à beira da piscina.[8] Nos corredores do Castell-Haiti turistas americanos indagavam ao jornalista brasileiro sobre Pelé, uma pergunta insistente que “também era feita pelos empregados” do referido hotel. A mesma curiosidade se verificava por ocasião dos preparativos para os jogos amistosos. Um simples treino da Portuguesa atraía um público estimado em seis mil pessoas, deixando os próprios jogadores da Lusa “surpresos com a manifestação”. E mais uma vez o repórter registrava a pergunta obsessiva, desta feita formulada pelos garotos que acompanhavam o treino do rubro-verde: “Onde está Pelé?”[9]

Enquanto aguardava a visita do principal astro do futebol mundial, o Haiti se preparava para as Eliminatórias da Copa do México. O selecionado nacional já havia eliminado a Guatemala, Trinidad Tobago e os Estados Unidos e agora devia medir forças com El Salvador por uma vaga à próxima fase da competição. A série de amistosos com equipes brasileiras visava precisamente a preparação para esta partida decisiva, a qual, por sua vez, revestia-se de uma significação política inequívoca. Segundo informava o correspondente de A Gazeta Esportiva, o governo não media esforços para que o país fosse “bem representado no cenário internacional do futebol”.

A preparação da Seleção do Haiti implicava um “plano intensivo de trabalho” que já se estendia por cerca de oito meses. Durante o período estabelecido para a consecução do plano, os atletas acabaram desvinculados dos clubes em que atuavam; dos empregos em que trabalhavam; das famílias nas quais viviam. Desde o momento em que foram “convocados”, passaram a viver “apenas para a seleção”, residindo em um hotel “em regime de concentração” cuja rotina estabelecia treinos de manhã e à tarde, realizados de segunda à sexta.[10] Em troca, recebiam entre duzentos e cinquenta e trezentos dólares por mês. Dessa maneira, “não tinham preocupações financeiras”.

François Duvalier, em 1968. Foto: Wikipedia.

A Federação Haitiana de Futebol, a cargo do coronel Claude Raymond, cuidava da preparação do selecionado nacional em um país que contava, então, com oito clubes na primeira divisão. A ditadura de François Duvalier acreditava poder extrair dividendos políticos através da classificação à Copa do Mundo e se empenhava a fundo para obtê-la. De um modo geral, tratava-se de converter a cultura popular em um instrumento de “controle das massas” e de “legitimação do poder”.[11]  A presença do Rei do Futebol, não resta dúvida, encaixava-se nessa estratégia de poder, razão pela qual a ditadura haitiana buscava de todas as formas trazê-lo ao país. Diversas tentativas haviam sido feitas nesse sentido.

Em meados de 1968, para celebrar a data nacional da independência, as autoridades contavam poder oferecer aos haitianos a “excepcional atração” representada pelo Santos de Pelé.[12] Mas a agenda do time-mito, sempre repleta de compromissos e sujeita à toda sorte de imprevistos, frustrara os planos governamentais. Pouco depois, em 1970, quando todos os detalhes pareciam acertados e definidos, “problemas de última hora” determinaram mais uma vez o adiamento da ansiada visita.[13] Finalmente, em fevereiro de 1971, durante o périplo do alvinegro pela América do Sul e Caribe, o encontro foi agendado.

Série de selos emitida pelo governo haitiano em 14 de junho de 1971. Foto: Reprodução.

A expectativa era enorme. No trajeto do aeroporto até o hotel a acolhida popular impressionara o correspondente do jornal brasileiro, habituado a registrar as excursões internacionais do Santos: “Parece que todo o povo de Porto Príncipe saiu às ruas para receber a delegação alvinegra”.[14] No entanto, o ritmo intenso das viagens e a sequência sem intervalo dos jogos vinham provocando baixas no elenco. Obrigado por contrato a atuar em todos os amistosos, Pelé sentiu uma distensão muscular na Colômbia. Na sequência da excursão, em El Salvador, deixou o gramado no segundo tempo. E, agora, no Haiti, pairava a dúvida se o atleta reunia ou não condições de entrar em campo.

Porém, fosse pela obrigação contratual, fosse pela coação governamental, ou, talvez, para não decepcionar os cerca de trinta mil torcedores que afluíram ao estádio Silvio Cator para vê-lo depois de uma infindável espera, Pelé veio a campo para honrar um compromisso histórico. As reminiscências do correspondente de A Tribuna, Marcos Fonseca, evocam-nos os interesses que cercaram a realização do encontro político-esportivo:

Uma ensurdecedora e interminável ovação marcou a chegada de Papa Doc ao campo, precedida pelo barulho da longa fila de batedores e das limusines pretas. De uma delas, um homem pequeno de cabelos brancos saiu acenando… Imediatamente, porém, ele foi cercado pelos indefectíveis “tontons-macoutes”, de ternos e óculos escuros.[15]

A foto estampada pelo jornal de Santos destacava o aperto de mão, no centro do gramado, entre o rei coroado do futebol mundial e o “rei não coroado do barbarismo latino-americano”, conforme o historiador C.L.R. James se referia ao ditador haitiano.[16] Depois de cumprimentar um a um os jogadores do alvinegro, François Duvalier foi se instalar nas tribunas de honra, “acompanhado de toda a família” e protegido por um vasto esquema de segurança. Segundo a observação irônica do enviado especial de A Tribuna, “o número de policiais” ao redor do ditador era quase igual “ao de espectadores” nas arquibancadas do estádio.[17]      

Imagem supostamente da partida entre Santos 2 x 0 Seleção do Haiti, disputada em Porto Príncipe no ano de 1971. Foto: Reprodução.

Pelé, sabe-se lá em que condições físicas, manteve-se na partida até os quinze minutos do segundo tempo, quando, então, foi substituído, “recebendo muitos aplausos da assistência”. Poucos meses depois da vitória do Santos sobre a Seleção do Haiti pelo placar de 2 a 0, François Duvalier veio a falecer aos 64 anos de um ataque do coração, transferindo ao filho Jean-Claude Duvalier o reino de terror implantado no país. Baby Doc, à época um jovem de 19 anos, prolongaria com o respaldo incondicional dos esquadrões da morte a agonia do povo haitiano (1971-1986).[18]

A significação imaginária da viagem do Santos, todavia, não se resume à estratégia política da ditadura local. Com efeito, se, hoje, o Haiti se define como a nação mais pobre do Hemisfério Ocidental, em contrapartida, por sua origem histórica e sua herança cultural, ela se mantém como uma referência chave para a luta de autonomia das comunidades afrodescendentes.[19] Fruto da única rebelião de escravos bem-sucedida no Novo Mundo, iniciada em 1791 na esteira da Revolução Francesa e concluída em 1804, o Haiti se transformara no pesadelo dos regimes coloniais e escravocratas implantados nas Américas. “Os negros do Brasil”, salienta o historiador João José Reis a respeito da revolta dos Malês em Salvador, “sabiam do Haiti e o consideravam um símbolo da resistência negra no Extremo Ocidente”.[20]  A situação não era diferente no Rio de Janeiro onde o fantasma do “haitianismo”, encarnado muitas vezes pela prática da capoeira escrava, assombrava o sono das elites brancas.[21]

Contemplada, assim, de uma perspectiva histórica mais ampla, a presença do time da diáspora na república negra traduzia a existência de um elo profundo entre as lutas de libertação dos grupos oprimidos e as narrativas de emancipação do futebol-arte.


Notas

[1] Cf. América (Rio) venceu no Haiti: 4 – 0”, A Tribuna, 28 de maio de 1966.

[2] Cf. “Portuguesa de Desportos empata no Haiti – 0 x 0”, A Gazeta Esportiva, 28 de julho de 1969.

[3] Cf. “Portuguesa desfilou pelas ruas do Haiti”, 29 de julho de 1969 e “Lusa volta a brilhar”, 30 de julho de 1969, ambas as matérias publicadas em A Gazeta Esportiva.

[4] Grondin, Marcelo. Haiti: cultura, poder e desenvolvimento. São Paulo, Brasiliense, 1985

[5] Cf. “Bloodshed and Violence Way of Life for 14 Years”, by Albin Krebs, The New York Times, 23 de abril de 1971.

[6] Cf. “Viagem ao país do medo”, revista Realidade, nº 15, junho de 1967.

[7] Cf. Cf. “Portuguesa desfilou pelas ruas do Haiti”, A Gazeta Esportiva, 29 de julho de 1969.

[8] Cf. “Portuguesa desfilou pelas ruas do Haiti”, A Gazeta Esportiva, 29 de julho de 1969.

[9] Cf. “Mais de seis mil viram aquele treino”, A Gazeta Esportiva, 29 de julho de 1969.

[10]  Cf. “Portuguesa foi teste do Haiti para México”, A Gazeta Esportiva, 30 de julho de 1969.

[11] Cf.  Grondin, Marcelo, op. cit., p. 43.

[12] Cf. “Convite do Haiti”, A Tribuna, 25 de junho de 1968.

[13] Cf. “Santos cancela exibição no Haiti; fica em Caracas”, A Tribuna, 11 de setembro de 1970.

[14] Cf. “Santos vence no Haiti e volta amanhã”, A Tribuna, 19 de fevereiro de 1971.

[15] Cf. “Com o Santos, na terra de Baby Doc”, A Tribuna, 20 de dezembro de 1973.

[16] James, C. L.R. Os Jacobinos Negros: Toussaint L`Ouverture e a revolução de São Domingos. São Paulo, Boitempo, 2000.

[17] Cf. “No Haiti uma acolhida de reis aos santistas”, A Tribuna, 21 de fevereiro de 1971.

[18] Cf. Duvalier, 64, Dies in Haiti; Son, 19, is New President”, by Homer Bigart; The New York Times, 23 de abril de 1971.

[19] Cf. Gates Jr., Henry Louis. Os negros na América Latina. São Paulo, Companhia das Letras, 2014, p. 209.

[20] Cf. Reis, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês em 1835. São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p. 84.

[21] Cf. Soares, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). 2º ed. Campinas, SP, Editora Unicamp, 2002, p. 364.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. Viagem ao reino do terror. Ludopédio, São Paulo, v. 140, n. 8, 2021.
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