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A vida do craque

Marcelino Rodrigues da Silva 11 de maio de 2015

Em tempos de redes sociais e auto-exposição midiática, a vida particular das celebridades (venham elas da TV, da música popular, dos esportes ou da própria Internet) é, cada vez mais, um livro aberto, consumido vorazmente pelo público e cuidadosamente planejado pelos profissionais do marketing. Tivemos, nas últimas décadas, uma espécie de boom biográfico, que não inclui apenas os craques da bola, mas todo tipo de gente importante e famosa e até mesmo o homem comum, o Zé ninguém que antes passava despercebido pela história. Nessa onda, um sem número de personagens do mundo esportivo ganhou sua biografia, algumas delas chegando a ocupar o topo das listas dos mais vendidos, virando filmes e especiais de TV; outras com pequena tiragem, circulando modestamente em circuitos mais íntimos e localizados.

Uma das explicações para isso é que, através das histórias do outro, podemos viver uma vida vicária, uma outra vida mais bonita e bem sucedida, ou mesmo mais trágica e sofrida, mas sempre mais intensa e emocionante que a nossa, quase sempre monótona e sem graça. Entra aí, é claro, uma questão de dupla autoria. Por um lado, temos o biografado, autor de sua própria vida, sempre com uma boa mãozinha do implacável destino, que costuma levar as coisas por um caminho imprevisto e sem muito sentido. Por outro, temos a mão do biógrafo, que, se for bom mesmo, não se contentará apenas em apurar meticulosamente os fatos, selecionar os mais importantes e narrá-los de modo imparcial. Já dizia o pensador francês Michel Schneider: “toda biografia é um romance, e é por isso que devoro tantas”. Uma boa biografia, uma boa entrevista, um bom obituário sempre dependem de um feitiço narrativo, que transforma os fatos circunstanciais e aleatórios da vida em uma boa história, com começo, meio e fim (nem sempre nessa ordem), criando a ilusão de que tudo faz algum sentido.

Mas isso não é de todo uma novidade. No caso do futebol, pelo menos, a vida dos grandes craques sempre interessou aos aficionados pelo esporte e deu muito pano pra manga na mídia. Nos jornais e revistas do início do século XX, quando o futebol dava seus primeiros passos, já era comum a publicação de perfis biográficos de esportistas elegantes, como Marcos de Mendonça, Welfare e Belfort Duarte. Quando o futebol se popularizou, com um bom empurrão da imprensa, a exploração da biografia dos grandes jogadores negros que começavam a fazer do Brasil o país do futebol foi um dos principais filões para os jornalistas, que publicavam entrevistas, flagrantes de bastidores e pequenos relatos biográficos.

No início da década de 1930, por exemplo, a seção esportiva do jornal O Globo tinha verdadeira obsessão por nomes como Fausto, Jaguaré, Domingos da Guia e Leônidas da Silva. Em algumas oportunidades, as matérias chegavam mesmo a teorizar sobre o assunto. Como nessa entrevista com Leônidas, publicada em 17 de setembro de 1931, quando o craque ainda estava em início de carreira e não tinha se tornado o personagem folclórico que conhecemos hoje: “A vida do crack é sempre interessante para o público, ainda que não ofereça lances de sensação, ainda que se tenha desenvolvido normalmente, burguesamente, sem uma nota fulgurante e original. A vida de Leônidas não tem, é forçoso confessar, nenhum episódio empolgante, nenhuma raridade. Mas, basta para se tornar atraente, cativante, o simples fato de ser a vida de um crack que marcou o goal da vitória na partida com os paulistas.”

Leônidas da Silva. Caricatura: Baptistão Caricaturas

Em outra edição daquele mesmo ano, a de 17 de junho, uma pequena narrativa supostamente autobiográfica, do hoje ilustre desconhecido Jaguarão, dá uma verdadeira aula sobre o assunto. O texto começa assim: “Se um romancista conhecesse a minha vida, escreveria um romance de aventuras. E para pano de amostra – uma amostrazinha só – eu vou contar como dei com os ossos na cidade de São Sebastião e como acabei sendo o perigo negro de Bangu.” Depois de contar suas peripécias em busca de sucesso nos clubes do Rio, num tom rocambolesco, típico dos romances de folhetim, o jogador arremata: “E foi assim que eu, Cyrillo Campelo, o Jaguarão, negro com shoot de branco, tocador de gaita, me tornei o perigo escuro do Bangu. Contei um pedaço de minha vida. Avaliem o que eu não contei.”

É bom lembrar que a seção esportiva d’O Globo, naquela época, era comandada por ninguém menos que Mário Filho, e que junto com ele trabalhava um de seus irmãos mais novos, um garoto de 18 ou 19 anos chamado Nelson Rodrigues. Difícil imaginar que nas palavras de Jaguarão não haja um toquezinho dos irmãos, que ficariam famosos por tirar do futebol tudo o que ele tinha de trágico, cômico e pitoresco, tornando-se os principais narradores da grande saga do ex-país do futebol. A matéria sobre Jaguarão é uma aula porque mostra, em poucas linhas, todo o arsenal de artifícios do biógrafo: as técnicas narrativas do romance no manejo do tempo, do ponto de vista e da construção de personagens; a escolha de personagens humildes e identificados com o novo público do futebol, que já tinha virado um fenômeno das multidões; o herói malandro, aos moldes de Pedro Malasartes e Macunaíma, que já estava se tornando o protótipo do brasileiro.

Pelo menos em parte, portanto, é como ficção que a vida do craque mais interessa. Mesmo quando só conta a verdade, quando apura tim-tim por tim-tim o que realmente aconteceu, se não houver o feitiço a história não cola, não faz sucesso, não emociona os leitores. Refletindo sobre seu campo de trabalho, o historiador estadunidense Hayden White diz que, para reunir e dar sentido aos documentos e evidências sobre o passado, é necessário recorrer às estruturas narrativas e aos modos existentes de contar histórias, experimentados antes na literatura. Assim, toda narrativa histórica teria um pouco de ficção. O mesmo se pode dizer de jornalistas e biógrafos: são contadores de histórias e se valem tanto do trabalho de investigação quanto de sua imaginação e de um repertório de formas de narrar que a cultura lhes põe à disposição. As biografias dos jogadores de futebol, portanto, falam tanto pelos fatos que contam quanto pela maneira como os contam. E revelam para os leitores não só o mundo do biografado, mas também o do biógrafo.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marcelino Rodrigues da Silva

Professor de literatura na UFMG.

Como citar

SILVA, Marcelino Rodrigues da. A vida do craque. Ludopédio, São Paulo, v. 71, n. 3, 2015.
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