Nota Explicativa

Esta série é parte integrante do projeto “Futebol, Memória e Patrimônio”, desenvolvida entre os anos de 2011 e 2012, com o apoio da FAPESP. A pesquisa foi realizada em parceria pelo CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), e pelo Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), equipamento público vinculado ao Museu do Futebol/Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. Nesta seção, serão apresentadas as edições de 6 entrevistas concedidas por atletas brasileiros que estiveram presentes na Copa do Mundo de 1962, no Chile, a sétima primeira edição do torneio organizado pela FIFA. São eles: Mengálvio, Jair da Costa, Coutinho, Amarildo, Jair Marinho e Altair. O propósito dos depoimentos, com base em sua história de vida, método caro à História Oral, foi rememorar as lembranças dos futebolistas acerca de sua participação na competição, de modo a destacar os preparativos para o Mundial, os jogos e a volta ao Brasil. O depoimento a seguir foi concedido no dia 20 de agosto de 2012, no Auditório Armando Nogueira, localizado nas dependências do Museu do Futebol, no estádio do Pacaembu.

Entrevistadores: Bernardo Buarque de Hollanda (FGV/CPDOC) e Felipe dos Santos Souza (Museu do Futebol); Transcrição: Juliana Paula Lima de Mattos; Edição: Pedro Zanquetta

Altair Gomes. Foto: Reprodução.

 

Altair

Altair Gomes nasceu no dia vinte e dois de janeiro de 1938, em Niterói, no Rio de Janeiro. Aos quinze anos de idade, foi revelado no time do Manufatura, de Niterói, e logo começou a jogar na lateral-esquerda nas categorias de base do Fluminense, sua única equipe ao longo de toda a carreira. Pelo tricolor, jogou entre 1955 e 1971, e conquistou três vezes o Campeonato Carioca, duas vezes o Torneio Inicio, uma vez a Taça Guanabara, além do Torneio Rio-São Paulo, em duas ocasiões. Ao longo dos anos, atuou muitas vezes na posição de zagueiro, mas notabilizou-se por ser um grande marcador de Garrincha. Na Seleção, foi reserva durante a Copa de 1962 e assistiu à conquista o bicampeonato mundial, no Chile. Na edição seguinte, disputada na Inglaterra, foi titular em dois jogos, mas a Seleção não passou da primeira fase. Foi campeão por três vezes da Taça Bernardo O’Higgins (1959, 1961 e 1962), contra os chilenos. Ao todo, foram 551 jogos pelo Fluminense, com dois gols marcados e dezenove partidas pela Seleção brasileira. Ao encerrar a carreira, retornou à cidade natal e abriu uma casa lotérica. Trabalhou para a prefeitura niteroiense, em projetos educacionais ligados ao futebol. Nos anos 1990, retornou ao Fluminense e participou de várias comissões técnicas do elenco profissional. Dirigiu o time, de maneira interina, algumas vezes. Quando gravou o depoimento a seguir, morava em Niterói. Doente, sofre do Mal de Alzheimer.

Depoimento

Altair, muito obrigado por aceitar o nosso convite. Gostaríamos de iniciar a conversa com uma breve apresentação.

Nasci em 22 de janeiro de 1938, em Niterói (RJ). Meu pai era despachante da viação ABC, que fazia o trajeto da minha cidade até Alcântara. E minha mãe ficava em casa. Sempre gostei de futebol e joguei para valer a partir dos 15 anos.

Onde o senhor deu os seus primeiros chutes?

Antes de chegar ao Fluminense, clube que defendi durante toda a carreira, atuei no Manufatura[1]. Fui indicado por um vizinho que trabalhava na fábrica que dá nome ao time. Ele me levou a um diretor, fui aceito e fiquei um ano na equipe. 

A família respeitou a sua vontade de seguir na profissão?

Meu pai gostava da ideia, mas não ligava para futebol. Mamãe ficava nervosa quando eu voltava sujo da pelada. Pegava um chinelo e me batia. De resto, aceitava. Até porque curtia o esporte.

Fale um pouco sobre a sua rotina e a oportunidade de se transferir para o Fluminense.

Treinava seis dias por semana no Manufatura e ainda estudava. Mas fiz isso apenas um ano, pois, como disse anteriormente, foi o período que permaneci no clube. Certo dia, o técnico do Manufatura, sem falar comigo, me levou às Laranjeiras. Fiz um teste e fui aprovado nas categorias de base. A partir de então, deixei a escola e me dediquei exclusivamente ao futebol. Após o juvenil, cheguei aos profissionais e logo alcancei a seleção brasileira.

Falando nisso, a sua primeira participação em Copas do Mundo ocorre em 1962, no Chile. O senhor se recorda da preparação?

Foram convocados os melhores. Durante os treinos, havia um rodízio. Entrava em campo às vezes, outras me pediam para sair. Falavam que era bom dar uma descansada e não atrapalhar (risos). Aí ficava encostado no canto até a hora das atividades mais firmes. O negócio estava bem puxado. Tanto é que fazia massagem direto após as sessões. Sobre o grupo, houve poucas mudanças em relação a 1958. Eu e o Jair Marinho fomos alguns dos novos nomes. Fui campeão várias vezes no período entre os dois Mundiais e vivia boa fase.

Uma de suas marcas foi a qualidade na marcação. Tanto é que lhe consideram um dos que melhor combateu as arrancadas e dribles do Garrincha. Qual era o segredo?

O Mané enfrentava os laterais Jordan[2] e o Coronel[3]. Ambos saíam tortos de campo. Comigo sempre foi diferente. Chegava nele antes das partidas ou treinos na seleção e falava: “Sem palhaçada que serei obrigado a te dar um tapa (risos).” Ele dizia: “Calma, Magrinho, não farei isso com você.” Tinha essa estrutura física diferente do padrão e aí virou apelido. Após os treinos, eu ainda dava uma corridinha. Coisa de três ou quatro voltas. E o próprio Garrincha perguntava se eu estava sentindo alguma coisa. Respondia que não, pois dei uns piques e me preparei. Evidente que era uma brincadeira dele, pois, na verdade, queria dizer que não havia me testado no treino, que deu uma segurada no ritmo. Ele também me pedia para jogar na bola, pois sempre dei uns bicos nele. Foi assim a carreira toda. Ele no Botafogo, eu no Fluminense. Um no time titular da seleção, o outro na reserva. Sem dúvida, o maior ponta que o Brasil já teve.

O senhor foi reserva do Nilton Santos na Copa de 1962, não é?

Exato. Naquela época, eram vários laterais esquerdos de qualidade no país. Mas vinha a convocação e só chamavam Altair e Nilton. Ao longo da carreira, principalmente no início, também atuei na defesa. 

Em 1966, o senhor finalmente entrou em campo no Mundial.

Lembro-me da convocação. Assim como em 1962, estive bem no Fluminense e recebi uma chance. Atuei na vitória contra a Bulgária e na derrota diante da Hungria. Depois, na última partida, modificaram toda a equipe para enfrentar Portugal.

Qual análise o senhor faz das atuações da seleção?

A maioria dos atletas que participou da estreia não terminou a Copa. O elenco era limitado. Alguns não sabiam bater lateral, escanteio ou finalizar a gol. O goleiro também não pegava muita coisa. Resumindo: foi horrível. Por isso que não ganhamos.

As pessoas comentam que o determinante para a eliminação brasileira foi a desorganização fora de campo.

Mais do que isso: as seleções europeias eram mais estruturadas. Veja a Inglaterra, por exemplo. Dispunha de excelentes profissionais, todos bem remunerados. O mesmo ocorria na Itália e na Espanha. Até hoje é assim. O Brasil demorou a seguir o exemplo. As coisas só começaram a mudar com o surgimento de Pelé e Garrincha.

Vocês recebiam bons salários?

Nas viagens que fazíamos a Europa, sim. As excursões ficavam ainda melhores quando os diretores colocavam umas notinhas em nossas mãos. Dinheiro na hora, em dólar. Sempre ganhávamos, independentemente do campeonato ou do adversário.

Após duas participações em Copas e quase duas décadas de Fluminense, o senhor decide se aposentar em 1971. Como foi este processo? 

Na verdade, a gente demora a parar. Ainda jogamos alguns anos ao lado das “malas”. É o nome que dou aos atletas que não fazem nada. Se acham ótimos, mas na verdade… Entrei com eles até cansar de vez. Quando abandonei os gramados, passei a procurar novos talentos. Achava bons valores em Niterói e os levava às categorias de base do Fluminense, em Xerém.

Como o senhor identificava os bons jogadores?

É simples. Precisa apenas colocá-los em campo ao lado de outros moleques. Os diferenciamos conforme o andamento do treino. É preciso saber bater na bola, que você visualiza nos passes e finalizações. Se chutar longe, sai da atividade (risos). 

Nos anos 1990, o senhor volta ao Fluminense. Só que dessa vez integrando a comissão técnica da equipe profissional, certo?

Foi uma experiência interessante, já que passamos a conhecer os jogadores. É preciso muita conversa, pois a maioria é jovem. A minha função era “manjar” os atletas. Os pegava e os orientava. Dizia que fulano driblava excessivamente, por exemplo. E os meninos procuravam ouvir a orientação. Nunca tive problema lá. Aí chegou uma hora que decidi parar de vez e me dedicar às peladas. Eu e o Jair Marinho batíamos bola com frequência. Reuníamos o pessoal em campos niteroienses.

Para finalizar, há muita diferença entre o futebol praticado na sua época e o atual?

Sem dúvida. Sobretudo a parte física. Muitos não gostam de se dedicar a esta questão, preferem não correr. Você precisa disso na criação dos lances e até na cobrança de pênaltis. Sinceramente, acho que os profissionais de hoje não têm mais jeito.


[1] O Manufatura Nacional de Porcelanas Futebol Clube foi fundado em 15 de setembro de 1932. Filiado ao Departamento Autônomo (DA), federação que reunia clubes amadores do Rio de Janeiro, não tinha condições financeiras de participar do Campeonato Carioca. Participava de uma liga paralela ao estadual, que estava dividida em três divisões: Série Urbana, Rural e Suburbana. O Manufatura integrava esta última.

[2] Jordan da Costa atuou como lateral-esquerdo e volante ao longo da carreira. É o quarto atleta que mais vestiu a camisa do Flamengo: 608 vezes.

[3] Antônio Evanil da Silva, o Coronel, defendeu o Vasco entre 1952 e 1964.

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Bernardo Borges Buarque de Hollanda

Professor-pesquisador da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV).

Daniela Alfonsi

Antropóloga, Diretora Técnica do Museu do Futebol e doutoranda pela USP. Trabalha com e pesquisa sobre os museus esportivos.
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