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Amoroso (parte 2)

A entrevista faz parte do projeto Memórias dos boleiros: histórias de vida de atletas e de integrantes de comissões técnicas brasileiras que atuaram no exterior. Esse projeto foi fruto de uma parceria entre LUDENS-USP, Museu do Futebol e o portal Ludopédio.

Esse projeto tem como proposta reunir as histórias de vida de jogadores de futebol e de integrantes das comissões técnicas que tenham atuado no exterior. Ao optarmos pela história de vida, teremos acesso a uma série de discursos até então pouco investigados. Isso pode ser verificado quando se recorre à história do futebol e se percebe que existe uma história que é considerada “oficial”. Essa pesquisa será uma forma de ampliar discussões sobre o futebol a partir da história de vida dos jogadores e integrantes das comissões técnicas. A história oral será o método adotado para a construção de um diálogo com o referencial teórico das Ciências Humanas, mais especificamente a produção da Antropologia, da História e da Sociologia. Por meio da história de vida, ainda será possível registrar memórias, histórias e experiências dos sujeitos mencionados, além da criação de um banco de vídeos com as entrevistas realizadas de modo a constituir um acervo para preservar a elaboração de tal memória, quer se refira de modo restrito à carreira dos mesmos, quer, de modo geral, ao futebol brasileiro.

 

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Entrevista com Amoroso. Foto: Museu do Futebol.

 

Segunda parte

 

Amoroso, você falou do seu retorno para o Brasil, do Málaga para o São Paulo. Como é que foi retornar depois de tantos anos? Você teve algum choque cultural? Quais foram as principais diferenças naqueles primeiros meses?

Não tive dificuldade, pra mim foi até mais fácil me adaptar porque quando eu voltei pro Brasil, e fui contratado pelo São Paulo, eu voltei de férias, e já com um contrato, mais ou menos, já apalavrado com um time espanhol, com o Celta de Vigo, e aí, voltei, falei: “Vou esperar os caras me mandarem a proposta e depois eu vou”. Chegou a proposta pra mim, cheguei pra minha esposa, e falei: “Ó, vamos voltar pra Espanha, é um país legal, vamos ficar lá em Vigo, lá nós estamos perto de Portugal, qualquer coisa a gente desce lá pro Porto, vamos, vamos conhecer aquela região, é legal pra caramba, vamos pra lá, agora o que vier pra gente daqui pra frente é lucro, vamos conhecer o país, o mundo”. Ela gostou da ideia, falou com os moleques, as coisas já estavam na Espanha, era mais fácil a mudança.

Eu vim pro Brasil, chega a proposta do São Paulo, porque o Grafite tinha se machucado, eles precisavam de um jogador experiente pra suprir a ausência do Grafite nas semifinais da Libertadores, e como eu já tinha trabalhado com o Milton Cruz no Japão, ele jogava no Kashima e eu tava no Verdy, então a gente já tinha feito amizade, por que eu tinha amizade com o Zico, e aí conheci o Milton Cruz naquela época. E o Luizão, que era meu grande companheiro de Guarani, a gente cresceu junto, estava jogando no São Paulo, o Rogério Ceni eu já tinha amizade da Seleção Brasileira, o Júlio tinha jogado comigo no Parma, o goleiro Roger no Flamengo, então eu falei: “Pô, tá em casa. Pra mim, vai ser rapidinho me adaptar novamente ao futebol brasileiro”. Aí voltei, aceitei a proposta do São Paulo: “Olha, eu não vim aqui pra ganhar dinheiro, eu vim aqui pra ser campeão, eu quero ser campeão da Libertadores e Mundial, lá na frente nós vamos conversar de contrato, por enquanto eu quero só ser campeão”. Fizeram a proposta de seis meses, seria do dia que eu assinei o contrato, 16 de junho a 31 de dezembro, aí assinei o contrato, tudo beleza, maravilha.

Estreia contra o River Plate, eu falei: “Porra, será? Treinei dois dias…”. Estava parado havia três semanas, só jogando peladinha com os amigos, na casa dos amigos, cheguei e treinei dois dias. Fui pra concentração e fui estrear contra o River na semifinal. E tinha uma certa “incógnita”, uma dúvida: “Será que não tá velho? 31 anos. Será que vai render, como é que vai ser? Ah, jogador já figurinha carimbada, acho que não vai…”. Então, dividiu uma parte do conselho do São Paulo que acreditava no meu trabalho e outra parte que não acreditava. Achavam que era uma contratação por contratar, porque não tinha ninguém, mal eles sabiam que eu tinha terminado a temporada na Espanha voando no Málaga, mesmo com um treinador que não gostava de mim. Mas, assim, entre aspas, que não gostava, pois ele era muito defensivo, então ele queria jogar só com um centroavante, e os outros quatro atacantes que tinha não queria nem ver, jogava só com o Fernando Baiano na frente, e eu ficava fora, mas eu estava treinando, voando, entrava sempre nos jogos, e era questão só de três semanas. Eu sempre voltava fisicamente bem, eu tinha facilidade na questão da minha preparação, pré-temporada, em quinze dias eu estava já voando, era só manter e estava bom.

Quando eu cheguei e comecei a treinar no São Paulo, o Paulo Autuori me chamou e falou: “Você vai ser a solução, você vai ser a cereja do bolo, era o que faltava pra gente”. Falei: “Professor, pode ficar tranquilo que nós vamos ser campeões”. O que me deu uma certa liberdade e depositou em mim uma confiança, que era o que eu precisava, chegar e já ter total respaldo do treinador, o que eu não estava tendo lá. E voltei fisicamente bem, com amigos que eu já conhecia, então falei: “Pô, tô em casa, parece que eu tô aqui já há vinte anos jogando, nunca saí daqui”, e aí foi o que todo mundo sabe, foi uma das melhores partidas que eu fiz na minha vida, foi a estreia contra o River Plate, só não fiz gol, faltou o gol. Mas eu joguei do inicio até o final, intensidade total, numa estreia, dois dias treinando com o grupo, coisa de louco, ninguém acredita, bota lá no Youtube, ou vê a fita e vai ver o jogo, e nem eu tinha acreditado que eu tinha feito uma estreia daquelas, então, quando nós ganhamos de 2×0 eu falei: “Ah, agora nós estamos na final, é difícil o São Paulo perder lá na Argentina, não tomamos gol ainda”, então aí se criou toda aquela expectativa, aí já começou aquela: “Ah, será não, tenho certeza que vai ser, já não é mais, não, tenho certeza que vai ser o diferencial”.

E foi o que aconteceu: me deram a oportunidade, eu acabei criando meu espaço dentro do São Paulo, comecei a jogar pela experiência, acabei dando uma voltinha menor e consegui ser campeão da Libertadores, e fui o melhor jogador da final, ganhei o carro ainda como o melhor em campo, pô, eu estava nas nuvens: “Pô, aqui eu vou ficar, daqui ninguém me tira, do São Paulo, tô em casa, e vamos ganhar a Libertadores ano que vêm, se manter esse grupo a gente não perde”. E aí ficou aquele disse me disse, eu pedindo: “Pô, renova o meu contrato, faz um contrato mais longo pra mim, deixa eu ficar aqui, tô tão bem aqui, tô a 50 minutos da minha casa, eu tô no melhor clube do Brasil, não preciso mais ir pra Europa pra ganhar dinheiro”. Na época, o brasileiro não sabia quem era o Amoroso aqui no Brasil, eu era uma revelação do Guarani, mas não era consagrado, minha consagração veio no São Paulo, com o título da Libertadores e, consequentemente, o Mundial, que era o que o São Paulo não tinha desde 1993, então eu acabei tendo o reconhecimento do brasileiro, em geral, pelo título do São Paulo, não pelo que eu projetei lá fora, porque não se passava o que se passa hoje dos campeonatos na televisão, e a mídia que se tem em cima dos campeonatos europeus antigamente não tinha; em 2005 não se via tantos jogos do futebol europeu. E aí eu saí do São Paulo porque eles não atenderam meu pedido de três anos de contrato, que eu não queria mais sair, eu falei: “Ó, se vocês fizerem um contrato pra mim de 3 anos, porque, dois anos, vão vir clubes lá de fora, vai bater na minha porta, porque eu tenho mercado, eu fui lá fora, eu tenho história lá, vão vir me pegar, então renova meu contrato por três anos que eu não quero mais sair daqui”. E enrolaram, enrolaram, acabaram não renovando meu contrato e eu fui pro Milan. O Milan me fez uma proposta, eu acabei indo, falei: “Pô, qual jogador que recusaria uma proposta do Milan? Quem?”. Acho que nem o Pelé. Se tivessem falado “Ah, quer ir pro Milan?”, “Não, claro que eu vou!”. Um dos maiores clubes do mundo, com toda uma história, clube copeiro, então, você ter no currículo que você foi contratado por um clube desse tamanho, com 32 anos.

Qual jogador com 32 aos sai de novo pra fora do país pra um clube do tamanho do Milan? Era uma oportunidade que eu tinha, que o São Paulo perdeu, podendo me contratar por três anos. Não perderia aquela Libertadores pro Inter, não perderia porque eu ia botar uma lenha naquela final, naquela fogueira ali, mas aí acabou acontecendo e eu não tive o reconhecimento que eu esperava da direção do São Paulo pra poder permanecer ali. Isso me deixou chateado, porque eu acreditava que o Rogério poderia ter dado uma força muito grande pra mim ali dentro, de incentivar ao máximo a minha permanência, porque, qual jogador chegou em tão pouco tempo no São Paulo e fez a história que eu fiz? De falar isso, que vai fazer aquilo e correspondeu com tudo aquilo que prometeu? Tem muito jogador que jogou muito mais tempo, fez muito mais gol que eu, mas não tem os dois títulos que eu tenho, em tão pouco tempo de clube. Então poderia ter tido uma participação maior do capitão do time, que tinha uma voz e tem uma voz muito importante dentro do clube, e falar: “Não, professor, quanto tempo que o Amoroso quer de contrato? Deixa ele encerrar a carreira aqui.” Eu não encerraria ali, porque eu encerraria no Guarani, é clube onde eu me projetei, era uma promessa que eu tinha feito, que eu encerraria a carreira no clube que tinha me revelado, mas poderia ter jogado no São Paulo três ou quatro anos tranquilo, ter ganhado três títulos brasileiros, possivelmente uma outra Libertadores, então eu fiquei chateado porque eu não tive o reconhecimento esperado, por ter tido a oportunidade de ajudar o São Paulo num momento de perda de um jogador importante pro grupo, que era o Grafite, uma referência junto com o Luizão, e de eu ter chegado e resolvido, dado conta do recado. Então eu achava que o Muricy ia ter um pouco mais de respeito, de compreensão por parte dele, mas a gente sabe que diretor quer dar satisfação pra torcedor, no mundo do futebol é assim.

Por parte do torcedor são-paulino você vê esse reconhecimento?

Com certeza, seja nas redes sociais ou onde quer eu vá, eles sempre me agradecem “Pô, obrigado por 2005, volta pro São Paulo, faz falta, pelo amor de Deus, estamos precisando de jogador como você, que falava, botava a cara, não tinha medo de chegar e falar que ia fazer, que isso, aquilo”, eu falei “Não, eu senti confiança em mim naquele momento e falava o que eu vivia”. A confiança que eu estava tendo eu chegava e falava: “Não vai ganhar aqui dentro, vai chegar aqui e perder, não vai, não tem essa, quem manda aqui é a gente”. Então, o torcedor gostava disso. Ficaram meio chateados porque quando eu voltei da Itália eu vim pro Corinthians, e alguns não admitem, mas faz parte do futebol, temos que lidar e respeitar todos os clubes. Uma coisa que eu, que eu fiquei muito chateado foi porque, como eu fui pro Milan, e tinha saído do São Paulo, e, de repente, o São Paulo precisava de um atacante, que o Ricardo Oliveira acabou não ficando, nas finais, eles poderiam ter me procurado lá e falado “Você não quer voltar? Tamo te esperando aqui, vêm”. Não, quando eu assinei com o Corinthians eles falaram que tinham me procurado, não foi verdade, entendeu? Então eles poderiam ter falado “Ah, não, não dá pra mandar vim e ponto final”.

Quando eu vim pro Corinthians, eu vim pra ajudar o Corinthians numa situação do Corinthians, complicadíssima, diferentemente do que eu peguei no São Paulo. Eu peguei o São Paulo na semifinal de Libertadores e peguei o Corinthians penúltimo do Brasileiro, pra ser rebaixado, substituindo o Carlitos Tevez, que queriam matar o ídolo do clube, então não dava. Minha esposa falou pra mim “Você é louco, você tá maluco, eu não acredito!”, eu falei “Não, pode ficar tranquilo que história eu não vou fazer no Corinthians, mas cair comigo lá não vai cair não, pode ficar tranquilo que não vai cair”. E foi o que aconteceu, peguei o grupo e falei: “Ó gente, eu tenho história, você tem história, você tem, se eu for rebaixado com o Corinthians, eu não quero andar na rua, ‘Pô, você caiu com, com meu time, você não representou!'”. Falei: “Não, isso eu não quero, você pode ficar sem falar com fulano, não falar com esse, com aquele, mas dentro de campo, filho, vamos todo mundo correr”. Tanto que teve um manifesto lá de entrevista com a imprensa, que o Corinthians ficou nove jogos sem dar entrevista e aí falaram que fui eu que criei com o Magrão. Essa foi a solução, graças a Deus que nós tivemos essa ideia (risos) porque senão o Corinthians ia cair, porque a imprensa toda queria isso pro Corinthians, queria uma repercussão nacional no rebaixamento do Corinthians. “Não, não vamos dar entrevista, vamos ficar quietinhos”. Eu, o Magrão e o César decidimos, falamos “Não vai, ninguém vai falar”. E aí ficamos nove jogos sem dar entrevista pra torcida, pra imprensa. Desses nove ganhamos sete, empatamos dois e classificamos pra Sul-americana e o Corinthians não foi rebaixado. No ano seguinte eu falei: “Agora eu vou embora, porque tá feia a coisa (risos), vai cair”. E caiu. Eu fui pro Grêmio.

Então, são coisas que acontecem, que o torcedor não entende, mas quem não quis o Amoroso no São Paulo não foi o Amoroso, quem não quis foram os dirigentes que não renovaram meu contrato, eu não posso chegar lá, pegar o papel, rabiscar e falar “Eu quero ficar aqui dez anos”. Se pudesse, sim, gostaria, porque eu fui muito bem ali, estava em casa. Mas são coisas do futebol, e o torcedor tem que saber a versão do jogador pra poder entender o que acontece. Foi o que aconteceu comigo, por mim eu teria ficado no São Paulo até hoje, sem problema.

Amoroso no Museu do Futebol. Foto: Museu do Futebol.
Amoroso no Museu do Futebol. Foto: Museu do Futebol.

Depois do Grêmio você ainda voltou pra Europa mais uma vez?

O Grêmio foi uma passagem triste na minha carreira porque eu não tive o reconhecimento do treinador naquela época, que era o Mano Menezes, que na realidade ele me contratou mais pra valorizar outros jogadores do elenco do que me projetar numa partida de Libertadores. Eu estava muito bem também e mereceria jogar, mas como eu não fazia parte do trabalho e do pensamento dele como atleta, ele acabou me deixando de lado, e aí eu tive umas desavenças com ele, pessoais, eu expressava o que eu achava e ele não concordava, e ele me falava e eu também não concordava, então acabou criando um clima tenso dentro do clube que eu falei pra eles que não tava mais feliz ali, que se eles pudessem me liberar seria bom pra todo mundo, e aí entramos num acordo e eu acabei saindo do Grêmio, porque eu fui muito bem recebido pelos torcedores, mas não tive as oportunidades que muitos tiveram de jogar, e eu achava que eu mereceria ter porque eu tava vindo do Corinthians, tava jogando, então, quando eu cheguei ali e vi que ele não ia me dar a oportunidade de jogar como tava dando pros outros, falei “Meu, eu não tô aqui pra valorizar jogador”, “Ah, pôs o Amoroso no banco e vai vender um, vai vender outro, vai valorizar um, vai valorizar outro, tudo nas minhas costas; não, eu vim aqui pra jogar. Ah, você não me quer? Vai ter que falar pra imprensa porque que você não me quer”. E a imprensa me questionava “Ah, Amoroso, você não joga”, eu falava “Mas você tá vendo o treino? Você tá assistindo os treinamentos? Os treinamentos são abertos pra imprensa, pra ver o coletivo, pra ver se eu tô pior do que o atacante fulano, o atacante siclano. Daí você pode chegar pra mim e falar “Ah, você não tá bem mesmo, hein, merece ficar no banco”, “Ah, o atleta tá mal taticamente, tecnicamente”, mas não era isso, vocês não tão vendo, então vocês não podem chegar e falar pra mim, é a palavra do treinador contra a minha, o treinador vai falar que eu não tô bem, eu vou falar que eu tô bem, e você vai acreditar em quem?”.

Então, algumas coisas eu questionei, podia ter mais experiência, podia não levar mais desaforo pra casa, como durante toda a minha carreira eu escutei, passei por muitas coisas, e tinha que passar porque é uma situação que você precisa fazer sua independência financeira, precisa ter seu momento de ídolo, vamos colocar assim, de jogar, eu nunca tirei o pé, eu nunca pipoquei, eu nunca fui chinelinho, eu joguei machucado, eu jogava infiltrado, eu jogava com dor no pé, com dor no dedão, mas nunca tirei o pé, nunca pipoquei pra nada, “Vai jogar machucado?”, “Vou”, “Não, mas você não tem condição…”, “Não, tenho, pode deixar, eu vou lá no doutor, ele faz uma injeção e amanhã eu trato”. Isso ninguém sabe, as pessoas vão pelo lado do que o treinador pensa, mas não é assim, você não sabe o que passa com o jogador, entendeu? Então, “Olha aí, eu posso falar pra você que eu não tô feliz, porque você me trouxe pra cá pra jogar, eu se eu não jogar eu não quero mais ficar aqui”. Eu tinha direito de falar, porque eu já não tava mais aguentando muito o futebol, entre aspas, é, ver certas situações, que eu não precisava mais passar por isso, então eu queria fazer o certo. Ah, o certo não é isso? É isso. Então eu acabei optando por sair do Grêmio e ir pra Grécia.

A Grécia foi mais uma aventura, vamos falar assim, num momento em que eu já tinha ficado sete meses sem jogar, então, já tava passando pela minha cabeça não jogar mais, ou, se jogar, só no clube que eu gostava, que eu tinha aparecido, que era o Guarani, que fica na minha cidade, não tem que tirar minha família dali, não tem que criar mais um empecilho pra mim, porque meu filho já tava numa escola, ia atrapalhar completamente os estudos, ia ter que ir pra outro país completamente diferente. Como, naquele momento, no Brasil, tava muito conturbado pra mim, tinha saído do Corinthians com polêmica, tinha ido pro Grêmio e saído com polêmica, eu falei “Pô, não vou jogar mais bola”, aí pintou essa questão da Grécia, eu falei “Putz, mas na Grécia não paga, eu vou ficar lá e não vou receber”, eu falei “Ah, eu vou pedir um monte de dinheiro lá justamente pra não ir, eu vou pedir pra não ir, ah, me dá um contrato assim:…”, o cara falou “Não, eu te pago”. Eu tenho palavra, não pode chegar e falar que eu não vou, eu pedi e o cara falou que vai dar, então vamos. Cheguei pra minha esposa e falei “Ó, prometo pra você que é a última vez que a gente vai sair, depois acabou, é o último país que a gente vai morar, depois a gente volta pra cá, eu termino minha carreira no Guarani e acabou”, ela “Então tá bom, beleza”.

Aí fomos pra Grécia, chegou lá, complicado achar casa, demoramos três meses, meu contrato era de um ano e meio, três meses sem a minha família lá e eu já não entendia nada, e os caras não resolviam, e eu não recebia, começou a me dar um nervoso, um desespero, o treinador fraco pra caramba, o treinador não entendia nada de futebol, eu olhava: “Não é possível um cara desses ser treinador, não é possível”, “Não, sem preparação física não pode fazer…”. Já tava num momento em que não queria mais fazer aquilo. Então eu falei “Pô, eu tenho nome, eu não posso chegar e estragar uma imagem nem uma carreira brilhante que eu fiz, com pessoas que não merecem, não é”, falei “Ah, eu não mereço isso”. Aí passou, machuquei meu tendão de Aquiles, eu falei “Ó, preciso ir pro Brasil tratar meu tendão, e na volta a gente conversa”. Acabou a temporada, fiquei tratando, não resolvia, entrou o terceiro mês sem receber, e eu vim embora pro Brasil, de férias, aí entrou o quarto mês, não recebi, eu peguei, entrei na justiça, falei “Ó, agora não vou rescindir meu contrato, não vou voltar lá, vou ficar lá pagando pra jogar? Com a minha família passando dificuldade, não vou mais jogar”. Aí entrei na FIFA, briguei pra sair, ganhei, voltei pro Brasil, falei “Ah, não vou jogar mais bola”.

Aí o pessoal do Guarani: “Não, joga aqui três meses, joga o Brasileiro, o Paulista”, eu falei “Ó, vamos fazer o seguinte: eu vou jogar esses três meses e vou parar, tá bom?”, aí eu já encerro a carreira no time que eu joguei, que eu gosto, e aí já tô em casa, beleza. Aí eu fiz isso, acabou machucando o meu tornozelo, joguei um jogo, e aí falei: “Agora não vou jogar mais, encerrei”, aí recuperei, fiz a cirurgia, recuperei na fisioterapia, me liga um cara lá da Arábia, “Você não quer vir jogar aqui?”, eu falei “Meu, vou lá pra Arábia? Não, (risos) nunca mais vou sair daqui de casa, chega pelo amor de Deus”, ele falou assim: “Você tá certo”. Então tá bom, eu encerro por aqui a minha participação profissional, agora vou jogar pra me divertir e cuidar da família, e aí comecei a tocar a vida de outra maneira, hoje no ramo do business, na construção civil, então mudei radicalmente a minha vida, porque eu já tava me preparando também. Depois do título mundial do São Paulo, se eu ficasse no São Paulo, eu teria a mesma vontade de prosseguir a carreira, de continuar jogando, jogando pra valer mesmo, pra valer que eu digo é você estar num clube que você gosta, você tá num clube que você é bem quisto por todos, os torcedores te respeitam, te adoram, você não tá saindo dali pra um outro clube pra você conseguir criar tudo isso novamente, entendeu, porque pra você criar tudo isso você vai ter que, dentro de campo, ralar pra caramba, pra poder ganhar o respeito deles. Eu falei “Putz, eu não quero mais passar por isso, eu quero ficar aqui, eu tô bem, eu já ganhei um título importante, dois títulos maravilhosos, então aqui eu já tenho respeito, já sabem qual é o mau potencial e o que eu posso fazer. Quando eu saí, eu falei assim: “Putz, agora o que vier daqui pra frente vai ser lucro pra mim, porque se eu tiver a oportunidade de jogar e eu merecer, eu vou dar o meu máximo como eu sempre dei, mas se eu ver que tem sacanagem, que nego tá querendo me sacanear pelas costas, apunhalar, eu vou devolver na mesma moeda”.

Então eu comecei a pensar dessa maneira, e aí eu pensei “Pô, se isso começar a me atrapalhar, que que eu vou fazer? Vou parar de jogar, mas o que que eu vou fazer? Pra onde eu vou? Ser treinador? Não vou querer. Ser dirigente? Não vou querer. Eu tenho que pensar o que que eu vou fazer”. Como na minha família tem uma pessoa que tem uma construtora e abriu as portas pra que eu pudesse estar junto, eu peguei e falei assim: “Ta aí a minha resposta pro pós-futebol”, e aceitei o pedido do Sérgio, de poder trabalhar junto com ele na construtora, de fazer vários projetos, e hoje a gente tem uma parceria na construtora, construímos em Campinas e região, e eu tô nesse ramo, que me abriu várias portas, inclusive num projeto meu, que hoje eu faço parte como vice-presidente, em Campinas, que é de futsal, chama Esporte Clube Pulo do Gato, e o Pulo do Gato já tem 20 anos, dentro de Campinas, e é um clube social e de rendimento, então, quando se falou em social e de rendimento isso me despertou novamente o interesse de partir pro lado do futebol, mas não profissional, e sim social. Então, quando eu pensei nesse projeto, e eu vi que o meu menino, que hoje joga lá, que é o mais novo, Mateus, que gosta muito do projeto, que ensina a lidar com os dois lados sociais, e lidar com isso é muito bom pra você poder fazer essa integração social das crianças. Então, hoje nós temos cento e sessenta crianças, mais as equipes sub-20 e principal, então eu já me tornei vice-presidente do clube e conseguimos alavancar um clube que, até então, era só Campinas e região. Hoje o clube disputa a Liga Paulista de Futsal, é muito respeitado, temos jogadores de expressão dentro do nosso elenco, que é o caso do Pitoco, do Felipinho, que jogava no São Paulo, do Fábio, Nandinho, jogadores que já jogaram em grandes clubes.

Então, hoje eu vejo um projeto com uma ambição gigantesca de crescer dentro do cenário do futsal nacional, que a minha intenção, por ser vice-presidente, é por o Pulo do Gato na Liga Nacional, futuramente, e isso me fez voltar ao futebol, entre aspas, mas por onde tudo começou, comigo, que foi, justamente, no futsal, lá em Brasília pra me divertir. Então, hoje, a base do futebol é desses atletas que têm muita habilidade, que são velozes, é o futsal que proporciona isso, que é uma coisa que o Brasil tem, que outros países estão começando a ter agora, mas não tem a base que o Brasil tem pra poder aprender, a ensinar essas crianças, aprender como se deve fazer a atividade do campo. Hoje, fora do país, você pega Rússia, Espanha, Itália têm futsal, é profissional, mas não tem a cultura de trabalhar as crianças na categoria de base, de dar o fundamento pra eles, porque hoje você vê: se você pegar uma criança de onze anos e bota ela pra jogar num campo grande, essa criança vai pegar na bola duas vezes, ela vai correr com a bola e vai cansar. Até ela se adaptar num campo, ela não vai ter força pra pegar uma bola e chutar do outro lado, então o futsal te agrega conjunto, te agrega movimentação, você tá com a bola toda hora, você não se esconde, entendeu? Você tem que se apresentar pro jogo, você vai pegar na bola, você vai marcar, você vai dar opção, você vai chutar, você vai defender, tudo num espaço pequeno. No campo, pra uma criança pequena, não é bom até os seus quatorze anos, que ela já tem uma certa força pra poder correr, se desenvolver, então, o futsal é bom dos sete aos treze, é fundamental, é uma coisa que a gente tem e o europeu não tem. Quando eu pensei em agregar essas duas coisas na minha vida, a construção de uma parte, financeiramente, com o futsal, pra eu não sair definitivamente do futebol. Hoje a gente tem um projeto maravilhoso, já temos alguns atletas, inclusive em clubes grandes de São Paulo, que saíram do nosso projeto, isso me deixa muito feliz porque eu vou acompanhando o crescimento desses meninos.

E daqui pra frente, você tem algum sonho ainda para ser realizado?

Ah, o sonho é muito relativo. Eu quero ficar velhinho e poder usufruir de uma vida que eu sempre quis, ter e poder dar pros meus filhos, pros meus parentes, a oportunidade de poder viver com dignidade, viver bem. Para mim, sonho é sempre ter saúde, não depender de ninguém, depender de mim mesmo, da minha família, mais da família, porque a gente, às vezes, fala que tem amigo, mas amigo nas horas difíceis ele some, então eu sou dependente de mim mesmo. Para mim, sonho é eu tendo saúde, é um sonho que eu tenho de poder, a cada dia, acrescentar um pouco mais para a sociedade, como alguns projetos que eu tenho em mente aí de poder ajudar. Em Campinas a gente está com um projeto, se Deus quiser vai dar certo, vou apresentar isso em algumas empresas pra que a gente possa salvar algumas crianças cardiopatas, que não tem condição de serem operadas em hospitais particulares, a gente fazer essa divulgação desse hospital que a gente tá querendo, que eu tô querendo encabeçar em Campinas, junto com o doutor Eduardo, que é um cirurgião cardiovascular, que é o sonho dele, ele me colocou nesse projeto e eu tenho a incumbência agora de tentar viabilizar esse projeto, pra que essas crianças, que não tem condição de serem operadas, possam ter ali a opção de renascerem novamente, então esse é um projeto que eu tenho, que é o hospital, é pra crianças cardiopatas, isso aí é o que eu tenho em mente, se Deus quiser nós vamos realizar isso aí.

Olhando para trás, qual balanço que você faz de todo esse movimento que você fez, migratório, da sua trajetória, que lições que você tira disso, faria tudo de novo?

Faria, mas faria diferente, se pudesse pensar em alguns lugares, de não poder ir, tenho certeza que eu não iria, mas, assim, a retrospectiva que eu faço é positiva, principalmente pela experiência que eu tive, pela cultura que eu ganhei, e o que os meus filhos, hoje, têm de melhor, o respeito que eles adquiriram perante as pessoas, a sociedade. Não é porque é filho do Amoroso que pode tudo, pelo contrário, de maneira alguma eles falam que são meus filhos, eles nunca fizeram questão de chegar e falar “Ah, meu pai é isso, meu pai é aquilo, meu pai ganhou isso, meu pai foi isso”, isso aí eu nunca ouvi da boca deles pra poderem se prevalecer em cima das outras pessoas.

Então, o que eu tiro é a experiência de vida que eu adquiri, o respeito que eu passei pros meus familiares, a humildade das pessoas que estão dentro da minha família, a simplicidade da minha esposa, então, isso aí, pra mim, com certeza valeu por tudo aquilo que eu vivi, os momentos bons e os momentos ruins, de às vezes você estar em algum clube que você não consegue render aquilo que você quer, ou o esperado pelo retorno do investimento que fizeram, às vezes pode dar errado, nem sempre vai dar certo, mas eu falo pra você que por todos os clubes que eu passei, nunca faltou vontade, eu sempre trabalhei em todos com a máxima intensidade, com o maior carinho, maior respeito por cada entidade e, na realidade, no linguajar futebolístico, da boleiragem, nunca dei migué em lugar nenhum, sempre joguei com a maior vontade, com maior determinação, como eu falei antes, às vezes com lesão, com dor.

Isso muita gente não sabe, acham que, de repente, você está lá, não está treinando, só quando eu não conseguia, porque, realmente, eu estava impossibilitado, mas se eu tivesse uma dorzinha ali, não ia ser uma dorzinha que ia me tirar de um jogo qualquer. Então, eu posso falar que não tenho que reclamar de nada não, só agradecer, mas, se tivesse que mudar algumas coisas que eu errei, com certeza eu mudaria, é normal, todo mundo quer sempre o final feliz, então eu posso falar pra você que o meu final está sendo feliz, graças a Deus.

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Marcel Diego Tonini

É doutor (2016) e mestre (2010) em História Social pela Universidade de São Paulo, sendo também bacharel (2006) e licenciado (2005) em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP - Campus de Araraquara). Integra o Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO-USP) e o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (LUDENS-USP). Tem experiência nas áreas de Ciências Sociais e História, com ênfase em Sociologia do Esporte, Relações Étnico-raciais, História Oral e História Sociocultural do Futebol, trabalhando principalmente com os seguintes temas: futebol, racismo, xenofobia, migração, memória e identidade.

Aira F. Bonfim

Mestre em História pela FGV com pesquisas dedicadas à história social do futebol praticado pelas brasileiras da introdução à proibição (1915-1941). É produtora, artista-educadora e por 7 anos esteve como técnica pesquisadora do Museu do Futebol. O futebol de várzea, os  debate sobre patrimônios e mais recentemente o boxe e o circo, são alguns temas em constante flerte... 

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