14.2

Careca (parte 2)

Marcel Diego Tonini 29 de janeiro de 2016

A entrevista faz parte do projeto Memórias dos boleiros: histórias de vida de atletas e de integrantes de comissões técnicas brasileiras que atuaram no exterior. Esse projeto foi fruto de uma parceria entre LUDENS-USP, Museu do Futebol e o portal Ludopédio.

Esse projeto tem como proposta reunir as histórias de vida de jogadores de futebol e de integrantes das comissões técnicas que tenham atuado no exterior. Ao optarmos pela história de vida, teremos acesso a uma série de discursos até então pouco investigados. Isso pode ser verificado quando se recorre à história do futebol e se percebe que existe uma história que é considerada “oficial”. Essa pesquisa será uma forma de ampliar discussões sobre o futebol a partir da história de vida dos jogadores e integrantes das comissões técnicas. A história oral será o método adotado para a construção de um diálogo com o referencial teórico das Ciências Humanas, mais especificamente a produção da Antropologia, da História e da Sociologia. Por meio da história de vida, ainda será possível registrar memórias, histórias e experiências dos sujeitos mencionados, além da criação de um banco de vídeos com as entrevistas realizadas de modo a constituir um acervo para preservar a elaboração de tal memória, quer se refira de modo restrito à carreira dos mesmos, quer, de modo geral, ao futebol brasileiro.

 

Careca. Foto Marcel Diego Tonini
Careca no dia da entrevista. Foto Marcel Diego Tonini.

 

Segunda parte

Careca, fale um pouco como foi atuar pela seleção brasileira…

Bom, eu tive três passagens. A de 82 foi bastante triste, mas são coisas que acontecem, véspera de mundial me machuquei. Mas tive a segunda oportunidade em 86, que foi juntamente com a mesma comissão, juntamente com o Telê Santana que me convocou novamente, aí sim tive uma experiência bastante positiva, fui vice artilheiro com cinco gols, fomos eliminados pela França, fomos muito superiores mas infelizmente fomos eliminados nas cobranças de pênaltis, jogando muito bem, jogando um futebol muito superior, mas perdemos, fomos eliminados. Jogadores de muita qualidade, tivemos um Zico que não estava cem por cento, mas tentou nos ajudar com o joelho todo estourado. Foi uma experiência muito bacana, muito positiva  pra mim. Em 90, a gente já estava no mercado italiano, muitos jogadores como Dunga, Muller, Silas, jogadores que já estavam ali jogando, mas foi uma experiência negativa. Nós tivemos alguns problemas antes até de viajar para o Mundial, de patrocínio, de vaidade de dirigentes, de fazer vendas de patrocínios absurdas, não jogar aberto com os jogadores, isso infelizmente sempre existiu, lamentável. Acho que vestir a camisa  é uma honra, um orgulho muito grande, foi sempre um sonho pra mim e às vezes os dirigentes vão além, se aproveitam da situação, aproveitam dos jogadores, da imagem, tanto é que a gente ainda chegou a ouvir que os jogadores que eram mercenários. Hoje se você começa a abrir os dirigentes que tem o próprio Ricardo Teixeira, que está sendo questionado, investigado, desde 89 no comando, saiu agora com uma pressão, mas está sendo investigado. Tenho certeza que o pessoal vai buscar e encontrar muita coisa ruim que aconteceu. A gente sempre ganhou porque antigamente valorizava bastante os jogadores que estavam ali servindo a Seleção Brasileira, como eu servi de 81 até 93, então são muitos anos, você tem a sua história, você foi todos esses anos não por acaso, é por mérito, não tem esse negócio de esquema nenhum pra ir pra seleção. Antigamente você tinha que jogar muito no seu clube e ser convocado pra seleção brasileira, ter uma frequência e ter uma seqüência, e na nossa época era assim, infelizmente alguns dirigentes ainda atrapalhavam nossa sequência, como em 90, dos patrocínios que eram outros, a passagem da porcentagem para nós que era menos, que foi sempre mais e depois eles repensaram, o patrocinador mandou dinheiro a mais pra gente dividir entre o grupo todo, o grupo todo não só são os jogadores, são os massagistas, os roupeiros, todos eles têm essa participação, sempre fez questão de dividir em partes iguais porque todos eles trabalham e fazem parte, às vezes aparecem menos, mas a função deles é importante fora do campo. E tivemos dificuldade, nós fomos eliminados nas oitavas contra a Argentina mesmo sendo muito superiores, nós tomamos um gol, uma jogada individual do Maradona, que achou o Caniggia, ele fez o gol e nós não fomos talvez competentes de fazer o gol de empate e virar, tivemos várias chances, oportunidades, mas infelizmente não conseguimos.

Eu tive mais uma passagem, as vésperas da classificação pra 94, em 93, já nas Eliminatórias, quando já era o Parreira. Em 90 foi Lazaroni. Aí viria a geração com Zagallo, com o Parreira, fui convocado também e chegou um momento que com tanta coisa errada e tantas coisas absurdas que a gente via lá dentro, no dia a dia, se repetindo por muitos e muitos anos, eu levantei a mão e disse que eu não tinha mais condição, queria pedir pra não me convocar mais. Nós voltamos se não me engano da Bolívia, fiz uma reunião com os jogadores, depois com toda a comissão juntamente com o presidente, comuniquei que eu não queria mais voltar, que eu não queria mais servir a seleção, queria dar oportunidade pra outro jogador, porque acho que minha passagem já tinha dado e era mais do que justo, dar liberdade pros outros, pra própria comissão de convocar ou dar oportunidade àqueles jogadores que estavam ali compondo essa eliminatória. E ali eu me desliguei da seleção. Infelizmente digo assim, tinha esse sonho de ser campeão e que na sequência foi em 94, não consegui esse título, mas eu sou uma pessoa muito feliz porque durmo em paz, ponho minha cabeça no travesseiro, durmo muito tranquilo, de missão cumprida, porque sempre vesti e honrei por todo esse tempo a camisa amarelinha, ela pesava bastante, é uma grande responsabilidade por todas as histórias, por todos os jogadores que ali passaram e fizeram parte, são grandes ídolos não só no Brasil mas mundialmente, é uma responsabilidade muito grande e eu vesti por muito tempo a camisa 9, tenho bastante orgulho de ter representado muito bem o Brasil.

E como foi ver alguns colegas de seleção sendo campeões do mundo…

Então, em 94 essa geração foi forte também, uma sequência de 90, com uma base de 90. Eu pedi, eu fui muito sincero naquele momento, não queria mais servir a seleção brasileira, aí fui pra o futebol japonês e ficou mais difícil de voltar. Mas torci, fiquei feliz, porque acho que não era para ser. Eu tive chance em 82, me machuquei na véspera, a seleção era espetacular, marcou não só no Brasil, no mundo todo, com nível técnico incrível. Em 86 nossa seleção também era muito boa, era uma base de 82, perdemos nos pênaltis, fomos muito superiores a França nos noventa minutos e depois na prorrogação, mas não conseguimos fazer um gol e aí perdemos nos pênaltis. Em 90 tivemos, com todas essas confusões, negócios de dinheiro, de coisa fora de campo, em campo nós nos dedicamos e jogamos muito contra a Argentina, mas perdemos, nós tomamos um gol  e não conseguimos fazer um gol de empate e virar enfim, acho que sei lá, que não tava nessa vida, não tava pra essas grandes estrelas, grandes gerações, como nosso querido e falecido Sócrates, Zico, Junior, Leandro, Oscar, Luizinho, Falcão, Casagrande… Olha os nomes dos jogadores que estavam ali e não foram… Coisa que acontece, mas eu assim, como brasileiro me sinto muito honrado de nascer nesse país e defendo as cores sempre e vibrei muito em 94. Como vibrei muito em 70, quando comecei a entender um pouquinho de futebol, a grande seleção de 70, que ganhou o título no México, a vibração, sair na rua pra fazer toda aquela festa, tinha dez anos, e ali comecei a curtir. Mas me sinto muito feliz, torci para essa turma toda de 94, na época também e hoje continuam meus amigos… O próprio Dunga, condenado em 90, ele foi e deu a volta por cima, fico muito feliz. Várias pessoas ali continuam amigos até hoje e fico muito feliz que eles tenham levantado o troféu e dado a volta por cima.

E como é que foi jogar ao lado de tantos craques? Tanto em clubes no Brasil, na seleção de 82 e no Napoli com o Maradona?

Nós falamos de Maradona, com quem joguei junto um período de quatro anos, mas estive no Guarani, com Zenon, Renato, Jorge Mendonça; no São Paulo, com Pitta, Muller, Silas, Sidney, que também era um jogador diferenciado; teve esse período de seleção com  Zico, Sócrates, Falcão, Éder, muito inteligente, batia com a perna esquerda, Leandro, que era espetacular. É por isso que eu te falo que tem que estar muito bem preparado, porque não tinha meia boca, era rendimento em altíssimo nível. É claro que todas essas pessoas, eu me coloco dentro também, que nós já nascemos pra jogar futebol, já nascemos com o dom, mas você pode melhorar muito, aprimorar muito em cima de treinamento. Eu nasci destro, passei a ser ambidestro, chutava só com o pé direito, mas eu tinha que melhorar, e não tinha tanto envolvimento. Hoje é até melhor, os caras até obrigam a melhorar.  Mas se caía na minha perna esquerda eu não ajeitava pra perna direita, eu batia com a perna esquerda. Nunca tive dificuldade no cabeceio, então me dizia assim quase completo, porque não dá pra ser assim completo, acho que só genial e completo foi Pelé, de esquerda e direita, cabeceio, mais de mil gols, quase não se machucou, enfim, o perfil de um atleta. Eu tive algumas contusões já em 79, 78 pra 79, com 18 anos eu já operei o menisco, então já começa a descompensar um pouco, mas foi espetacular conviver com esses grandes ídolos, sair com eles, curtir com eles dentro e fora do campo, grandes treinadores também, como Telê Santana, que infelizmente não ganhou na seleção, mas teve sua história principalmente no São Paulo ganhando Libertadores e Mundiais, foi merecido também todo esse sucesso dele.

Careca, dizem que você já tinha recebido outras propostas antes de ir jogar na Itália. Porque aceitou a proposta do Napoli e justamente naquele momento?

Eu tinha um compromisso com o São Paulo, tinha contrato. E eu queria sair, achava que tinha chegado já o momento, em 86 pra 87, já com vinte seis pra vinte sete anos, nós voltamos do Mundial valorizados. Ainda joguei em 86 e 87, na final do Brasileiro contra o Guarani, fomos campeões. Teve Real Madrid, teve time da França, Nantes na época, enfim, e aí pintou o Torino, e eu tinha até assinado uma opção pra ir ao Torino porque o Junior estava ali e o Junior tinha me linkado ao diretor, e aí vai não vai, não aconteceu, não chegou muito a um acordo, mas tinha um caminho, estava caminhando muito bem. E aí esse mesmo diretor estava se transferindo para o Napoli, e aí nessa transferência tinha falado da opção, tinha falado de mim, Maradona já estava lá, e nós estivemos na França recebendo a premiação do Mundial de 86, já tinha até falado se eu queria jogar no futebol italiano, eu falei “Pô, quem sabe um dia”, “quem sabe a gente poderia até jogar juntos”. Mas aí passou 86 e em 87 deu certo, o diretor do Napoli voltou a falar com o pessoal do São Paulo. O pessoal da Espanha oferecia até mais do que o Napoli, mas eu disse que eu queria jogar no Napoli o mesmo clube que tinha acabado de ganhar o primeiro título depois de 63, não tinha tradição de grande clube, mas tinha o Maradona e eu queria jogar ao lado dele, queria vencer ao lado dele, e marcar minha história no Campeonato Italiano, principalmente em Napoli, que tem um torcedor muito especial. E foi com esse objetivo que eu fui, quis jogar no Napoli ao lado do Maradona e graças a Deus deu certo.

E hoje quando você olha pra trás, inclusive sua infância, como é que você avalia toda sua trajetória?

Pô, foi perfeita. Não fiz nada de errado, não maltratei ninguém, tenho muitos amigos, não tenho rejeição com nenhum tipo de pessoa, tenho respeito de torcida, sempre respeitei, fui muito bem educado, tenho isso de berço, sou uma pessoa simples. É lógico que não pisa no meu calo que dói e a gente abre um pouco a asa também, mas sempre respeitando meu companheiro, sempre procurei fazer amizades, sempre procurando conviver em harmonia. Conviver em grupo é muito difícil, ciumeira danada, a vaidade. Eu nunca fui assim vaidoso nesse estado de querer só pra mim. Fiz gols, muitos gols, mas os meus companheiros que jogaram ao meu lado, que me serviram, que eram os meus meias, os meus pontas que cruzavam, eles fizeram muitos gols também, eu sempre procurei servi-los também, porque eu acho que o grande momento é o gol, a felicidade. É lógico que você faz um lançamento, você faz um cruzamento, mas a alegria e satisfação de se chegar em casa e ver na tv um gol é fantástica, é maravilhosa, então eu sempre procurei retribuir meus companheiros.

Algum te marcou bastante?

Cara, tem muitos, muitos gols, e a maioria deles gols bonitos, até meu pai as vezes pegava “Pô, você não faz gol de bico”. Já fiz gols de bico, mas aquele que você dá de bico, mas com classe, não é aquele bicão, aquele “agulhão”, como os caras chamam nas nossas gírias. Eu acho que o gol que marcou muito, que não tem como esquecer, foi no início de carreira, da final de 1978, não tem como porque é um título importante, com 17 anos, no Estádio Brinco de Ouro, casa cheia, contra o Palmeiras e toda sua tradição, a gente ganhando deles  e conseguindo esse primeiro título. Não foi um gol maravilhoso, bonito, mas pra mim foi o mais importante da minha carreira, com certeza.

E olhando esse movimento migratório, de ir e voltar, você sempre pensava em voltar pro Brasil quando estava lá ou às vezes cogitou a ideia de morar lá mesmo?

Olha, eu sempre fui Brasil. Muita gente, quando eu saí do São Paulo, falou “pô, você não vai ficar dois meses, três meses, e a gente vai te buscar no aeroporto”. Falei “Tenho contrato de dois anos, com mais 2 anos com o Napoli, você me conhece muito bem, não quebrei nenhum tipo de  contrato e não vai ser diferente aqui. Eu voltando daqui talvez quatro anos, quem sabe’. Mas ninguém acreditava, meus amigos da convivência do dia a dia assim, do churrasco numa reunião de amigos. Falei “Tô indo pra cumprir todos esses anos aí, vocês vão ver”, tanto é que fiz seis anos na Itália, fui com essa experiência  pro Japão, mais quatro anos, e ali falei “Ah, agora tô voltando”, e  volto pro Brasil pra curtir, pra acabar de criar meus filhos, minhas estruturas todas aqui, meu pai é vivo até hoje, minha mãe, meu irmão. Então acho que foi missão cumprida, dez anos fora, acho que valeu voltar e curtir essa terrinha, que essa terrinha é boa. Várias buchas pra enfrentarmos no lado político, no lado de educação, mas o Brasil é Brasil.

E do que mais você sentia falta do Brasil?

Eu acho que do dia a dia, do convívio com os amigos, das reuniões com mais frequência. Lá fora cada um vai pra um canto, é difícil de você chamar as pessoas e ter essa convivência. Conseguimos trazer um convívio maior, com mais frequência, com os italianos, com os japoneses, mas muito mais difícil, muito fechado, muito tímidos, mas aos poucos nós conquistamos. Os japoneses eram muito mais importantes do que nós, os estrangeiros. Em campo eram só três, a gente podia fazer coisas espetaculares, mas se eles não ajudassem, não entrassem no nosso espírito, a gente não ganhava nada, não conseguia nada. Era um modo da gente trazê-los para dentro de casa, falar que era uma família, constituir uma família, e aí dentro de campo era a mesma coisa, o objetivo era um só, era pra jogar e ganhar, e assim que nós fizemos a diferença.

Você estava falando dos estrangeiros… Você sentiu em algum momento algum tipo de preconceito contra estrangeiros na Europa ou mesmo no Japão? Com você ou com alguns colegas?

Em termos assim de uma rejeição, um ciúme… Na época que eu fui pra Itália só podiam jogar três estrangeiros. Na época só tinha o Maradona, eu cheguei, depois o Alemão foi também. Pô, você tinha um espaço no italiano, a ciumeira é grande e você só vai eliminar isso aí no convívio, no dia a dia, mostrar quem é você e não foi diferente. “Ah no Brasil joga, quero ver jogar aqui”. Fui lá e dei chocolate em todo mundo. Então, eu fui determinado pra vencer lá, eu fui com esse objetivo de mostrar meu talento, porque muita gente fala assim “Pô, lá no Brasil qualquer um joga, quero ver jogar na Itália”, e eu fui lá e joguei muito, joguei muito junto com meus companheiros que me ajudaram bastante. Aí você começa a ter o respeito, então é isso, não adianta você falar. Eles, os italianos, são ciumentos demais, entendeu? Muito mais do que os japoneses, enfim, é difícil, mas aos poucos eu fui, coisa de meses, dois ou três meses, nem isso talvez, até menos, no dia a dia, no treinamento, ia lá treinava, às vezes tinha que fazer cinquenta piques  no morro e eu ia lá e fazia. Vamos correr e corria, e eu nunca fui de treinar em primeira linha, de ser o primeiro, de puxar a fila, sempre fui preguiçoso. O meu negócio era jogar futebol, era contato com a bola, não era correr, dar pique não era comigo, mas eu fazia, mas não era um dos melhores não, mas lá eu tinha que mostrar. Pô, a gente tem que se adaptar. Estou num país diferente, tem que comer um macarrão, eu vou comer, não tem problema. Ah, é o risoto italiano, ‘bora’… E foi o que aconteceu. Ciumeira é muito grande, tive muito problema no início, mas foi superada em prestação do dia a dia, no serviço. Fui lá e o que tem que fazer tem que fazer, e vou fazer muito bem. E não tinha como, aí eles têm que  bater continência; pô, o cara veio de outro país, não conhece ninguém, não sabe falar italiano, não sabe isso, não sabe aquilo. É por aí, acho que o vencedor, em qualquer situação, vai e encara como se estivesse em casa, e o Napoli se tornou pra mim minha casa, tanto é que eles têm muito carinho. Eles falam assim: “Pô, tu não é brasileiro, você é alemão…”. Treinava todo dia, fazia isso, fazia aquilo. “Pô, não é pra fazer? O sistema não é esse?” Eu vim pra fazer isso e pra vencer. Eu saí em 93 até hoje eu saio lá na rua com muita dificuldade, porque os torcedores são malucos por mim. Isso é maravilhoso.

Os estrangeiros formavam algum tipo de grupo, até por conta dessa dificuldade lá fora?

Não é que formavam, é o natural, eles se conhecem, jogaram contra, já se enfrentavam em categoria de base, eles subiram, aí um foi para um time, outro foi para outro. Então, todo esse sistema é normal dentro do futebol, aqui no Brasil você se relaciona melhor com um, melhor com o outro, no próprio São Paulo tinha três ou quatro com quem eu saía toda hora, mas não é porque não se relacionava com os outros, eram com quem eu tinha mais papo. Era o papo de quatro ou cinco e a gente se dava super bem. “Pô, vamos tomar uma cerveja?”, “Ah, vamos tomar uma cerveja”. Ah, o cara quer ir pra Igreja, o outro vai pra um restaurante, o outro vai pra uma pizzaria, enfim, tem pessoas com quem a gente tem um pouco mais de afinidade. E na Itália não era diferente. Então não é que formava grupinhos, eles conviviam, tinham um convívio deles lá, tinham já a intimidade deles. As esposas já se conheciam, não tinham esse relacionamento. Até pegar esse ritmo foi muito difícil, mas desistir nunca nem me passou pela cabeça. O primeiro mês dá muitas saudades, “vambora”, depois vem o segundo, terceiro, daqui a pouco é final do ano, tô voltando pro Brasil pra passar quinze dias de férias e tô voltando de novo. E foi assim… É mais o relacionamento, porque eles se conheciam há muito mais tempo, eles estavam me conhecendo, não sabiam meus costumes, meu dia a dia. Foi legal, foi bom.

Careca recebe homenagem da CBF durante coletiva antes do treino no Estadio Pituacu, em Salvador, Novembro, Segunda-feira 16, 2015. A selecao enfrentara o Peru, dia 17, pelas Eliminatorias da Copa 2018. Foto Andre Mourao/Mowa Press
Careca recebe homenagem da CBF. Foto: André Mourão/Mowa Press.

E ao retornar para o Brasil, depois de dez anos fora, você teve algum tipo de dificuldade na readaptação? Muita coisa havia mudado?

Apesar de não ter internet na época, se falava muito pouco no celular, e vinha uma vez ou duas vezes no máximo, poucos dias por ano no Brasil, mas a gente estava sempre se falando, e vendo noticiários, enfim, não tem como você voltar para o seu país, pra sua cidade, aonde você praticamente foi criado. Não tem como você rever os amigos, alguns amigos já mais gordinhos, outros mais velhos, com mais cabelos brancos. É claro que aquele que estava morando aqui não mora mais, mudou para outra cidade, mas é fácil de a gente se achar novamente, sem problema nenhum. Às vezes, lógico, você está no Japão e os caras não jogam um pedacinho de papel no chão, espera o sinal fechar para os pedestres. Você olha três quilômetros, não vem um carro, não vem nada, eles esperam abrir, não atravessam. Se estiver atravessando é brasileiro. Essas coisas a gente sente bastante, de disciplina. Vamos supor: Campinas, São Paulo, para o interior, cara abrindo o vidro do carro e jogando coisa pra fora, isso é um absurdo. Latas de cerveja, é um absurdo, não existe. No Japão essa disciplina existe. Toco de cigarro no chão não existe. Essas coisas a gente sente bastante. Mas, enfim, é bom voltar para o país de origem.

Careca, com base na sua vida, tem alguma lição, alguma mensagem, algum fato que você gostaria de deixar pra gente?

Não, eu acho que mensagem é não desistir nunca, eu tiro como um espelho, como uma referência, meu pai que foi criado no orfanato e foi buscar o sonho dele com muita dificuldade. Não conheceu o pai, acredito que deve ser algum português que veio e se aventurou com a minha avó, e aí nasceu meu pai. E meu pai nunca desistiu  de realizar o sonho dele e eu acho que é isso aí, não desistir nunca, jamais. É buscar sempre o sonho, o objetivo, acho que isso é maravilhoso, não precisa de mais nada. Essa é a motivação maior que a gente tem buscar sempre o dia de amanhã e buscar sempre o melhor, sempre o lado positivo, pensando sempre positivamente.

Tem alguma indicação de jogador que você faria pra gente… “Ah, procura o fulano que é bacana, acho que ele daria um bom relato também…”?

Olha, muitos têm histórias fantásticas. Vampeta é um cara muito divertido, tem muitas histórias dele que também saiu lá do interior da Bahia. Zenon tem uma história legal também, que veio lá de Tubarão, veio pro Guarani, foi campeão aqui já com uma certa idade, 20 e poucos anos, chegou com 26, 27. Foi pro Corinthians também, é um ídolo que é um cara também interessante…

E mais com esse perfil de quem atuou bastante tempo fora, que nem você?

Pô, sabe uma pessoal legal que tem uma história, que foi pra Holanda depois foi pra Itália…O Vampeta tem essa passagem… Antonio Carlos também, que está no Pão de Açúcar… Jogou, esteve na Itália, ganhou títulos pra caramba… Esteve na Itália, foi pra Turquia, foi pro Japão, jogamos juntos… Uma história legal também. Pô, o próprio Oscar também tem uma história bacana… O Oscar saiu daqui e foi pro Cosmos, o Cosmos naquela época pô, eu era maluco, era só ‘bam bam bam’, não dava pra jogar contra eles, era uma história assim legal…Teve uma experiência ali e depois ele foi para o Japão… O Ramos vive no Japão, brasileiro mais japonês. Fala japonês, escreve, legal esse cara. Ele vem pra cá, mas é muito difícil.

Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Marcel Diego Tonini

É doutor (2016) e mestre (2010) em História Social pela Universidade de São Paulo, sendo também bacharel (2006) e licenciado (2005) em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP - Campus de Araraquara). Integra o Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO-USP) e o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (LUDENS-USP). Tem experiência nas áreas de Ciências Sociais e História, com ênfase em Sociologia do Esporte, Relações Étnico-raciais, História Oral e História Sociocultural do Futebol, trabalhando principalmente com os seguintes temas: futebol, racismo, xenofobia, migração, memória e identidade.

Leia também: