14.1

Careca

Marcel Diego Tonini 15 de janeiro de 2016

A entrevista faz parte do projeto Memórias dos boleiros: histórias de vida de atletas e de integrantes de comissões técnicas brasileiras que atuaram no exterior. Esse projeto foi fruto de uma parceria entre LUDENS-USP, Museu do Futebol e o portal Ludopédio.

Esse projeto tem como proposta reunir as histórias de vida de jogadores de futebol e de integrantes das comissões técnicas que tenham atuado no exterior. Ao optarmos pela história de vida, teremos acesso a uma série de discursos até então pouco investigados. Isso pode ser verificado quando se recorre à história do futebol e se percebe que existe uma história que é considerada “oficial”. Essa pesquisa será uma forma de ampliar discussões sobre o futebol a partir da história de vida dos jogadores e integrantes das comissões técnicas. A história oral será o método adotado para a construção de um diálogo com o referencial teórico das Ciências Humanas, mais especificamente a produção da Antropologia, da História e da Sociologia. Por meio da história de vida, ainda será possível registrar memórias, histórias e experiências dos sujeitos mencionados, além da criação de um banco de vídeos com as entrevistas realizadas de modo a constituir um acervo para preservar a elaboração de tal memória, quer se refira de modo restrito à carreira dos mesmos, quer, de modo geral, ao futebol brasileiro.

 

Careca no dia da entrevista. Foto Marcel Diego Tonini
Careca no dia da entrevista. Foto Marcel Diego Tonini.

 

 

Careca, gostaríamos que você contasse um pouco da sua vida, desde as suas origens lá em Araraquara, ida para Campinas, sua fase no exterior, como é que você foi para lá.  Fique à vontade para contar um pouco da sua trajetória…

Eu venho de uma família de ex- jogador, meu pai também jogou futebol. Meu pai nasceu no Guarujá, foi criado na cidade de Santos, num orfanato, que a mãe na época não tinha condição. Teve ele numa dessas aventuras da cidade portuária, onde teve ele e mais uma irmã, e não teve essa felicidade de conviver muito com a mãe e nem conheceu o pai. Mas ele dentro do orfanato foi buscar um sonho que era jogar futebol, como todo menino no Brasil que nasce e já ganha de presente uma bola, e ele não foi diferente. Mesmo com algumas dificuldades, sendo criado em orfanato, mas foi buscar um sonho. Teve uma oportunidade de sair do orfanato com uma família do interior de São Paulo, ali em Bauru, e no crescimento dele teve a oportunidade de jogar ali no BAC, que é um time antigo lá de Bauru e teve a oportunidade inclusive de começar ali profissionalmente, onde jogou inclusive com Dondinho, falecido pai do Pelé, então é um sonho que ele conseguiu, foi buscar e jogou. Passou pela Ponte Preta, em Campinas, Uberaba, Prudentina, Comercial da capital, enfim, vários clubes e terminou na ADA em Araraquara, que era um time bastante antigo, tradicional em Araraquara, não existe mais hoje. Hoje existe só a Ferroviária. E ali começou, aonde eu nasci.

Nasci no dia 05/10/1960, ali no bairro do Carrão, aonde fui criado, um menino normal das peladas de rua, das escolas, várias vezes sendo assim repreendido, chamada a atenção dos meus familiares porque eu queria mais jogar bola do que estudar, mas tive uma infância muito bacana, muito de moleque mesmo, jogando essas peladas de rua, no asfalto. Quantas vezes eu fui praticamente de um pé calçado e o outro de chinelo curativo, no dedão que tinha chutado o chão do asfalto, coisa de moleque, com liberdade como antigamente todas as cidades na época eram assim, de interior. Em 1976 eu tive a primeira oportunidade de vir pra Campinas e fazer uma avaliação, peneirão, vamos dizer assim, por intermédio de uma pessoa que tinha passado no Guarani, ele já é falecido, o Creca, ele era um observador do Guarani, me trouxe juntamente com o Paulo César, o PC, que é hoje treinador de futsal, teve uma história também brilhante dentro do futebol, principalmente no futsal. Fiquei fazendo avaliação, uma semana, duas semanas, na terceira semana fui reprovado, depois de mais de mil, mil e quinhentos meninos, que as vezes tinham a oportunidade de cinco minutos, as vezes dez minutos e eu tive o meu tempo também lá de cinco, dez minutos. Fui bem no primeiro treino, fiquei a segunda semana e na terceira semana assinei um contrato voltando pra casa só pra pegar a assinatura dos meus pais aonde eu consegui ficar e não ter um retorno precoce, que era um desafio pra mim, meu pai também jogou futebol, mas também não teve muito sucesso no lado financeiro, não tinha possibilidade nenhuma de ser grande nesse lado financeiro e pra mim sempre foi esse desafio. Minha mãe não queria que eu viesse, queria que eu estudasse, eu disse que eu ia estudar, mas que eu queria realizar esse sonho. E aí começou.

Eu fiquei o período de 76 todo na categoria infantil, que seria ali o Sub 15. Em 77 já fui logo pro Sub 20, pulei uma categoria que seria o Sub 17  e com dezessete anos já concentrando com o time principal. Em 78, ainda com dezessete anos, fiz o primeiro contrato profissional e fui inscrito no Campeonato Brasileiro, quando realizamos um sonho, batemos grandes clubes, aqui e fora de Campinas, e nós fomos campeões brasileiros, um título inédito, onde fui até artilheiro juntamente com o Zenon, treze gols, fizemos um campeonato espetacular, maravilhoso. Aí começou. Vieram vários convites, mas continuei dentro do Guarani, a gente tinha um projeto, tivemos Libertadores, não fomos assim tão felizes, mas tivemos duas participações em Libertadores, fomos campeões da Taça de Prata também  em 81, já com uma outra geração. Não com essa de 78, que era Renato, Zenon, Bozó, Capitão, Zé Carlos, Edson, Gomes, Mauro, Miranda. E essa de 81/82 foi uma outra geração também muito interessante com o Lúcio que tinha jogado na Ponte Preta, Jorge Mendonça, Ernani Banana, Angelo, enfim jogadores também de muita qualidade. Chegamos a ser campeões dessa Taça de Prata, Vice Campeão Brasileiro também, perdemos pro Flamengo e foi assim um período muito bacana, porque foi uma iniciação muito rápida, uma cidade que ficou maluca pelo futebol, pela rivalidade entre Guarani e Ponte, Ponte e Guarani, e o time se superando, já no meu primeiro ano fazendo os gols importantes e sendo Campeão Brasileiro.

Para mim foi muito importante esse início, devo muito ao Guarani. Teve depois, na sequencia, a oportunidade em 1983, logo depois de uma tristeza. Ainda no Guarani, fui convocado pelo Telê Santana e que foi a primeira convocação em termos de Copa do Mundo. Com 21 anos, fiz toda a preparação, dois meses de preparação, de empenho, de dedicação, mas 3 ou 4 dias antes de uma estreia importante que foi contra a Rússia, num domingo, me machuco, tenho um estiramento violento, fiquei três meses parado, fora de qualquer atividade esportiva, tive que voltar um pouco mais cedo. Infelizmente voltei e o time estreou na quinta, eu voltei na quarta-feira, não aguentei ficar com o grupo. Torci bastante, mas infelizmente chegamos aonde chegamos e fomos eliminados ali naquele jogo complicado, tomamos alguns gols que não poderíamos tomar, perdemos, faz parte do futebol, perdemos pra Itália e fomos eliminados.

E no início de 1983 me transferi, me apresentei no São Paulo e foi um desafio muito interessante, uma outra estrutura, um clube com uma estrutura monstruosa já na época em 83, hoje é melhor ainda com certeza, mas foi uma experiência muito positiva, um grande desafio de substituir um goleador que é o Serginho Chulapa, que tinha ele sido acabado de ser transferido para o Santos. Tive algumas dificuldades pela cidade, pela adaptação, os primeiros meses, mas também consegui fazer quase uns cinco anos de São Paulo, de vários títulos importantes, vários gols importantes, fui artilheiro, Campeão Paulista, Campeão Brasileiro, enfim, uma experiência muito positiva pra mim porque aprendi muito. Não só por comportamento, da convivência dentro e fora do campo, São Paulo te ensina, te passa esse tipo de coisa muito interessante, apesar de já com 23 anos, jovem, bastante jovem, essa passagem no São Paulo até 87 de uma experiência que me ajudou bastante.

No meio do ano de 87 me transferi pro futebol italiano, foi uma experiência e um sonho também, fui buscar um sonho… De realizar o sonho de jogar no melhor, pra mim no melhor campeonato do mundo na época, ainda continua sendo muito competitivo nos tempos de hoje. Fui jogar e quis jogar do lado do Maradona que pra mim foi um desafio muito grande também, muitas pessoas falam assim ‘Pô, é  muito simples, muito fácil jogar ao lado do Maradona porque ele é um gênio”. Digo sempre nos bate papos que é muito mais difícil jogar ao lado dessas pessoas porque essas pessoas são muito diferenciadas, estão pensando seis meses, um ano na frente, tem ações que você tem que estar muito bem preparado pra tentar acompanhar, porque são pessoas espetaculares. Ela está aqui mas ela está pensando o que ela vai fazer daqui seis meses, e dentro de campo não era nada diferente. Fui pra realizar esse sonho, foram seis anos, nós jogamos 4 anos, mas foram seis anos de Napoli, foi espetacular. Pra mim essa época, de 87 até 93 foi muito bacana, foram momentos que nós curtimos juntos, fora e dentro do campo, somos amigos até hoje, amigos italianos que a gente se fala direto. Foi um campeonato bastante difícil, bastante complicado, você tem que estar assim muito bem preparado para você agüentar um ritmo que é um ritmo bastante acelerado, é velocidade, é muita força é muita potência, e tecnicamente é um campeonato muito bom.

Fiquei ali até 1993 e naquele ano me transferi para o futebol japonês, que era um futebol também que era  muito interessante, mas já tinha muita coisa para fazer. É claro que ali já tinha gente fazendo um trabalho diferenciado, o próprio Oscar que já estava ali, que foi o capitão de 82, zagueiro que jogou no São Paulo. O próprio Renato Pé-Murcho estava fazendo um trabalho. O Zico fez um grande trabalho de reformulação, estruturou todo o Kashima Antlers, fez o time crescer muito em todos os sentidos, dentro e fora do campo, estrutura, jogadores. E eu fui  para uma missão também muito  parecida com essa aí, vamos dizer, quase impossível, de ensinar jogadores que estavam começando, dividindo o dia a dia deles, ou seja, o emprego deles na fábrica e o segundo, diria nem emprego, mas talvez um divertimento deles, jogar pelada, que era esse compromisso com Kashiwa Reysol, que eu fui pra fazer esse trabalho, tinha um contrato de quatro anos, cheguei já em 93 com a grande possibilidade de subir porque o time estava na segunda divisão e montamos, montamos o time com alguns outros brasileiros que ali estavam, estava o Ailton, estava o Régis, estava o Nelsinho, o Wagner Lopes e tentamos modificar totalmente. Não tinha roupeiro, a gente não tinha gente que lavava a roupa, gente que limpava. Falei pô, pode parar, complicado. Eu vi no futebol mais fora do Brasil, fui pra Itália, mas a estrutura nós temos que mudar pra começar já lá do centro. Começamos, pegamos daqui um menino, o Jairo, que foi um roupeiro na minha época do São Paulo, convidamos ele, já foi pra lá, começou a arrumar tudo, a separar. A gente treinava lá, o pessoal treinava com um calção branco, outro preto, outro azul, não existe isso, desordem total. Aí começamos a organizar, o Zé Sérgio ali estava como auxiliar e passou a ser treinador, tinha o Bebeto Freitas que foi preparador físico, trabalhou também no São Paulo, ele nos ajudou bastante a estruturar toda essa programação no ano todo porque eles treinavam muito pouco e deu muito certo.

No primeiro ano, nós não conseguimos subir no primeiro torneio que teve, que foi uma Copa Nabisco, mas chegamos em quinto, se a gente chegasse em quarto lugar a gente tinha esse convite pra ir pra J. League, que é a primeira divisão, mas infelizmente não conseguimos, amargamos a segundona em 94, mas fizemos um trabalho maravilhoso e subimos. O time se encontra até hoje na principal, sob o comando do Nelsinho Batista, a estrutura é muito bacana também, tem um estádio legal, dois estádios praticamente na cidade de Kashiwa, uma cidade de 340, 330 mil habitantes, e enfim, foi uma experiência muito bacana, porque, problema de língua, ali no convívio, ali a diferença eram os japoneses, não eram os estrangeiros, a gente tinha cinco estrangeiros e só podiam jogar três, então esse foi um trabalho, um dos trabalhos mais interessantes, porque nós tivemos, eu principalmente gosto, de fazer muito grupo, de fechar o grupo e trazia os japoneses para dentro da minha casa, a gente armava um churrasquinho pra fazer, tomava uma cerveja juntos, mas no outro dia era pau, tinha que treinar e eles não tinham muito esse objetivo de chegar numa seleção japonesa ou de se transferir para uma Europa, jogar num grande campeonato, eles não tinham nada disso, então é um trabalho de formiguinha, uns tinham que pegar dia a dia, cobrar muito deles. E muitos deles focaram, tanto é que muitos jogadores serviram a seleção japonesa, um ou outro jogador que saiu na minha época, que jogava comigo e que chegou a jogar num time da Espanha, dois times na Espanha, então foi uma experiência positiva e bacana que os caras entenderam esse nosso objetivo, essa filosofia e foi bom para eles, bom para a família deles, constituíram família, hoje tem filhos, enfim eles aprenderam bastante, o povo japonês é muito determinados, é muito aplicado e  entenderam rápido esse objetivo, de que a gente estava ali não pra brincar, não era só para ganhar o dinheiro, a gente era muito bem pago, mas nós tivemos esse período todo pra passar alguma coisa pra eles, meu objetivo era esse aí, de passar e de que eles aprendessem e eles aprenderam muito bem, hoje tem vários jogadores  no mercado europeu, mercado forte, jogadores japoneses que são muito bem pagos, então bacana isso, tem outros treinadores que passaram lá como Nicanor de Carvalho, que ensinou bastante os japoneses, aprenderam muito, tem uma história brilhante também, o Carlos Alberto Silva, enfim vários treinadores que ajudaram essa escola.

E voltei para o Brasil em 1996, finalzinho de 96, quase dezembro praticamente encerrando a carreira, 36 para 37 anos. Ainda tive uma passagem no Santos, afinal,  todo mundo em casa é santista, “Pelecista”, vamos dizer assim na época aí do Pelé, de Edu, Pepe, de grandes jogadores que ali passaram. Enfim, fui realizar esse sonho, joguei ali por 3 meses, disputei mais um Campeonato Paulista, uma final de Campeonato Paulista, e mais pra realizar um sonho também do meu pai, e aí voltei pra Campinas. Cheguei a fundar o Campinas Futebol Clube, teve né na B3, B2, B1, chegamos a estar até numa A3, apesar com muita dificuldade de estádio, primeiro ano foi muito difícil, chegamos a jogar em Pedreira enfim, aí conseguimos um lugar aqui em Campinas, mas depois, coisa de três, quatro anos, acabamos vendendo pra Barueri, o Campinas foi pra lá, e hoje o Campinas não existe mais, porém foi uma experiência legal como dirigente, positivo, talvez teríamos que agir um pouquinho mais,  deixar o coração de lado, porque pô, é complicado.Você tem que ser duro pra lidar com a molecada, não dá pra dar muito mole, pois a molecada se aproveita, mas foi assim uma experiência bastante positiva. Ainda cheguei em 1999 no Sul, lá em Porto Alegre, o seu José, o Zequinha, veio fazer uma experiência para jogar um playoff, foi uma experiência positiva, muito rápida, mas muito positiva, porque o objetivo era subir o time e subiu pra primeira do Gauchão, aí depois eu parei, aí chega de futebol, com todos os probleminhas de joelho, de pé, de artrose, jogo ainda umas peladas, mas pra se divertir, mais pra brincar.

E nos últimos tempos você foi comentarista também da Rede TV…

Tive uma experiência bacana depois que eu parei, fazendo muitos eventos corporativos com grandes empresas. Tive essa experiência legal também com a Rede TV, falando e comentando o Campeonato Italiano aonde joguei seis anos. Fiz com o Sílvio Luís, com o Bruno, filho do Flávio Prado, uma experiência bastante positiva, deu pra me divertir bastante com o Sílvio, porque nós somos amigos desde a minha época aqui de Guarani, de São Paulo, tenho o maior carinho, maior admiração. Sabe muito, tem quase 80 anos, ele dá show na transmissão, é maravilhoso, eu tenho o maior respeito por ele. Depois eu saí, fiz ainda comentários da Olimpíada no Terra, via internet, e também foi uma experiência bastante positiva.

E você tem algum plano para o futuro? Quer ser dirigente, quer continuar como comentarista…

Olha, eu tive alguns convites agora até para treinador, mas eu não sei se eu teria muita paciência não. A gente tem um projeto, vamos ver se talvez próximo ano, até junto com o Oscar. Nós somos muito amigos, ele é padrinho do meu filho, a gente convive bastante, ele já teve a experiência  como treinador, depois foi como empresário. É um meio complicado demais, se você infelizmente não tiver esquema, você não entra. O futebol hoje ele está envolvido em muito esquema desse tipo, e infelizmente de baixo nível, então não são todas as pessoas que conseguem entrar, principalmente as pessoas sérias, as pessoas  que trabalham pra essa finalidade de fazer um trabalho sério. Às vezes fazem as transações,  fazem  coisas, os caras não te pagam comissão, enfim são impressionantes os dirigentes, mas enfim têm dirigentes bons, empresários bons como têm dirigentes ruins e empresários também de fazer uns ‘cambalachos’. E o Oscar tem essa ideia, a gente vai começar a por no papel até o final do ano essa ideia de voltar quem sabe a trabalhar juntos. Eu e ele trabalhando juntos, quem sabe? Tem alguns projetos aí,  vamos ver se dá certo. Vamos ver porque também no Brasil é complicado pra você trabalhar, pessoal não deixa dar um tempo assim grande, claro que não só aqui, mas no mundo todo é em cima de resultados, não adianta você trabalhar bem e não ganhar, não tem como. Mais fácil cair o treinador do que derrubar trinta jogadores, complicado, mas quem sabe  a gente devagarzinho, consciente, se tiver uma oportunidade, a gente está muito afim aí de passar por essa experiência de fazer essa dobradinha em campo, quem sabe dá certo…

Você comentou sobre esses desafios aqui no Brasil. Você, que viveu tanto tempo fora, quais diferenças você consegue perceber entre estruturas de organização, de campeonatos, de clubes…

Olha, não muda muito não. Nós que acompanhamos muito bem temos o maior respeito pelo espanhol, pelo francês, o italiano, mas lá também nós tivemos problemas e que foi público, que foi divulgado, dirigente comprando a arbitragem, escândalos. Esse dirigente foi meu dirigente no Napoli, o Luciano Moggi, e foi constado, foi pego em gravações  de telefone, enfim, escândalo absurdo, isso não é futebol, não existe. É por isso que eu digo, não é só o empresário, não é só o dirigente, ou não são só os jogadores que são ruins não, são pessoas boas, mas tem muita gente ruim nesse meio, eu acho que esporte não é não é por aí, eu acho que você tem que ganhar jogando. A gente sempre ouvia em alguns jogos: ‘pô deixa eu empatar, deixa eu fazer um gol agora..’, isso não existe, acordo para mim nunca existiu, nunca existiu. Nós vimos não só com os dirigentes desse tipo de compra de resultado como querendo comprar jogadores. Nós tivemos, preciso recordar eu não lembro quanto tempo faz, inclusive foi com o Tuta, recentemente quando o Tuta esteve no Venezia, que ele fez um gol e saiu vibrando, os caras foram e cobraram, chegaram a quase dar porrada nele que não era pra fazer o gol, quer dizer, tava acertado o resultado, isso não existe no meio do futebol na minha cabeça, então eu tive toda essa experiência lá e graças a Deus nunca fui envolvido e nem chegava perto. De insinuar alguma parceria ali, algum acerto comigo, nunca tive, graças a Deus, nunca tive problema nenhum, não tenho rejeição com nenhum clube de Brasil, de fora no exterior, todos eu tenho porta aberta por esse comportamento que eu sempre tive. Muitas estruturas aqui no Brasil são superiores à que eu tive no Napoli na minha época  de 87. Hoje tem um CT diferenciado, espetacular que é um CT novo, coisa de quatro, cinco anos, mas nós tínhamos um Centro de Treinamento, era um campo, a gente treinava o ano todo, tinha goteira  no telhado. Um absurdo essa coisa que a gente vê, lógico no primeiro mundo, não sei se é lá ou se é aqui o primeiro mundo, porque as estruturas aqui são muito boas. É claro que na minha época do Guarani a gente tinha dificuldade, tinha, mas a gente tinha uma estrutura boa, fui pro São Paulo  completamente diferente hoje é muito superior a muitos clubes daí de fora. Tivemos no início algumas dificuldades porque você treinar o ano todo no campo, você treina ali tem a categoria Sub – 20 que às vezes treinava também, então às vezes final do ano tava o ‘rapadão’ e tinha que treinar, não tinha outro, não tinha como treinar em outros lugares, aqui ainda você tem essas opções, o time as vezes sai, pega emprestado de um clube municipal, você se vira, mas lá não, lá você começava e terminava num campo só. Mas hoje tem quatro, cinco campos no CT lá do Napoli e é uma estrutura maravilhosa em termos de dirigente, de suporte, de presidente, tive alguns presidentes lá, tive o Corrado Ferlaino, que praticamente ganhou tudo com Napoli, que trouxe o Maradona depois do Barcelona, foi muito ousado trazer o Maradona do Barcelona e para uma cidade maluca por futebol que são os napolitanos. Já era uma média na minha época de 75 mil, 78 mil pagantes, então é coisa maluca, então foi muito ousado em trazer o Maradona na época, ele veio por um dinheiro absurdo, mas o retorno foi fantástico, foi muito rápido, porque pra gente bastava ter o torcedor do nosso lado dentro e fora do campo. A gente ia jogar fora, tinha no mínimo oito, dez mil torcedores napolitanos que estavam espalhados na grande Itália ou que estava na cidade ou que vinha de trem, então o pessoal acompanhava bastante. Jogava fora ou em casa, era quase a mesma coisa.

E com relação às diferenças culturais entre Brasil, Itália e Japão?

Então, talvez de mais forte no Japão. Na Itália lembra muito no lado da parte da culinária, tem muita coisa. É claro que o nosso macarrão aqui talvez fosse mais no domingo, no domingão da macarronada da mama, o resto é arrozinho com feijão, mas lá tem o risoto, enfim  aos poucos nós fomos jogando um pouco e fazendo um arroz com feijão pra eles também começarem a sentir um pouco essa nossa comida. Quantas vezes eu fiz feijoada em casa, que eles gostavam bastante. Mas a comida é assim algo muito próximo. A língua também, sem grandes dificuldades coisa de dois, três meses, você convivendo com a ajuda do intérprete, rapidamente você pega. É claro que tem a cultura deles também em cada cidadezinha, em cada paísezinhos’ deles lá, que eles chamam como  ‘paísezinhos’, que são as cidades. Tem o dialeto deles que é muito complicado, a língua deles, da cidade, é complicada, é difícil,  o próprio napolitano para você falar é complicado, mas o italiano, de modo geral, a língua correta, ela não é difícil. Então não tive assim dificuldade, não tive grande dificuldade. Tem o lado histórico deles, de monumentos que é espetacular, que eu curto bastante. No Japão, mais pela língua, não conseguia nem ler, porque é muito difícil, o vocabulário é absurdo e enfim, foi uma experiência assim, bem bacana, porque apesar de ter muitos brasileiros que formavam nossa equipe, a gente tinha os intérpretes, a gente tinha que se virar um pouquinho quando saía também pra desligar um pouco e aí passava vergonha. Era difícil pra você falar alguma coisa, as vezes pegava o trem errado, mas a gente já descia na próxima estação e pegava ele ao contrário, enfim, mas foi uma experiência legal. Alimentação também. A gente fala assim: “ah não, a  comida japonesa  é legal”, mas a comida dos restaurantes japoneses é todo montadinha. O deles, do dia a dia completo, tem muito bentô, muita coisa muito forte  e aí é complicado. A gente tinha que ir buscar o arrozinho com feijão, uma carne, e encontrava, porque tem várias cidades lá com uma quantidade muito grande de brasileiros, então você encontrava até mercado que vendia produtos brasileiros. A carne vinha da Austrália, o corte era muito parecido, igual picanha, fraldinha, maminha, essas coisas todas que a gente tava acostumado comer aqui, costela. Carne seca vinha do Brasil, mas carne de corte vinha mais da Austrália que era mais perto ali do Japão, então entrava no mercado japonês com um preço bom, porque preço da carne do boi japonês é muito cara, tem muita qualidade também a carne, mas foi uma experiência muito bacana, muito positiva. Tanto é que tenho três filhos, meus três filhos estudaram  na escola municipal japonesa, que foi também uma experiência muito legal, muito bacana, eles lembram muitas coisas, não dá pra ficar falando direto, mas os três se viram muito bem, e foi uma experiência muito positiva.

Quando você viajou para os dois países já era casado?

Já. Eu casei em 82, no próprio mundial da Espanha, e fui casado, fui já com os três filhos para a Itália. O Thiago que é o mais novo estava lá com seis meses, a do meio a Helen com um ano e alguma coisinha, porque minha esposa estava amamentando já ficou grávida, e a Aline que tinha três anos e seis meses mais ou menos. Foi tudo escadinha. Foram os três comigo para a Itália, foi sufoco no início até arrumar uma acomodação, uma casa, um apartamento, enfim, ficamos três meses em um hotel com três crianças, muito complicado principalmente para a mãe, que a gente não parava em casa, ia treinar, só voltava tarde, viajava, mas foi assim uma experiência legal. Tem o Gerardo também, o Gerardo Landulfo. Escrevia para o Guerim esportivo, chegou a escrever pra Placar também, foi uma pessoa que me ajudou, de grande família tradicional italiana, foi até meu intérprete. Foi lá, me ajudou bastante, até eu arrumar um apartamento. Tenho o maior carinho por ele, me ajudou muito. E a molecada  depois começou a ir à escola, aí começaram a se virar, com mais facilidade. Tiveram um pouquinho de dificuldade também na época que chegaram no Japão, completamente diferente, que eles estavam sendo alfabetizados tudo na língua italiana, e aí foi pra esse desafio aí no japonês. Acho que foi bacana, uma experiência bastante positiva.

E o relacionamento com a cidade ? Vocês se relacionavam pouco? Era mais com seus familiares?

Não, é claro que não dá pra ter só entre o grupo só de jogadores ou família dos jogadores, a gente tinha relacionamento  na Itália, napolitana, alguns brasileiros também que ali se encontravam que eram casados com italianas ou vice versa. Nós tivemos vários amigos em Napoli que nos ajudaram bastante no início. O próprio napolitano. Aquele que aonde você comprou um carro, aonde você ia trocar um pneu, enfim, são pessoas ali normais, simples, convivia com eles direto, às vezes passava pra tomar um café com eles, tinha uma folga de um horário para o outro e eu passava simplesmente lá para ver se estava tudo bem na oficina deles lá, oficina mecânica, enfim, e pra tomar um café com eles. Isso era uma alegria e uma satisfação muito grandes pra eles porque eles não imaginavam, não tem esse tipo de relacionamento com os jogadores italianos, dificilmente, e a gente como estrela maior e não poder nem sair na rua porque o torcedor não deixava você sair na rua. A gente pra ir comprar alguma coisa tinha que ir escondido na hora que estava fechado o comércio, então era coisa absurda de cobrança e a gente se enfiava no meio de boné, entrava na oficina e ficava lá, passava meia hora tomando uma cerveja, tomando um café  e contando histórias nossas, porque se não era só jogar, aí fica muito pesado. No Japão nós tivemos também algumas famílias que nos ajudaram com os meninos na escola, foi também importante, assessorando pra gente, pras mulheres irem ao hospital, levarem as crianças. Tinha uma intérprete, mas também a gente tinha outras amigas. Tinha ‘Mitsuo’, uma senhora, que o marido dela trabalhava no clube, que foi uma companheira nossa, das nossas mulheres, fantástica, nos ajudou bastante. Até hoje ela liga, a gente se fala, os filhos dela também eram todos pequeninos, então a gente saía, fazia aqueles piqueniques de japoneses, nos bosques, foi muito assim, é povo. Eu sempre tive essa experiência, sempre me dei muito bem com japonês  e sempre tive essa experiência de conviver mais intensivamente. Eu estava voltando praticamente para o Brasil em 93, e o Zé Sérgio, quando eu já estava lá, me fez esse convite, se eu não gostaria… Eu falei “Pô pra quando, pra amanhã?”  . Ele falou: “Mais ou menos, temos que acertar o contrato.” Eu falei “Pô, nós vamos acertar porque eu tenho um sonho de passar essa experiência”, porque eu já tinha um patrocinador também que na época, era até a Mizuno, que estava chegando ao Brasil, na época de São Paulo, em 1985, que eu fui um dos pioneiros a construir essa chuteira, essa marca, e até hoje é sucesso. Então foi uma experiência bastante positiva no lado japonês.

E quais outras motivações para você sair de um campeonato que era o principal, ou um dos principais do mundo, para ir jogar lá no Japão?

Olha, eu nunca pus o lado financeiro na frente de nada, mas sempre foram interessantes as propostas financeiras, apesar de que eu estava na Itália, poderia continuar mais. Eu estava com trinta e três anos ainda tinha condição de jogar lá mais dois, três anos tranquilamente, mas eu sempre encarei experiências e desafios assim como motivação maior da minha vida. Quanto mais difícil pra mim era muito mais interessante, eu sempre abracei e sempre me identifiquei. Nunca dei trabalho, nunca pedi um reajuste pra ninguém. Você chega, você faz contrato, daqui seis meses tem um outro que vem ganhando mais. Pô, daqui a pouco o cara tá ganhando mais. Eu não, eu tenho o compromisso, sempre tive. Então, nunca fui assim de arrumar confusão de ser polêmico, nesse sentido não. Eu sempre procurei me dedicar, honrar e cumprir meus contratos. Nunca rescindi nem um tipo de contrato na minha carreira, então é bacana por causa disso, essa experiência de ensinar, de fazer a minha história, ou eu volto tenho história. Volto no Japão nos dias de hoje, depois que eu saí em 1996, e sou reconhecido na rua, então é um negócio muito interessante, muito bacana, é claro, pro pessoal da idade, quarentão, de cinquenta, de sessenta, o pessoal que curtiu bastante esse período, sabia que era um futebol muito complicado, a dificuldade era muito grande de você crescer, orientar e ver o resultado dar certo como deu. Nós tínhamos o Kato, nós tínhamos o Doi. Kato era um meia, Doi era um goleiro, Myojin, o Chin. Tinha mais dois que eu não recordo agora que foram pra seleção japonesa no nosso período, que também davam caneladas pra caramba. Nós fizemos todo o trabalho, não só nosso, de alguns jogadores, mas da comissão, que eles melhorassem e chegassem ao nível de ir pra uma seleção japonesa, então esse é o prazer, felicidade de ter essa missão cumprida, não é só ir lá e buscar o dinheiro dos caras não, de passar coisas boas. Muitos vão lá fazer um contrato e às vezes não jogam nada. Não só jogador, como treinador, e não tem cabeça. Fala assim “Me paga até hoje ou eu vou embora, não tem multa não tem nada”, aí espera ser mandado embora pra receber tudo. Eu acho isso uma vergonha, isso é um mal profissional.

Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Marcel Diego Tonini

É doutor (2016) e mestre (2010) em História Social pela Universidade de São Paulo, sendo também bacharel (2006) e licenciado (2005) em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP - Campus de Araraquara). Integra o Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO-USP) e o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (LUDENS-USP). Tem experiência nas áreas de Ciências Sociais e História, com ênfase em Sociologia do Esporte, Relações Étnico-raciais, História Oral e História Sociocultural do Futebol, trabalhando principalmente com os seguintes temas: futebol, racismo, xenofobia, migração, memória e identidade.

Leia também: