A entrevista faz parte do projeto Memórias dos boleiros: histórias de vida de atletas e de integrantes de comissões técnicas brasileiras que atuaram no exterior. Esse projeto foi fruto de uma parceria entre LUDENS-USP, Museu do Futebol e o portal Ludopédio.

Esse projeto tem como proposta reunir as histórias de vida de jogadores de futebol e de integrantes das comissões técnicas que tenham atuado no exterior. Ao optarmos pela história de vida, teremos acesso a uma série de discursos até então pouco investigados. Isso pode ser verificado quando se recorre à história do futebol e se percebe que existe uma história que é considerada “oficial”. Essa pesquisa será uma forma de ampliar discussões sobre o futebol a partir da história de vida dos jogadores e integrantes das comissões técnicas. A história oral será o método adotado para a construção de um diálogo com o referencial teórico das Ciências Humanas, mais especificamente a produção da Antropologia, da História e da Sociologia. Por meio da história de vida, ainda será possível registrar memórias, histórias e experiências dos sujeitos mencionados, além da criação de um banco de vídeos com as entrevistas realizadas de modo a constituir um acervo para preservar a elaboração de tal memória, quer se refira de modo restrito à carreira dos mesmos, quer, de modo geral, ao futebol brasileiro.

 

Evair. Foto Projeto Memórias de Boleiros
Evair. Foto: Museu do Futebol.

 

 

Evair, por favor, conte um pouco sua história de vida, e comece por onde você quiser…

Podemos começar por Crisólia, Sul de Minas? (risos). Então, eu nasci em Crisólia, no sul de Minas Gerais, uma cidadezinha de quatro, cinco mil habitantes, perto de Ouro Fino, distrito de Ouro Fino, onde eu vivi toda a minha infância. Então, dali eu saí pra fazer teste em Espírito Santo Pinhal, no São Paulo, depois no Guarani e, e foi aí que eu comecei minha carreira.

E com que idade você fez esses testes?

No Espírito Santo Pinhal fui com 13 anos, muito novo, depois aos 14 eu fui pro Guarani, fui no São Paulo, e depois voltei de novo ao Guarani. Então, aos 14 eu comecei a fazer teste, aos 15 eu fui aprovado, e, logo em seguida, começamos a carreira.

E antes de fazer esses testes, como que era sua relação com o futebol? Quais são suas primeiras memórias, suas primeiras lembranças?

A relação com futebol sempre foi muito intensa, porque sempre existiu uma rivalidade muito grande entre Crisólia e Ouro Fino, e essa relação nos levava algumas vezes aos extremos, de uma paixão muito grande, porque, desde criança, o principal brinquedo era a bola. Então, depois de nadar no rio a gente ia jogar bola, depois da escola a gente ia jogar bola, depois de apanhar manga a gente ia jogar bola, então, tudo estava relacionado ao futebol. Eu cresci dentro dessa maneira de vida e aprendi a gostar dessa maneira.

Quem era esse “a gente”? Tinha gente da família?

“A gente” era os amigos, os amigos de infância: Riva, Valdecir, Turdinho, José Luís, Joel, todos da minha idade, que me fizeram trazer um pouco esse espírito de rivalidade, porque eu tinha que ganhar deles, depois a gente juntava pra jogar contra os times de Ouro Fino, tinha que ganhar do pessoal de Ouro Fino, aquela rivalidade crescia, e a gente ia aprendendo, cada vez mais, a conviver sempre com amizade, depois a gente começou a jogar com o pessoal de Ouro Fino também, saia de Crisólia pedalando até Ouro Fino, seis quilômetros de estrada, pra depois jogar, pra depois voltar pedalando, chegava em casa com cãibra, não via a hora de tomar um copo d`água. Então, foi essa relação, mais ou menos, que eu tive com o futebol, com Crisólia, Ouro Fino, com a minha infância.

E como a sua família, na época, lidava com esse seu interesse por futebol?

Bastante normal, pra eles não era nenhuma surpresa, porque o principal objetivo da cidade era justamente esse, era o principal brinquedo, tirando nadar no rio, ir caçar passarinho, roubar manga. Então, no final da tarde era sempre a mesma coisa: ir jogar futebol com os amigos.

E você tem irmãos?

Tenho dois irmãos, Odair e Eloísa, todos mais novos que eu, então eu não tive companheiros familiar. Eu sou  o mais velho de uma família que tem doze irmãos, então eu tinha onze tios de um lado, e tinha mais quinze do outro, entendeu? E eu sou o neto mais velho de todos eles, então eu não tive muita companhia que pudesse estar ali do meu lado, eram só os amigos mesmo, que eu conhecia dentro da cidade.

Tinha alguma coisa de futebol na cidade? Tinha time de várzea?

Sim, a relação era essa, formava-se o time da cidade pra jogar contra os bairros vizinhos. Quando não tinha campeonato montado em Ouro Fino, nós jogávamos sempre torneios e amistosos dentro da cidade, dentro de Crisólia ou ia pros bairros vizinho jogar.

Conte um pouco mais sobre a experiência da primeira peneira…

Na primeira peneira aconteceu o seguinte: Pinhal é caminho de romaria, pra ir pra algumas romarias passava por Pinhal, Crisólia e muita gente ia até Aparecida do Norte a cavalo. E alguns até mesmo a pé. E nesse meio estava Crisólia. E num desses dias que essas pessoas passaram, conversando num bar com uns amigos meus, eu ainda era criança, elas perguntavam: “Ah, tem jogador de futebol aqui?”, “Ah, tem, tem fulano”, “Esse fulano é bom de bola?.” Então, essa passagem foi que ocasionou meu primeiro teste, e eu fui pra Espírito Santo Pinhal fazer esse primeiro teste com 13 anos, era muito novo, logicamente que, tinha que jogar com os profissionais da época lá de segunda divisão de Campeonato Paulista. Logicamente que não iria dar certo, muito novinho, mas foi uma experiência que me fez ter êxito mais à frente.

E você jogava em que posição nessa época?

Eu era meio-campista, eu não exercia ainda a função de centroavante. Tinha a função de jogar no meio-campo, uma função que me fez passar no teste depois no Guarani, e que eu tenho como se fosse algo muito precioso.

Dessa primeira peneira ao teste no Guarani: o que aconteceu entre esses dois eventos?

Ah, teve um ano mais ou menos. Com quatorze anos eu fui fazer teste a primeira vez no Guarani, não fui aprovado porque era época de dispensa no Guarani, época de férias, e não tinha mais ninguém, e eu achei que pudesse voltar pra casa também, como estava todo mundo indo embora, ninguém me dispensou, mas acabou que eu voltei pra casa de uma maneira que tivesse sido dispensado por que ninguém se preocupou também com que eu ficasse. Acabei voltando pra casa, depois fui fazer teste no São Paulo, não passei, foi dito que tinha jogadores melhores. Aí sim, com 14 anos e meio, quase 15 anos, eu fui fazer teste no Guarani de novo já melhor preparado. Esse melhor preparado significa o seguinte: numa cidade pequena, em 1982, a gente não tinha muita instrução do que se deveria ser feito pra estar melhor preparado. Então o que eu aprendi nos outros lugares? Que os meninos tinham mais fôlego, passavam por cima de mim, eram mais fortes, então eu entendi que precisava fazer alguma coisa. Então de manhã, de manhazinha, eu saia correndo de Crisólia a Ouro Fino, e voltava. Isso foi me dando força física, fui ganhando massa, fui ganhando resistência. Quando cheguei pra fazer teste no Guarani eu já estava pronto. Ninguém passou por cima, pelo contrário, eu fiz gol, passei por cima. Estava preparado.

Chegando lá no Guarani, como é que foram suas primeiras experiências por lá?

Bom, talvez seja tudo muito igual os outros meninos. Alojamento embaixo da arquibancada…

Nisso você já estava com quantos anos?

Quinze anos.

E você foi sozinho, sem sua família?

Sem ninguém. Eu peguei o ônibus lá em Ouro Fino e desci em Campinas, tinha uma pessoa me esperando, da parte do Guarani, me levou até o Brinco, me alojou. E dali pra frente eu comecei a seguir aquilo que o Guarani me dizia: dia de treino, folga, aquilo que deveria de ser feito. E daí pra frente eu comecei a fazer o teste.

Em dia de folga você costumava voltar pra onde você ficava?

Não, porque eram duas horas de ônibus, e eu não tinha muita experiência ainda de pegar um ônibus até a rodoviária. Tive que aprender com os meninos que estavam ali, então quando eles iam eu também ia. Meu teste durou duas semanas, só, então foi rápido. Então, logo em seguida eu já fui aprovado, no que eu fui aprovado, aí sim eu tive que ir buscar minha roupa pra continuar de vez.

E o que você fazia no período de folga, junto com essa molecada?

Absolutamente nada. Nós descansávamos muito, porque os treinos eram muito puxados, os treinos eram muito fortes, principalmente pra um menino de quinze anos, eram dois períodos, de manhã e a tarde, todos os dias, normalmente nós tínhamos apenas meio período, nós nunca tivemos o dia todo, então era feito só pra descansar mesmo. E também o recurso financeiro era zero. Então não tinha muito que ser feito mesmo.

Eles não davam ajuda de custo?

Eles davam ajuda de custo sim. Mas a ajuda de custo era muito pouca, às vezes dava pra ir pra casa, comer lanche de noite, mas muito pouco.

E vocês estudavam também?

Todos estudavam, tinham que estudar, alguns treinavam meio período pra estudar a noite, era a única maneira que tinha. E alguns deixavam a escola porque não aguentavam realmente assistir aula, de tão cansados.

Imagino que nessa época tenha começado a se estabelecer os laços de amizade com alguns colegas.

Sim, aconteceu isso. É, nesses momentos você começa a se acostumar com algumas pessoas, a maioria do interior como eu era, como eu sempre fui, e as amizades aconteciam e de repente a gente ia pras casas deles, final de semana. Em um final de semana de folga a gente tinha a oportunidade de acompanha-los, mas era muito raro isso.

Nessa época, você se lembra de alguém que foi mais próximo de você?

Eu me lembro do Marco Aurélio, ele mora em São Carlos até hoje, um dos lugares que eu fui fazer visita, num final de semana que nós tivemos livres, não sei porquê, não me lembro se a gente estava com cartão, machucado, coincidiu de nós dois estarmos… Por ser amigo, convidou pra ir à casa dele, nós fomos, passamos lá o final de semana, mas isso foi muito raro.

E você ficou no Guarani até quando?

De 82 a 88.

E você se profissionaliza em que momento?

Quando chegou final de 84 pra 85 foi quando eu me profissionalizei, foi quando tive a primeira oportunidade no profissional, e acabei sendo profissionalizado nesse momento.

Como que foi pra você? Você sabia que era isso que você queria? “Ah, e agora, eu sou profissional!”. Muda alguma coisa, de responsabilidade?

A responsabilidade começa a existir um pouco mais quando você começa a dar entrevista, quando o torcedor começa a te conhecer, quando você começa a ser cobrado, porque, até então, no juvenil e no júnior, não tem essa cobrança. Então, dali pra frente você começa a se cobrar, você começa a ver seu nome nos jornais, você começa a ser convocado pro profissional, aí você muda totalmente a estrutura, a sua maneira de pensar, porque, no profissional, você já vai pro hotel concentrar, então isso tudo te envolve um pouco mais, você começa a criar vínculos e te criar também aquela responsabilidade de você ter que dar resultados.

Nessa época do Guarani você jogava como meio-campista?

Como meio-campista. Durante três anos da minha vida eu joguei como meio-campista. Depois, quando me profissionalizei, a primeira coisa que o treinador fez foi me colocar como centroavante. Ele entendia, na época, que eu sabia fazer gols, tinha tranquilidade pra sair na cara do goleiro e que o profissional estava precisando de um homem assim, porque o Guarani tinha acabado de liberar o Edmar, que tinha sido artilheiro do Brasil um ano antes, e era preciso reencontrar outro. E, de momento, meu nome estava ali, e ele resolveu me colocar como centroavante. Num primeiro momento foi um baque. Porque, acostumado com uma função, de repente você se torna o cara responsável por fazer os gols, então foi uma responsabilidade muito grande num primeiro momento. Não só o fato de mudar de função incomodava, mas também o fato de se ter a responsabilidade de substituir quem já era artilheiro, então, aquilo ali trouxe um certo desgaste no início, mas depois comecei a me adaptar, percebi que eu não tinha que correr tanto como corria como meia. Como meia, até então, tinha que correr atrás do volante, tinha uma função de marcação, de repente, como atacante, eu tinha que me preparar pra finalizar. Dali pra frente eu comecei a gostar mais dessa função, porque eu não corria tanto e, por outro lado, bastava fazer um gol (risos).  Aquilo, depois, começou a me agradar e a gente foi se adaptando… É que eu treinava tanto que pra mim era fácil. Porque eu entendi que tinha que tirar do goleiro, uns iriam pegar e outros não, então, pra mim era uma coisa que eu estava acostumado a fazer o tempo todo. Então, por isso, parece ser fácil, não é fácil, mas com a repetição, com os treinos… Quando Deus te dá um dom você acaba aperfeiçoando, e eu tinha consciência de que estava aperfeiçoado, porque era todo dia, todo dia aquilo, e era maçante, era desgastante, mas era o que eu gostava de fazer.

Você ficou no Guarani até 1988. O que culminou com a sua saída do Guarani?

Ah, nós fomos vice-campeões paulista e vice-campeões brasileiro. Em 86 nós fomos vice-campeões brasileiro e eu fiz 24 gols, fui artilheiro. Em 88 fiz 19 gols, não tenho certeza, e foi vice-campeão. E, logo em seguida, no ano de 88, quando acabou o paulista, se via a necessidade de trazer outros jogadores e havia o interesse do Atalanta da Itália no meu futebol. E, quando isso aconteceu, o Guarani achou que seria um bom negócio e acabou acertando a minha saída.

E você também achava que seria um bom negócio?

Não, eu nunca achei, eu nunca achei porque, apesar de o salário ser muito melhor, eu ia ter uma mudança muito grande, como foi. Mas não deixava de ser um grande desafio também. O Atalanta estava subindo da segunda pra primeira divisão num futebol de Maradona, Careca, Van Basten, Gullit, Rijkaard, Baresi, então a gente ia ter que enfrentar toda essa gente, e eu não tinha toda a experiência pra isso. Mas, por outro lado, era um desafio muito grande, era muito bom poder enfrentar essa gente toda, então também gerou um ânimo a mais. É lógico que o lado financeiro também contou, contou pro Guarani, tinha que contar pra mim também, então isso fez com que a gente tomasse essa decisão e aceitasse, porque a decisão não foi tomada por mim, foi tomada pelo Guarani, mas eu vi também que o lado financeiro era bom pra mim, e o Guarani colocava a minha saída e essa venda como uma maneira de desenvolver as finanças. Então parecia ser bom para os dois lados.

Você já tinha viajado pro exterior até então?

Eu já tinha viajado para o exterior, mas para fazer amistosos, nós estivemos com o Guarani na Arábia, e o Guarani já tinha disputado Libertadores, então tive a oportunidade de, nessa época, quando fui pra Itália, já ter viajado antes.

Mas para Itália você nunca tinha ido.

Não, para a Europa eu nunca tinha ido, não tinha viajado nenhuma vez para nenhum país da Europa. Só para a Arábia, mas só amistosos rápidos.

Conta um pouco de como que foi essa preparação para ir a um continente que você não conhecia. Como foi a viagem? Como foi com a família? Você tinha algum receio?

Tinha vários receios. A primeira coisa, a língua, não sabia o que iria encontrar. Eu viajei com o Sérgio, ele já tinha jogado na Atalanta, e na viagem ele me foi contando mais ou menos da experiência dele, da passagem dele pela Itália. Quando eu cheguei eu tive um baque muito grande que foi o frio, primeira coisa que me aconteceu, cheguei numa época de inverno, num dia cinzento, com chuva e, na porta da sede do Atalanta tinha cerca de 4, 5 mil pessoas, só pra me ver, então aquilo já mexeu. Quem é que tá chegando, né? Porque o Atalanta estava vindo da segunda divisão, e estava chegando um atacante desconhecido, porque o Guarani não tinha tanta mídia como tinha um time grande, mesmo assim tinha 4 mil pessoas me esperando em frente à sede da Atalanta, então aquilo mexeu bastante, o frio mexeu, a maneira de treinamento, o idioma, a maneira de falar, a cultura das pessoas, isso tudo demorou um tempo pra me adaptar, e da mesma maneira que demorou um tempo pra me adaptar a jogar de centroavante. Passado esse tempo de adaptação as coisas já melhoraram muito, chegou o calor, e o calor era intenso também e, dez horas da noite tinha sol ainda, então a gente ia se adaptando mais fácil, passei fome com dinheiro na mão, mas tudo isso faz parte do dia-a-dia, jogador de futebol tem que aprender tudo, a se adaptar a tudo isso.

E quem foi com você dessa vez?

Na chegada lá foi o Sérgio Cleres, que foi como o empresário que me indicou no Atalanta, então, essa pouca experiência que ele me passou no voo, pode-se dizer assim, serviu pra alguma coisa, mas uma semana depois eu já estava sozinho, foi preciso enfrentar tudo meio que sozinho.

Então você ficou sozinho lá?

Fiquei sozinho, depois de uma semana ele voltou pro Brasil, seguiu a vida dele aqui, e eu tive que seguir a minha vida lá em Bergamo. E as coisas não eram fácil, até se adaptar a tudo, até se adaptar à comida, idioma, ainda bem que o italiano é latino, é uma língua fácil de aprender, bastaram alguns meses com professores e eu já estava falando, eu já estava entendo, já entendia piada, já sabia xingar, isso tudo fez com que a gente fosse se adaptando mais fácil.

Você ficou por três anos no Atalanta. Em relação ao futebol, o que você percebeu de diferente do que você tinha vivido aqui no Brasil?

Ah, uma diferença muito grande. Tanto o espírito, a maneira de interpretar o futebol, quanto a parte tática. Fisicamente eu achei que foi muito interessante também, eles entendem também que uma pré-temporada bem feita é o suficiente pra você se manter durante toda uma competição, então não existe muitos treinos durante a competição, diferente do Brasil. Na parte tática, no Guarani, eu, acostumado a ser um finalizador apenas, de repente, no Atalanta eu tive que aprender também a marcar, a correr atrás, num espírito de grupo totalmente diferente, então isso fez com que nós tivéssemos uma outra maneira de enxergar o futebol, então são situações que a gente teve que se adaptar e que as diferenças foram gritantes, sem contar que a marcação italiana, individual, era muito difícil pra mim, não estava acostumado com isso no Brasil,  tive que me adaptar, demorei um pouquinho, mas depois as coisas foram acontecendo e nós soubemos tirar proveito.

E a estrutura do clube?

Era muito fraca. Eu voltei lá depois de 10 anos, há uns anos atrás, e a academia deles fazia inveja, mas na minha época era muito fraco, departamento médico muito fraco, muito abaixo. Hoje já se pode-se dizer que é um departamento muito bom. O crescimento foi muito grande.

Mas na época, comparando Guarani e o Atalanta, você sentiu muita diferença na estrutura?

Algumas coisas que no Brinco de Ouro, no Guarani, que eram pra nós algo assim de extrema importância, o Atalanta já tinha há muito tempo: os campos. O Guarani tinha o campo reserva e nós treinávamos no Brinco de Ouro. O Atalanta, quando eu cheguei, tinha 4 ou 5 campos. O departamento médico do Guarani e os profissionais que trabalhavam na parte de recuperação de jogadores eram excelentes. No Atalanta quase não existia; se tivesse alguma contusão você tinha que ir ao hospital da cidade pra se tratar. Então, eram diferenças gritantes de uma coisa pra outra, mas que, levando em consideração, por se tratar de Europa, eu esperava que o Atalanta tivesse muito mais que isso, mas infelizmente não. Coisa que no futebol de Campinas, no Guarani, já se pensava lá na frente, no Atalanta ainda estava caminhando. Enquanto a academia do Guarani era muito, muito boa, com todos os aparelhos, a do Atalanta tinha alguns aparelhos. Então nós tínhamos situações totalmente diferentes. Para eles era uma coisa que parecia ser: “Ah não, não, não há necessidade”. Enquanto isso o Guarani até hoje não tem campo, e o Atalanta continua crescendo, tem vários outros campos, e a categoria de base do Atalanta é referência na Itália, já o Guarani continua paradinho ali.

E, para além do futebol, você falou um pouco das questões de se adaptar à comida, à temperatura. Você chegou a se encontrar com brasileiros por lá?

Muito pouco, tinha brasileiros sim, mas eram poucos, a gente fazia até algumas amizades, fui uma ou outra vez jantar e almoçar na casa de brasileiros lá…

Eram jogadores também?

Não, não eram jogadores, eram pessoas que moravam lá já há algum tempo e que através de ir lá ao campo, ver um treino, acabavam se conhecendo, mas eram muito poucos, hoje depois que eu voltei lá já existe muito mais brasileiros morando lá, mas, na minha época, nem companheiro brasileiro eu tinha, algo que talvez pudesse até mesmo me ajudar mais.

E nos seus períodos de folga você costumava fazer o que?

Os períodos de folga também eram raríssimos. No final de semana nem pensar. Então, segunda-feira era meu dia de folga, e segunda-feira era pós-jogo. Então você estava morto de cansado. Algumas vezes eu tive a oportunidade de viajar pra Roma, mas foram, também, pra conhecer, mas muito pouco, justamente porque, nessa época, os treinos eram puxados, você estava em pleno campeonato, e você não tinha como sair muito, porque uma viagem muito longa ia te cansar mais ainda pro dia seguinte.

Fora as informações que você recebia de parente…

Por telefone, não existia e-mail, celular, não existia nada.

O que chegava sobre o Brasil lá na Itália? E qual era a impressão que os italianos tinham sobre o Brasil?

Mais ou menos a que eles tem até hoje. Essa já é uma situação bastante delicada, porque o italiano, na minha época, quando eu estava lá, ele imaginava que quando chegava o carnaval, a minha mãe saia pelada na rua, então o italiano tinha essa mentalidade. Vários me perguntavam: “Ah, e os macacos, lá? Atravessam a rua? Como é que vocês convivem?”. Na minha época, o bergamasco me perguntava desse jeito, não sei hoje, talvez não, muito menos, se sabe que você vai encontrar isso lá na Amazônia, vai encontrar em outros lugares. Não imaginavam que São Paulo fosse uma metrópole dessa maneira, que fosse tão avançado, que existia tudo, então pra eles era um lugar bem atrasado ainda. Hoje espero que eles já não pensem mais dessa maneira, já há muito que o Brasil não é mais dessa maneira. Mas, o fato do carnaval parecer ser algo cultural pra nós é uma coisa bastante normal, mas pra eles parecia que todo mundo, quando chegava em fevereiro, ia pra rua de biquíni, sambar, fazer o que queria, e tive que mostrar pra eles, falar pra eles “não, espera aí, não é assim não, é totalmente diferente”. Então, esse tipo de situação eu tive que viver lá, e tinha que ter um jogo de cintura muito grande pra poder mostrar a eles “Olha, não existe nada disso, nós somos um povo totalmente diferente disso que pode estar passando aí na TV”. Porque eles acreditavam naquilo que eles viam pela TV.

E quais eram suas leituras e impressões sobre o povo italiano, sobre a Itália? Algumas se confirmaram, outras não?

A minha expectativa era de encontrar um povo muito fanático por futebol e eu encontrei. Por outro lado, o bergamasco, na minha época, eu não imaginava que seria um povo que fosse tão radical em determinadas situações. Pra você entrar dentro da casa de um bergamasco você tinha que passar dois, três anos, fazendo amizade pra ele te convidar. E existia um racismo muito grande entre eles, que é o povo do norte contra o povo do sul. Então era muito comum ver nos muros de Bergamo escrito: “Dá-lhe Etna!”, que é o vulcão que está lá na Sicília, que está lá no sul do país, como quem diz: “Dá-lhe, mata todo mundo aí!”. Era bastante comum a gente ver isso nos muros de Bergamo. Nós, brasileiros, não desejamos isso pro sul do nosso país, nós brasileiros não temos essa cultura de querer mal nenhum, nós tentamos conviver com todo mundo numa boa. Existe racismo no Brasil? Sim, pode até existir, mas lá era mais gritante, então foi uma coisa que me chamou muito a atenção.

E aí, temporada após temporada, você foi se estabelecendo por lá, e apareceu a oportunidade de você voltar aqui pro Brasil. Como é que foi isso?

Isso, eu fiquei três anos lá, conseguimos chegar entre os seis primeiros duas vezes, então foram momentos marcantes também. E quando eu quis voltar, quando eu pedi pra voltar, o Atalanta se prontificou a vir ao Brasil e arrumar um tipo de negociação, fez essa negociação, e eu voltei pro Palmeiras.

Esse “quis voltar” estava relacionado ao quê? Você achou que era o momento?

É, eu já tinha passado meu tempo, acho que já tinha finalizado aquele momento da minha carreira, depois de três anos eu achei que era o momento de voltar ao Brasil e recomeçar, depois de três anos, uma outra história aqui.

E aí você começou uma baita história…

É, essa história…

Confira a segunda parte da entrevista no dia 26 de fevereiro.

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Paulo Nascimento

Professor de História.

Bruna Gottardo

Cientista Social pela PUCSP, pós-graduada em Bens Culturais pela FGV/SP, mestranda em Ciências Sociais pela PUCSP. Tem experiência nas áreas de antropologia, cultura, audiovisual e futebol, como pesquisadora, produtora e realizadora.

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