19.37

Francês, líder da torcida Máfia Azul do Cruzeiro

Projeto – “Torcidas Organizadas: Criando fontes”[1]

Soube da existência de Francês em 2009, quando desenvolvia um estágio de pós-doutorado na França. Naquele país, durante um colóquio sobre torcidas de futebol em Paris, mais precisamente na Cité internationale universitaire (CIUP), conversava com um integrante de uma torcida organizada do Paris Saint-Germain, Florian Vacher, do Kop of Boulogne. Ao tomar ciência de minha nacionalidade, o rapaz se animou em contar que se correspondia com um torcedor francês radicado no Brasil e que este o atualizava, com histórias dele junto a uma torcida organizada do meu país.

Curioso com o relato, guardei essa informação até a minha volta ao Brasil, em 2010. Descobri então que o torcedor de que Florian falava atendia pelo apelido de “Francês” e que fora durante muitos anos líder do núcleo duro da maior torcida organizada do Cruzeiro, a Máfia Azul. Pelas redes sociais, contatei-o no início daquele ano e agendei uma entrevista em Belo Horizonte, no início do mês de março. Fui ao seu encontro em sua residência, no bairro de Mangabeiras, e gravei a entrevista, transcrita e editada a seguir.

Cheguei a publicar um texto de divulgação sobre a entrevista no ano de 2015[2], com um relato da experiência da gravação. Seguindo o método da história de vida, uma das modalidades de entrevista na História Oral, foram quase 3 horas de áudio, interrompido apenas em função de Julie, a filha de três anos do entrevistado que, vez ou outra, adentrava na sala. A recuperação de sua trajetória permitiu reunir informações bastante relevantes acerca das torcidas, tanto no país dele como no meu, como se poderá perceber na edição abaixo.

Ao final da entrevista, ofereci-lhe em retribuição uma camisa que trouxera da França, da torcida Boulogne Boys, vinculada ao PSG, cujo símbolo é um buldogue enfurecido, com coleira pontiaguda, a afugentar os inimigos. O presente deixou-o muito feliz e quis retribuir-me com outra camisa, a da sua torcida. Subimos ao segundo andar de sua casa, uma ampla morada com piscina e alpendre, situada numa região nobre da capital mineira. Ao subir as escadarias, deparei-me com uma espécie de malharia, com artigos mais diversos de roupas da Máfia Azul.

Francês escolheu para mim uma camisa de algodão com o símbolo circular azul-e-branco, de onde se projetava uma sinistra, musculosa e hipertrofiada raposa, em posição de luta marcial. Guardo-a ainda hoje, como recordação daquele encontro de quase 10 anos atrás.

O pesquisador Bernardo Borges Buarque de Hollanda (esquerda) e Jean Marc Gougeuil, o francês.

Iniciando, gostaria que você se apresentasse e dissesse onde e quando nasceu.

Meu nome é Jean Marc Gougeuil, sou professor da Aliança Francesa, em Belo Horizonte, e nasci em Turim, na Itália, país natal de minha mãe, no dia 27 de setembro de 1962. Sou italiano de nascimento, mas francês de coração, por causa do meu pai, que nasceu em Poitiers, na região central da França. 

Você passou sua infância em Turim?

Não, após meu nascimento, meus pais se mudaram para Ville d’Avray, uma cidade pacata situada a aproximadamente 9 quilômetros de Paris. Lá, eu vivi até os 22 anos.

Em que área seus pais trabalhavam?

Meu pai era engenheiro nuclear e foi diretor da IDF, uma indústria francesa. Ele era uma pessoa muito inteligente. Depois de sua morte, eu trouxe a biblioteca dele para cá, como forma de preservar sua memória. Já a minha mãe é artista plástica. Ela fez esculturas durante muito tempo, depois parou quando meu irmão mais velho nasceu.

Quantos irmãos você tem?

Apenas um. Eu sou o caçula da família.

Como começou seu interesse pelo futebol?

Desde pequeno, eu sempre adorei futebol. Em 1974, na época da Copa do Mundo da Alemanha, comecei a acompanhar bastante. O meu pai, que não gostava do esporte, me proibia de ver os jogos na TV, mas eu ouvia tudo pelo rádio.

Pouco depois, passei a jogar em um time amador da cidade e treinava três vezes por semana para atuar aos domingos. Quando fiquei um pouco mais velho, virei treinador das crianças e organizava os campeonatos infantis. Portanto, o futebol sempre esteve no meu sangue e foi minha principal paixão.

Você frequentava estádios como torcedor também?

Sim, eu morava a aproximadamente 6 quilômetros do Parc des Princes[3], o estádio de Paris, e tinha facilidade para me deslocar até lá. Então, desde os 10 anos de idade, eu acompanhei jogos do Paris Saint-Germain[4] e da Seleção francesa. Mesmo à revelia do meu pai, o ambiente da torcida me atraía e eu chegava a passar a noite toda na fila para conseguir um ingresso. No início da década de 1980, quando o Brasil venceu a França por 3 a 1, eu fui caminhando de casa até o estádio para poder ver a partida.

Você ia aos jogos com amigos?

No início, eu ia sozinho. Depois, consegui convencer dois ou três amigos para me acompanharem. Nenhum deles era tão fanático quanto eu.

Nessa época, o Parc des Princes havia sido recentemente reinaugurado, não é?

Exatamente. Ele ressurgiu no começo dos anos 1970 juntamente com o Paris Saint-Germain. O clube supria a falta de um time de futebol que a cidade sofria. Muitos jovens da periferia, como eu, queriam assistir os jogos. 

Naquele momento, a equipe que despontava era o Saint-Étienne[5], não é?

Sim. Em 1976, quando o Saint-Étienne perdeu a final da Taça dos Clubes Campeões Europeus para o Bayern de Munique, por 1 a 0, a equipe foi recebida por mais de 1 milhão de pessoas na Champs-Élysées. Eu era torcedor do clube e sofri demais.

Inicialmente, o Paris Saint-Germain demorou para engrenar e sua média de público era pequena. Contudo, já se esboçavam algumas torcidas organizadas nas duas tribunas laterais. Uma delas era a Tribuna de Boulogne, surgida em 1978 e incentivada pelo Borelli[6], então presidente do clube. Pouco depois, ela saiu da lateral e foi para trás do gol. 

Assim, muita gente que apoiava o Saint-Étienne se tornou torcedor do PSG. A meu ver, essas pessoas não podem ser chamadas de vira-casacas. Todos agiam assim porque não havia um time na capital.

Você participava dessas torcidas organizadas?

Não, eu não era um membro ativo dos Boulogne Boys por razões políticas. Na década de 1980, havia muita política envolvida no futebol e muitos os acusavam de serem skinheads. Alguns membros chegavam mesmo a usar toucas com a suástica e a fazerem saudações nazistas.  Tudo isso não me agradava, contudo, eu queria um ambiente positivo para torcer e incentivar a equipe com bandeiras. Na França, os torcedores são muito quietos e se portam como se estivessem em um teatro. Não tem muita graça. Então, eu acabava frequentando a tribuna Boulogne. Lá, os ingressos eram mais baratos e isso também contribuía, pois eu era estudante e não podia gastar tanto.

Em 1984, uma partida entre França e Inglaterra ficou conhecida por ter ocasionado brigas e confrontos entre torcedores, não é?

Sim. Houve confusão do lado de fora do estádio e pessoas se machucaram. Era a época do hooliganismo e os ingleses quebraram tudo em Paris. Esse tipo de briga é muito comum tanto nos jogos entre seleções, quanto entre clubes. Lembro de uma partida entre PSG e um time escocês em que houve uma confusão enorme. É muito forte ainda a nossa rivalidade em relação aos países de língua inglesa.

Os Boulogne Boys surgiram em 1985, mas embora tivessem o nome em inglês, eles se espelhavam no modelo ultra, que vinha da Itália, não é?

Exatamente. O futebol francês tem muito mais influências do movimento italiano do que do inglês, porém, em termos de briga, os ultra são como os hooligans.

Após algum tempo, os torcedores que faziam parte da Tribuna de Boulogne ficaram conhecidos como os Independentes e, como os casuals ingleses, passaram a circular sem identificação para despistar a polícia, não é?

Exatamente. Eles são os mais perigosos porque andam à paisana, mas compõem uma facção muito bem articulada. Ao contrário dos membros de torcidas organizadas no Brasil, que se vestem dos pés à cabeça com seus uniformes, esses europeus são mais espertos. É muito difícil reconhecê-los. Em 1998, na Copa do Mundo, alguns torcedores desse tipo que vieram de outros países causaram muitos problemas em Paris, em Marseille e em Bordeaux. Eles formavam um grupo de 400 pessoas que surgia do nada, brigava e desaparecia.

De maneira geral, qual era o perfil de torcedor que ia ao Parc des Princes?

Em razão de o ingresso ser barato, tudo era muito misturado. O futebol é interessante por juntar todas as classes sociais em prol de um time. Logicamente, na França, as diferenças sociais são bem menores do que no Brasil.

O fato do Parc des Princes ter sido inaugurado em um bairro chique não promovia uma certa elitização?

Não, independentemente da localização do estádio, a torcida ia. Obviamente, existiam setores mais elitizados nas arquibancadas, como as tribunas presidenciais e de honra… Mas o povo, podia ocupar as tribunas laterais. Assim, o estádio, tanto na França como no Brasil, reflete de certa forma as divisões que existem na sociedade.

Nesse período, você chegou a viajar para acompanhar os jogos fora de Paris?

Não. Eu estudava e meu pai reclamava muito por eu ir aos jogos. Entretanto, eu não perdia uma partida disputada em casa. Afora isso, as torcidas francesas naquele momento ainda não organizavam viagens. Já os hooligans ingleses, em contrapartida, acompanhavam sua seleção e times porque queriam confrontos e visibilidade.

O perfil geral dos hooligans era de jovens proletariados e subempregados, não é?

Não sou especialista sobre esse assunto, mas tudo leva a crer que sim. Esse movimento nasceu em cidades mineradoras inglesas, onde não se tinha quase nada para fazer. Então, esses garotos encontraram algo que os tornava vistos. Podemos fazer uma comparação atualmente com os jovens que vivem nas favelas brasileiras.

Na França, também existe uma ligação entre as cidades mineradoras e os clubes mais tradicionais, não é?

Sim. O Saint-Étienne e o Lens[7] possuem essa origem. Esse último, inclusive, tem uma torcida bastante popular, como a do Corinthians. Mas são muito pacatos e viajam acompanhando o time sem causar nenhuma confusão.  Mesmo quando o time está mal, conseguem levar 2 ou 3 mil torcedores aos jogos fora de casa. É impressionante.

Marseille também é uma cidade com uma torcida empolgada, certo?

Sim. Eles gostam bastante de futebol e tem um time e uma torcida forte. Eles rivalizam muito com o os torcedores do PSG e trazem uma disputa entre o Norte e o Sul do país. Paris era mal vista pelos outros por ser a capital e, por sua vez, os parisienses chamavam os demais de paisan, ou como dizem no Brasil, roceiros… É uma gozação muito comum entre o centro urbano e as cidades de província.

Na época que você frequentava o estádio, qual era a grande rivalidade?

Logo após o surgimento do PSG, reapareceu, em Paris, o antigo Racing[8]. Os clássicos entre os dois times na Primeira Divisão duraram 2 ou 3 anos e foram bastante disputados. Depois, o Racing acabou extinto.

Você chegou a ingressar na universidade? 

Sim, eu comecei a cursar Letras, na Universidade Paris Nanterre, atendendo a uma exigência do meu pai. Não era exatamente a minha escolha. Então, em dado momento, decidi largar o curso e vir para o Brasil.

Quais razões fizeram você escolher o Brasil?

Eu tinha uma prima que morava aqui em Belo Horizonte e trabalhava na diretoria da FIAT, em Betim. Ela montou um bar francês e ofereceu um posto de trabalho para mim lá. Como já havia feito uns bicos nessa área, achei uma boa. Além disso, ela me apresentou o Brasil como um país de oportunidades, onde não era preciso investir muito para se conseguir algo na vida. Nesse momento, eu queria sair do domínio dos meus pais e pensei: – “Brasil, futebol, carnaval, praias e mulher…”. Achei interessante e resolvi vir conferir. [Risos]

Então, cheguei aqui sozinho no dia 1º de março de 1986. Nessa mesma data, houve uma mudança na moeda vigente e muitas coisas estavam acontecendo. Isso era novo pra mim, porque, na França, eu nunca tinha visto nenhuma mudança desse tipo. Outra coisa que estranhei foi o clima: saí de um inverno de 11º C, em Paris, e encontrei um Rio de Janeiro com 39° C. Apesar de minha prima ter sido assaltada e perdido uma pulseira de ouro enquanto andávamos de carro, logo de cara achei o Rio de Janeiro maravilhoso. Era um sonho que se realizava.

Inicialmente, você foi morar com sua prima?

Sim. Eu passei um mês na casa dela, até termos uma briga feia. Então, fui morar sozinho e passei muitas dificuldades porque não conhecia a língua, tinha pouco dinheiro e sofria com a reprovação de meu pai, porque minha prima fez algumas acusações contra mim. Nesse período, passei 7 meses sem falar com minha família. Foi traumático para todos.

Para conseguir sobreviver, comecei a ensinar francês para um aluno iniciante. Aos poucos, comprei livros, estudei e consegui ingressar no curso de Letras da UFMG[9] para estrangeiros. A minha ideia era ter um reforço na Língua Portuguesa. Ali, permaneci por um 1 ano e meio, porque, para ensinar francês, precisava aprender a falar e a escrever em português.

E quando você começou a acompanhar o futebol brasileiro?

Em 1976, quando ainda morava na França, eu assinava uma revista local chamada Onze Mondial, que se assemelhava à France Football. Nela, certa vez, li uma reportagem sobre a decisão da Copa Intercontinental que envolvera o Cruzeiro, de Belo Horizonte, e o Bayern de Munique. O Saint-Étienne, como eu disse antes, havia sido derrotado pelos alemães e eu me lamentava por não estarmos naquela final.

Em uma das fotos da publicação, eu vi uma pessoa vestindo a camisa do Cruzeiro no antigo Estádio Olímpico de Munique e achei muito bonito aquele azul, com as 5 estrelas. Era diferente das que costumava ver. Dois meses depois, eu estava em uma loja desportiva e vi um uniforme parecidíssimo. Infelizmente, não era do clube, mas acabei comprando e a usava em treinos para me divertir.

Dez anos depois, quando estava vindo para o Brasil, eu me lembrei disso e fiquei contente por ir morar justamente em Belo Horizonte. Ainda assim, o Atlético Mineiro, principal rival do Cruzeiro, tem duas coisas que poderiam ter me atraído. A primeira é ter o galo como mascote e isso lembrar a França. A outra é o fato de eu ter nascido em Turim, na Itália, e o meu padrinho ser torcedor da Juventus, que usa uniforme preto e branco, como os atleticanos.  Em contrapartida, a minha mãe é italiana é o Cruzeiro foi fundado por uma colônia de imigrantes desse país.

Logo no início, você já começou a frequentar o Mineirão?

Sim. Embora o primeiro jogo que eu tenha visto aqui tenha sido no Independência. Na ocasião, eu conheci um alemão chamado Bruno, que me levou para ver um empate de 1 a 1, entre Cruzeiro e América-MG. Lá quase tive problemas porque usei um tapa rosto azul de caveira, com uma cruz, e estávamos na torcida local. Tive sorte porque, quando perceberam, meu amigo me tirou do confronto. 

Depois, assisti uma derrota do Cruzeiro para o Atlético Mineiro, por 1 a 0, e achei muito interessante as torcidas organizadas, que, na verdade, eram facções pequenas. Além delas, havia a Charanga do Galo e a do Cruzeiro, que era comandada pelo Aldair Pinto. Era bonito quando ela começava a tocar e a torcida toda a envolvia.

Nesse clássico, você também foi acompanhado?

Não, eu passei a ir sozinho. Aos poucos, comecei a falar português, a pegar o ônibus para ir ao estádio e me virava.

Onde você morava nessa época?

Eu morava em um barraco de 30 ou 40 metros quadrados, no Anchieta. Ali, comecei a participar de torcida organizada no Brasil depois de ir a uma festa no bairro Floresta, onde conheci dois ou três torcedores que estavam montando a Máfia Azul[10]. Eu me juntei a eles e conseguimos mais dois membros. Nesse momento, só tínhamos uma faixa, onde deveria estar escrito “Máfia”, mas foi grafado “Márfia”. A partir desse grupo, a torcida começou a crescer. Pouco depois, mandei uma menina que trabalhava como minha diarista fazer a primeira bandeira oficial da torcida. Ela é atleticana e ficou brava, mas recebeu para isso e fez.

Naquela época, como você citou, além das charangas, já havia algumas pequenas torcidas organizadas em Belo Horizonte, não é?

Sim. As charangas eram as mais tradicionais e mandavam na arquibancada. Além delas, havia a Cru-Chopp, a Máquina Cruzeirense e a Torcida Jovem[11], umas das torcidas mais antigas do Brasil. A Máfia Azul surgiu como a oitava ou nona torcida cruzeirense. Éramos 5 ou 6 torcedores e nada mais, porém começamos a nos organizar e sugeri que fizéssemos camisas da torcida, algo que ainda não era comum. Começamos a vendê-las e de 5 passamos para 50. Nos clássicos, ficávamos sempre colados na divisa com os atleticanos.

Na época, a torcida do Cruzeiro, por suas origens ligada à imigrantes italianos, era chamada de pó-de-arroz, como os torcedores do Fluminense, e não tinha muito respeito.  Contudo, passamos a nos tornar mais ativos e, aos poucos, obtivemos uma consideração maior por parte dos rivais.

As charangas surgiram no Rio de Janeiro na década de 1940. Você sabe dizer quando apareceram em Minas Gerais?

Acredito que na década de 1960, quando o Mineirão foi fundado. A charanga do Atlético Mineiro era liderada pelo Júlio[12] e existe até hoje. Havia outra do André Peter que acabou. Esse tipo de manifestação perdeu muito espaço diante das organizadas.

Como era o perfil das torcidas organizadas mineiras no final dos anos 1980?

Era complicado porque nosso grupo era muito pequeno e precisávamos ser unidos para nos defendermos nas brigas.

Então, já ocorriam confrontos?

Sim. Quando a Máfia Azul surgiu, a torcida atleticana ficou em choque, porque antes os cruzeirenses eram muito pacatos e os alvinegros faziam o que queriam. Nós nos aglomerávamos na divisa, cantávamos e nos impusemos a ponto de calar os rivais. Éramos provocativos fora do estádio também. Nós costumávamos sair da Floresta em um ônibus lotado e, quando chegávamos próximo ao campo, descíamos e íamos a pé, lado ao lado com os atleticanos. Assim, estávamos fazendo o nosso nome.

Qual era a principal torcida organizada do Atlético Mineiro nessa época?

Eles tinham três principais: o Esquadrão Atleticano[13], a Galoucura[14] e a Máfia Atleticana, que era a maior de todas. Dessa maneira, havia um confronto entre as chamadas duas máfias.

E a Máfia Azul surgiu em 1977, não é? O nome era inspirado na máfia italiana?

Isso, ela foi criada em 1977. Eu não sei dizei porque o fundador optou por esse título, mas, no Brasil, todas as torcidas usam nomes parecidos, como Esquadrão, Raça, Fúria… Essas denominações com conotações militares. Aliás, todas parecem também um exército, porque têm generais, facções, núcleos, brigadas… Na Máfia Azul, por exemplo, há comandos em cada região da cidade.

Você se envolveu em muitas brigas nesse momento em que a torcida se afirmava?

Sim. Eu participei ativamente do grupo inicial que fundou a torcida e tive vários problemas. Certa vez, até fui preso. Eu era o mais novo, estava bastante empolgado e vinha de uma torcida da França que era agitada. [Risos]

Você participou de confrontos na França também?

Eu briguei uma vez lá com pessoas que participavam da Tribuna de Boulogne. Na ocasião, fazia muito frio e eu não queria me sentar porque iria congelar. Quando eu estava saindo, fui pego pelas costas e me chutaram. Eu caí e fiquei com a boca e o nariz machucados. Porém, a vingança é um prato que se come frio. Deixei passar três jogos e, no seguinte, juntei quinze amigos para pegar os quatro caras que me atacaram. Ficamos esperando eles saírem em uma rua próxima ao estádio. Nós quebramos eles. Na ocasião, eu disse: – “Você se lembra de mim? Veja como é bom muitos baterem em apenas um”. Depois disso, nunca mais mexeram comigo.

Então, a Máfia Azul surgiu no bairro da Floresta?

Sim. Aliás, inicialmente, os fundadores a chamavam de Máfia Azul Cru Fiel Floresta. Isso porque ela surgiu como uma fusão de duas torcidas que tinham apenas dois membros cada uma. Toda a concentração da torcida era naquele bairro. Eu, por exemplo, morava na Zona Sul e atravessava a cidade a pé – porque não tinha dinheiro – para sair de lá com o ônibus da torcida. 

A Floresta era uma bairro popular?

Era um bairro tranquilo, onde a maior parte dos moradores era de classe média baixa ou pobre.

Vocês chegaram a ter uma sede na região?

Não. Na época, eu e os demais diretores nos virávamos para fazermos bandeiras e as guardávamos juntamente com os instrumentos em nossas próprias casas. Todos tinham seus empregos e aquilo era um lazer para nós.  

Então, você já tinha se formado pela UFMG?

Sim, estava formado e já dava aulas particulares. Felizmente, eu tinha muitos alunos, era solteiro e podia viajar bastante com a torcida. Quando eu tinha 24 anos, já tinha ido para São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Espírito Santo, Bahia…

E as demais pessoas que compunham o núcleo central, em que elas trabalhavam?

Em diversas atividades. Todos os diretores eram estudados, com formação acadêmica. Em geral, eram pessoas de classe A e B que gostavam de futebol. Outra coisa que os motivava era a rivalidade entre bairros que havia em Belo Horizonte. Na época, rádios promoviam gincanas entre as regiões da cidade.

No início dos anos 1990, a Máfia Azul já era a principal torcida cruzeirense?

Sim. Nós fomos os primeiros a nos declararmos como responsáveis por uma instituição de utilidade pública. Eu consegui isso por meio de um vereador famoso. A partir de então, a torcida passou a ser reconhecida como um Grêmio Recreativo. Logo no início, isso também gerou problemas porque com o crescimento, começamos a ter dinheiro no caixa e um diretor foi acusado de roubo. Além disso, surgiram jogos de poder. Eu havia entrado na torcida por lazer, porém o negócio se tornou uma empresa. Hoje, todas são assim, mas devem ter sempre uma boa intenção.

Em algum momento, você se afastou da torcida?

Jamais. Até hoje, sou o responsável pelo site da Máfia Azul e pela comunidade no Orkut, além disso, também ajudo quando é preciso conseguir algum patrocínio. Porém, como estou casado e tenho uma filha, não viajo mais e não me empenho tanto como antes. Ainda assim, sou muito respeitado pelos cruzeirenses e pelas autoridades, porque tenho mais de 20 anos de participação na instituição. Todos me conhecem pelo fato de eu ser um estrangeiro que atua a favor de uma organizada e de programas sociais. Eu tenho um nível superior e consigo conversar com as autoridades de alto escalão para obter o melhor para a minha instituição e para a sociedade.

Como é esse trabalho que você desenvolve no site da torcida?

Eu efetuo vendas virtuais e repasso anualmente entre 20 e 10 por cento dos benefícios para a Máfia Azul. Todas as despesas, em contrapartida, são por minha conta. Recentemente, estamos atualizando o site e temos muito trabalho pela frente.

E a média de acessos, é boa?

O nosso site é tão bem conceituado que conseguimos atrair não apenas nossos membros, mas também os torcedores comuns do Cruzeiro. Ou seja, é um ambiente virtual abrangente que fala sobre a torcida e sobre o clube, apresentando fotos, tabelas… Ele é muito bem feito e um dos melhores entre aqueles do mesmo gênero. Muitos jornalistas utilizam as informações que fornecemos como referência. E a Polícia Militar também costuma verificá-lo para ver se há alguma música ou material impróprio.

Há conteúdos que incitam a violência no site?

Não, pelo contrário. Lá, nós fazemos campanhas contra a pedofilia, contra o uso de armas… Reproduzimos também manifestos em defesa das torcidas organizadas do Brasil. Esse tipo de coisa é pouco divulgado pela imprensa.

Além desse trabalho que desenvolve no site da Máfia Azul, você também leciona na Aliança Francesa, não é? Há quanto tempo você trabalha lá?

Eu estou lá há aproximadamente cinco anos. Fui convidado por um diretor da escola que disse não querer concorrentes. É uma atividade recente, pois sempre sobrevivi de aulas particulares. Jamais recebi dinheiro da torcida. Tudo que fiz foi por prazer.

E quando você se casou?

Eu me casei com a Cíntia em 2001.

Você trouxe para a Máfia Azul alguma influencia do que vivenciou nas arquibancadas francesas? 

Sem dúvida. A camisa mais famosa da Máfia Azul foi idealizada por mim a partir do uniforme do Paris Saint-Germain. Além disso, comecei a confeccionar faixas e camisas com gozações, algo comum na França e que até então era inédito no Brasil. Eu conheci isso por meio da internet e achei interessante para utilizarmos em clássicos contra o Atlético Mineiro. Depois, outros clubes brasileiros aderiram a isso, tanto em Minas Gerais quanto nos demais estados.

Na França, além das faixas com gozações, há também algumas que trazem mensagens de protesto. Vocês também fizeram algo nessa linha?

Sim, já fizemos faixas de protesto muitas vezes e, em algumas situações, manifestamos nossa insatisfação retirando todas as bandeiras e combinando com as demais organizadas de não irmos ao estádio.

E você nunca mais voltou pra França?

Eu retorno uma ou duas vezes por ano. Em 2008, quando meu pai estava muito doente, fui com mais frequência.

Nessas viagens, você acompanha os jogos no estádio?

Sim. Foi em uma dessas ocasiões que conheci os Supras Auteuil[15]. Antes disso, nós apenas conversávamos por e-mail e trocávamos camisas. Eu nunca gostei dos Bologne Boys por causa do envolvimento deles com questões políticas. Já os Supras, são pessoas mais jovens e bem mais interessantes. Quando nos conhecemos, eles ficaram curiosos em saber como um francês organizava uma das maiores torcidas do Brasil. Lá na França, as torcidas são bem menores. Os Supras não chegam a 500 pessoas. Aqui no Brasil, tudo é gigantesco. A Máfia Azul, por exemplo, possuí muitas filiais e temos em torno de 80 mil membros.

Os Supras Auteuil e o Lutece Falco, surgiram em 1991, como uma iniciativa do próprio clube para enfraquecer os Bologne Boys, não é?

Eu não sei dizer. Isso pode ter sido uma acusação feita por parte dos Boulogne Boys. Se perguntar para os Supras Auteuil, certamente, eles negarão. Os clubes franceses não costumam ajudar as torcidas. As organizações são bem separadas. Não é como aqui no Brasil, onde todas as organizadas influenciam as decisões do clube.

Nesse seu contato com os torcedores franceses, você percebeu alguma prática brasileira que eles tenham adotado?

É complicado porque são dois mundos completamente diferentes. Na Europa, eles transitam descaracterizados e, no máximo, usam cachecol ou boné. Porém, há algum tempo, eles se interessaram bastante pelos pisca-pisca que usamos aqui, mas não conseguiram leva-los porque é proibido transportar isso por via aérea.

Em geral, como é a relação da Máfia Azul com a diretoria do clube?

A convivência é boa, pois sempre atuamos em prol do Cruzeiro. Os presidentes sabem que precisam do apoio das organizadas. Eles podem mandar na administração e nas contratações, mas somos nós que comandamos a arquibancada. Se somos confrontados, seja por um diretor, técnico ou jogador, são eles que saem perdendo no final.

Quando percebemos coisas erradas, sempre pedimos reuniões com a diretoria do clube e conversamos com os diretores. Porém, sempre respeitamos as decisões deles e não admitimos essas invasões de sede que outras torcidas fazem.

Você já chegou a se desentender com algum dirigente do Cruzeiro?

Sim. Certa vez, tive uma discussão com um diretor que me ofendeu. Eu fui alertá-lo de que o time perderia a liderança do campeonato se não contratasse alguns reforços. Ele me disse que lugar de torcedor era na arquibancada e que o time estava ótimo daquele jeito. No final, a equipe terminou o torneio em 12° colocado. Ou seja, eles precisam nos escutar porque temos experiência com o mundo do futebol. No Rio de Janeiro, diversos líderes de torcidas têm participação na direção dos clubes.

Apesar dessas diferenças, às vezes, eles pedem nossa colaboração. Por exemplo, há alguns anos, eu ajudei o Cruzeiro a vencer uma ação a respeito de um jogador, que estava sendo julgada em Genebra, na Suíça. Eles precisavam de um documento em francês e o presidente do clube mandou uma viatura me buscar para eu redigir. Na época, ganharam 150 mil reais com esse processo. Eles me agradeceram, mas não me deram nada. É uma pena, mas à favor do Cruzeiro, eu faço tudo.

Consegue se lembrar de algum confronto que tiveram com treinadores?

Há alguns anos tivemos um desentendimento com um treinador após a equipe sofrer seis derrotas consecutivas. Na ocasião, alguns dos nossos diretores me ligaram e perguntaram se podiam ir com torcedores até o aeroporto para jogar pipoca nos jogadores. Eu permiti, com a condição de que eles não usassem de violência, e paguei dois ônibus para que eles fossem até lá.  Eles jogaram as pipocas e saíram até no Jornal Nacional. Então, o treinador falou o de sempre, que era um bando de vagabundos e que não representava a torcida do Cruzeiro. Diante disso, alguns jornalistas me procuraram e eu respondi dizendo que achava engraçado o fato de o torcedor, no Brasil, ser considerado ruim quando reclama e que aquele técnico não servia para nosso time. A partir dali, a torcida se opôs a ele, que acabou sendo demitido. É preciso que eles tenham inteligência para não se oporem aos torcedores. A razão de viver dos clubes são as torcidas

Já aconteceram situações parecidas em relação aos jogadores?

Em várias ocasiões. Tivemos muitos problemas com jogadores que não são inteligentes e se deixam manipular por jornalistas espertos. Por exemplo, certa vez, apaziguei uma situação com um goleiro chamado Artur[16], que agora está na Roma. Ele falou umas besteiras e eu fui até a Toca da Raposa[17] para conversar com ele e aconselhá-lo a ser inteligente e a não confrontar a organizada. Em outra ocasião, fui conversar com o Adriano Gabiru[18], que estava jogando mal, sendo vaiado e respondendo a torcida. Eu disse para ele ficar calado e para se concentrar em melhorar seu desempenho em campo. Ele seguiu o conselho e foi aplaudido depois. Por mais que a torcida esteja errada, ela sempre estará com a razão.

Você é sócio do clube?

Apenas recentemente passei a ser sócio-torcedor, porque eles implantaram um novo sistema para a compra de ingressos. Embora tenha recebido convites para participar da vida social do clube, eu não aceitei porque não acho que essa seja minha praia. A meu ver, clube e torcida são coisas separadas e, por isso, nunca tivemos interesse em participar da política do Cruzeiro.

A torcida recebe algum tipo de ajuda de custo por parte do clube?

De vez em quando, logicamente, conseguimos alguma ajuda para as viagens. Geralmente, nas fases finais de campeonatos. Por exemplo, na final da Copa do Brasil contra o Flamengo, recebemos 6 ônibus. Isso, contudo, é muito pouco em relação aos adversários. Na semifinal do Campeonato Brasileiro, a diretoria atleticana ofereceu 100 ônibus para seus torcedores. Se eu fosse presidente de um clube ajudaria muito mais as torcidas em âmbito geral porque todos agem ao seu favor.

Nas eleições do clube, vocês costumam se posicionar a favor de determinados candidatos?

Depende da ocasião. E, na verdade, temos pouco poder e influência, pois não participamos do conselho deliberativo. O nosso objetivo é comandar a arquibancada e não o clube.

A Máfia Azul possuí uma sede atualmente?

Sim, temos uma sede e uma loja. Somos como uma empresa e vendemos nossos itens oficiais para podermos promover festas e viagens e também para confeccionarmos nossas bandeiras.

Daquele núcleo original do bairro Floresta, ainda há membros que participam da torcida?

Desse grupo, restamos apenas três. Um deles é o fabricante oficial dos nossos produtos e o outro, o Ari, é um dos diretores. Esse último, também é sócio do clube e tem uma relação muito boa com os presidentes. É ele quem faz o elo entre a organizada e o Cruzeiro.

A difusão de subgrupos gera um conflito entre a velha e a nova geração de componentes?

Sim, mas nós, os mais antigos, sabemos a hora exata de atrair alguns dos novos membros para a diretoria. Somos capazes de fazer essa mescla. Afinal, eles sabem que precisam de nós, pois temos experiência. Nós sabemos lidar com a imprensa, com a polícia, com a justiça e com o clube. Não é fácil fazer isso.  Portanto, eles aprendem bastante vendo a gente atuar.

O fato de você ser um líder conhecido trás consequências negativas?

Sem dúvida. No início, eu era muito visado e tive muitos problemas. Hoje, graças a Deus, o fato de eu ser famoso faz com que eu seja mais protegido e ninguém mexa comigo.

Em geral, qual é o perfil do membro da Máfia Azul?

A maior parte tem entre 13 e 18 anos e pertence as classes C e D. Eles trabalham como office-boy ou em profissões parecidas.

Existe uma maior concentração de membros da torcida organizada em determinada região da cidade?

Não. Aqui no Brasil, há o costume de rotular algumas torcidas como sendo de massa. Isso acontece com o Flamengo, o Corinthians, o Atlético Mineiro… Muitas vezes, isso não é verdade. Todas as pesquisas feitas aqui em Minas Gerais comprovam que há muito mais cruzeirenses do que atleticanos, principalmente junto às classes mais pobres. A revista Veja já nos chamou de Periferia Azul, porque toda a região no entorno de Belo Horizonte é cruzeirense.

No início dos anos 1970, havia uma ligação entre as torcidas organizadas do Flamengo e Atlético Mineiro, que perdurou até a semifinal do Campeonato Brasileiro de 1980. Depois disso, surgiu uma aliança entre flamenguistas e cruzeirenses, que resistiu até a final da Copa do Brasil em 2003. Como você vê essa questão das alianças entre torcidas organizadas? 

Esse tema é bastante complicado porque a qualquer momento pode surgir uma guerra por causa de alguma coisa. Muitas vezes as alianças surgem por conta das rivalidades locais. Por exemplo, o Flamengo se opõe ao Vasco, então se os atleticanos se juntam aos vascaínos, a nossa tendência, a priori, é se aliar aos flamenguistas. Contudo, nem sempre a lógica é tão simples. Nós mesmos temos uma rixa com os torcedores do Palmeiras, um clube que, assim como o nosso, foi fundado por italianos. Dada essa origem, tínhamos uma boa convivência até que houve uma confusão no Parque Antártica. Naquele momento, o Cléo[19], líder da Mancha Verde[20], havia sido assassinado e alguns membros da nossa torcida entoaram um canto citando isso. A partir dali, a boa relação acabou.

Você estava presente nesse jogo?

Não, mas soube de tudo pelo Paulinho, um amigo meu. No mesmo dia, ele me ligou e avisou: – “Olhe as coisas complicaram agora”. Na partida de volta, a torcida do Cruzeiro não deixou os palmeirenses entrarem no estádio e a rivalidade ficou muito grande. Outra rixa grande que temos é em relação aos vascaínos. Eles são aliados aos atleticanos da Galoucura e sempre sofremos quando vamos ao estádio de São Januário.

Quais outras alianças vocês estabeleceram?

Tivemos ligações também com a Independente[21], do São Paulo; com a Camisa 12[22], do Internacional; com os Imbatíveis[23], do Vitória; a Leões da TUF[24], do Fortaleza; Leões da Fabulosa[25], da Portuguesa… Quando fazemos festas, membros de 10 a 15 torcidas organizadas vêm nos visitar. Entretanto, não precisamos da ajuda de ninguém para irmos onde queremos. O meu lema, desde a fundação, sempre foi “nós por nós”. Isso porque quando o Flamengo jogava aqui, nós mandávamos 300 membros nossos para ajudar a Jovem Fla[26], todavia, quando íamos ao Rio de Janeiro, eles só nos apoiavam com 3 ou 4 gatos-pingados. Ou seja, nós ajudávamos e ninguém retribuía. Nessa época, cortei as alianças. Atualmente, a Independente voltou a conversar conosco. Nós não nos aliamos, mas nos respeitamos. Por outro lado, até hoje temos problemas com a Jovem Fla porque eles perderam o controle sobre os seus próprios pelotões. No ano passado, chegamos a ter um confronto com eles na Zona Sul do Rio de Janeiro. Estávamos lá para a final da Copa do Brasil e tivemos nossos ônibus apedrejados. Quando vieram para cá, demos ordens para não mexerem com eles e nada aconteceu. Agora, esperemos que façam o mesmo ao retornarmos lá.

Por qual meio vocês se comunicam com essas torcidas organizadas de outros Estados?

No passado, tínhamos uma pessoa encarregada das nossas relações públicas que escrevia cartas e telefonava para outros líderes. Hoje, usamos a internet e Nextel para falar com a Independente, por exemplo.

Existe contato com torcidas dos demais países da América do Sul também?

Há poucas, porque a rivalidade é muito forte. Outro fator que dificulta é a distância e o fato de raramente nos encontrarmos. Contudo, já recebemos torcedores paraguaios e fomos muito bem recebidos na Cidade do Mar, no Chile. 

Dentro da Máfia Azul, muitos te conhecem como Francês. Como surgiu esse apelido?

Sou chamado assim desde o início, porque me chamar de Jean Marc não tem muita graça. Além disso, costumamos usar muitos apelidos como Fubá, Paulinho Popeye, Tetê…

Você citou uma ocasião em que foi preso. Como isso ocorreu?

Na verdade, fui detido várias vezes. [Risos] Uma delas aconteceu no final dos anos 1980, em uma partida contra o Vasco, aqui em Belo Horizonte. Eu cheguei ao Mineirão às 13 horas e havia apenas 40 ou 50 componentes nossos arrumando as bandeiras e os instrumentos. Então, a Força Jovem[27] chegou em 11 ônibus. Eles ficaram na arquibancada sem que houvesse policiamento para nos separar. Eles começaram a avançar e quando se aproximaram, nós tivemos que enfrentá-los. Eu levei um susto porque tive que encarar um sujeito enorme jogando capoeira na minha frente. Achei que iria apanhar demais. Contudo, aprendi uma estratégia de briga lá na França que não existe aqui. Eu dei um chute nas partes dele, emendei uma cabeçada e ele caiu na mesma hora. Na sequência, fui preso. Os policiais me fizeram passar no meio da torcida adversária. Os rivais ficaram me olhando por eu ter derrubado um cara de 1,90 m em 10 segundos. Acabei ficando detido junto com torcedores vascaínos. Eu virei para eles e disse: – “Eu vou ser liberado em 15 minutos, querem ver?”. Não deu outra. Os diretores da Máfia Azul ligaram para o presidente do Cruzeiro e ele foi me soltar na mesma hora.  

A rivalidade com os atleticanos também gerava confusões, não é?

Sem dúvida. Por exemplo, no início dos anos 1990, queríamos resolver uma divergência com a Galoucura e marcamos uma briga na Praça da Estação para vermos quem era mais forte. Eu disse para os membros da Máfia Azul que faria tudo do meu jeito. Então, mandei um carro na frente para ver quantos eles eram. Nós estávamos em 100 pessoas e eu queria comparar. Como havia muitos novatos no nosso grupo, antes de saber quantos eram os rivais, mandei 40 dentre eles para casa. Quando o carro voltou, soube que havia cerca de 150 atleticanos e pensei: – “Opa! Vai complicar”. Então, virei para o meu grupo e disse: – “Nós vamos tirar as camisas da Máfia Azul e iremos até a praça à paisana para pegarmos os caras desprevenidos. Vamos na calada, quando eu der um grito, nós atacamos”. Ao chegarmos lá, surpreendemos eles pela lateral, pois esperavam que chegássemos um pouco mais abaixo. Depois da briga, conseguimos nos espalhar e seguimos uma rota de fuga. Dentre os atleticanos, 28 pessoas foram presas. Em contrapartida, todos os nossos membros escaparam. Até hoje temos músicas que contam essa história. 

Você participou de confrontos com outras torcidas atleticanas, além da Galoucura?

 Sim. A Máfia Atleticana tinha um diretor conhecido como Pixote. Certa vez, nós invadimos um corredor do Mineirão onde eles estavam e os vimos fugir correndo. Na sequência, eles desceram as arquibancadas e fecharam os acessos a esse corredor. Eu consegui fugir a tempo, mas um dos nossos membros, o Tijolo, ficou preso e precisávamos voltar para o nosso setor. Os atleticanos queriam jogá-lo de uma altura de 4 a 5 metros. Eu voltei com outros torcedores, briguei e puxei o cara de volta. Nesse momento, o Pixote apareceu na minha frente. Fui para cima dele e consegui salvar a vida do Tijolo.

Nessa época havia certa lealdade e ninguém matava ninguém. A maior parte das brigas era apenas na mão. Só depois passaram a usar armamentos e bombas caseiras. Eu penso que quem usa uma arma não é um homem, é um João-Ninguém. Aquele que te encara precisa vencer com as mãos para provar quem é. Infelizmente, hoje as torcidas se tornaram gigantescas e os confrontos passam dos limites. Porém não há como negar que, em um país tão violento como o Brasil, é natural as torcidas agirem assim. A meu ver, o governo deveria tê-las extinguido logo quando surgiram. Agora, não há o que fazer.

Nas viagens, você também enfrentou situações complicadas?

Sim. Em certa ocasião, estávamos voltando de viagem após acompanhar uma semifinal contra o Vasco da Gama e eu ordenei que nenhum ônibus parasse durante o trajeto para evitarmos qualquer dor de cabeça. Contudo, um dos coletivos teve um problema e precisou estacionar em um posto de gasolina. Em seguida, outro ônibus também parou e os meninos começaram a roubar a loja de conveniência. O pior é que eles sequer sabem como fazer isso. Coloquei todo mundo de volta e partimos. Não tínhamos percorrido 2 quilômetros e fomos abordados por policiais que portavam metralhadoras. Eles ameaçaram nos conduzir para a delegacia de Petrópolis e perguntaram: – “Quem é o chefe dos vagabundos?”.  Eu me apresentei e acusaram: – “Vocês roubaram e deram um prejuízo de 1500 reais”.  Na verdade, não chegava a 300 reais. Eu repliquei: – “Não dá pra negociar? Não temos dinheiro agora”. Eles fizeram todo mundo descer do ônibus e começaram a bater em todos nós. Um dos componentes ficou irritado e disse que era trabalhador e que não era justo 200 apanharem por causa de 10 ou 20 que haviam aprontado.

Quando descemos, eles começaram a nos revistar e eu disse para os meninos: – “Cada um ajude com um dinheirinho”. Assim, conseguimos juntar 900 reais. Nesse dia, eu tinha apenas 5 reais no bolso, mas como estava noivo, tinha um dinheiro no banco. O problema é que já se passava das 22 horas e não havia como eu sacar. Então, precisei esperar até o dia seguinte para ir a um caixa eletrônico com os policiais e pegar os 600 reais que faltavam.  Eu fiquei com medo porque eles me acompanharam usando capuzes.

Em outro dia, ficamos detidos em Macaé e precisei novamente juntar dinheiro e dar camisas, bonés e jaquetas para os policiais nos liberarem e seguirmos até o estádio.

Como é a relação aqui em Minas Gerais das torcidas organizadas com a Polícia Militar?

É muito boa. A polícia aqui é seríssima. Eles não brincam em serviço e estão conseguindo controlar as coisas. Nós fomos punidos muitas vezes. Em uma partida contra o Atlético Mineiro tivemos um confronto e fomos proibidos de levar bandeiras e faixas durante um mês. Ultimamente, as punições têm sido imediatas e, às vezes, exageradas. O promotor nos envia uma carta com as restrições impostas e precisamos segui-las, pois assinamos um termo de acordo com a Polícia Militar. Ao firmarmos isso, pedimos ao promotor que fornecesse crachás para sermos identificados. Isso porque o presidente ou os diretores não podem ser responsáveis pelo que milhares de pessoas fazem. Assim como quando um policial mata alguém, o culpado não pode ser o comandante.

Durante quanto tempo você foi presidente da Máfia Azul?

Eu liderei por 5 anos, entre 2002 e 2006..

Você foi eleito ou aclamado?

Nós não fazemos eleições. É a diretoria que decide quem vai ser o presidente. Dessa forma, evitamos que qualquer vagabundo possa se apoderar da instituição.

Existe alguma oposição em relação a essa forma de transição de liderança?

Logicamente, alguns grupos discordam. Houve inclusive um momento em que expulsamos uma de nossas facções que estava se sentindo superior às demais e gerando confusões.

No Rio de Janeiro, algumas discussões como essas acabaram gerando dissidências. Isso acontece aqui também?

Sim. Certa vez, alguns revoltados da Máfia Azul saíram e engrossaram a Pavilhão Independente[28], uma organizada que havia surgido há pouco tempo. Depois, ela acabou e eles voltaram para a nossa torcida.

Uma das razões das cisões nas torcidas cariocas são denúncias de corrupção. Na Máfia Azul, há torcedores que vivem apenas do que ganham com a entidade?

Sim. Isso porque há pessoas que são vendedores em nossa loja oficial. Eles são empregados comuns e recebem uma porcentagem das vendas, remuneração mensal, 13º salário, tudo… Contudo, não possuem carteira assinada.

Desde o começo a Máfia Azul adotou a raposa como símbolo principal?

Sim. Essa é uma diferença nossa em relação às outras organizadas. A nossa raposa é estilizada e muitos a consideram como a mais bonita que já foi feita. De vez em quando, até o Cruzeiro nos pede uma autorização para usá-la. Um especialista em Marketing já me disse que ela é uma coisa espetacular.

Depois, apareceu o símbolo do Che Guevara, não é?

Exatamente. Há uma facção da Máfia que utiliza essa imagem. Eles são de Eldorado, uma região humilde de Contagem. O Cássio, diretor deles, sempre gostou dessa figura histórica e trouxe isso para a facção. Depois, a torcida atleticana fez uma provocação com uma bandeira que mostrava o René Barrientos[29], um dos articuladores do assassinato do Che. Eles são bobos a ponto de fazer isso. Nem procuram saber se o cara era um ditador… Queriam apenas nos atacar. Eu acho que o governo deveria proibir bandeiras provocativas que exaltam ditadores. Os idealizadores deveriam ser presos.

Em 2001, logo depois dos atentados ao World Trade Center, a torcida do Cruzeiro confeccionou uma bandeira para o Bin Laden que foi proibida, não é?

Sim. O nosso grupo da Zona Norte tem o Saddam Hussein como símbolo. Eu acho esquisito demais. Poderiam ter adotado outro. Em razão disso, naquela ocasião, outra das nossas facções resolveu adotar o Bin Laden. Porém fizeram isso sem conotação política. Era só para ter a imagem de um terrorista famoso e vender mais camisas.

Há outras faixas da Máfia Azul que ficaram famosas?

Sem dúvida. Eu fiz uma onde se lia “Canil a 50 metros” que gerou até problemas com a polícia. Era uma referência à separação das torcidas e uma provocação aos atleticanos. O presidente do clube rival achou um absurdo e ficou revoltado. Mandou tirarem a faixa e houve uma briga. No fim das contas, ela permaneceu por algum tempo até conseguirem tirá-la.

Depois, eu bolei uma camisa que vendeu mais de 5 mil exemplares só pela internet. As pessoas faziam fila em nossa loja oficial para comprá-la. Foi a que obteve mais sucesso. Nela havia um caixão do Atlético Mineiro e a inscrição “2003, eu vi o Cruzeiro ser campeão. 2005, eu ri”. Na época, os atleticanos acharam que o presidente do Cruzeiro havia idealizado tudo, mas, na verdade, fui eu.

Nos últimos anos, houve o surgimento de torcidas com um perfil de classe média e uma postura politicamente correta ao mesmo tempo em que os estádios estão se modernizando e os ingressos ficando mais caros. Qual é a sua visão sobre esse processo?

A meu ver, a elitização do futebol pode levar ao fim das organizadas. O esporte é movido pelo dinheiro. É um espetáculo caro e os clubes, ao se profissionalizarem cada vez mais, vão querer torcedores que tenham grana. Os membros de organizadas não possuem esse perfil e, aos poucos, estão sendo expulsos dos estádios. O programa de sócio-torcedor implantado pelo Cruzeiro, por exemplo, gerou sérios problemas para nós. Agora, precisamos pagar mensalmente um valor determinado para podermos ficar no setor lateral. Contudo, a maior parte dos nossos membros não têm condições de pagar e está indo para a geral. Isso fez com que nos dividíssemos em dois no estádio. A tendência nos próximos anos é que aja uma elitização ainda maior e que a própria geral desapareça.

Quanto a essas novas torcidas que adotam um comportamento mais light, aqui em Belo Horizonte surgiu a T. F. C., Torcida Fanáti-Cruz[30], fundada por pessoas de classes A e B, que tem um procedimento parecido com o das barras argentinas. Eles cantam o tempo todo e incentivam bastante. A minha opinião sobre isso é que o brasileiro já possuí sua forma de torcer e não precisa copiar os outros. Além disso, estádio não é igreja. Alguns palavrões, de vez em quando, não fazem mal. Eu acho que essa moda atende aos interesses dos clubes. No Rio Grande do Sul, por exemplo, a Geral do Grêmio[31] e a Guarda Popular do Internacional[32] acabaram com as organizadas que ocupavam aqueles setores.

É muito difícil reagir a esse processo, não é?

É complicado lutar contra algo muito bem montado. A minha visão é muito pessimista. Afinal, o que podemos fazer? Entrar à força? Ameaçar o clube? Nada disso funcionaria. O estádio é particular.  A situação só mudaria se os torcedores em geral tomassem consciência e reagissem.


[1] Entrevistador: Bernardo Borges Buarque de Hollanda; Local da entrevista: Belo Horizonte – MG, Brasil; Data da entrevista: 14 de março de 2010; Edição: Pedro Zanquetta Junior.

[2] O chefe da Máfia Azul: breve história de um francês em Minas Gerais

[3] Parc des Princes, estádio francês, localizado na cidade de Paris, inaugurado em 18 de julho de 1897 e reinaugurado em 4 de junho de 1972.

[4] Paris Saint-Germain Football Club, clube francês fundado em 12 de agosto de 1970.

[5] Association Sportive de Saint-Étienne Loire, clube francês surgido em 19 de junho de 1929.

[6] Francis Borelli, presidente do Paris Saint-Germain Football Club entre 1978 e 1991.

[7] Racing Club de Lens, clube francês fundado em 1906.

[8] Racing Club de France, clube francês fundado em 1882 e

[9] Universidade Federal de Minas Gerais.

[10] Grêmio Esportivo e Cultural Torcida Organizada Máfia Azul, fundada em 5 de junho de 1977 sob o nome de  Máfia Azul Cru Fiel Floresta.

[11] Grêmio Recreativo Esportivo e Cultural Torcida Jovem do Cruzeiro, surgida em 7 de setembro de 1970.

[12] Júlio Firmino da Rocha, conselheiro do Clube Atlético Mineiro desde a década de 1960 e fundador da Charanga do Galo.

[13] Torcida Organizada Esquadrão Atleticano, fundada em 26 de janeiro de 1990.

[14] Grêmio Cultural Recreativo Torcida Organizada e Escola de Samba Galoucura, surgida em 11 de novembro de 1984.

[15] Supras Auteuil, torcida do Paris Saint-Germain, filiada ao movimento ultra europeu, surgida no início dos anos 1990, na tribuna Auteuil do estádio Parc des Princes. Na mesma conjuntura, apareceram naquela tribuna outros três agrupamentos de torcedores: os Lutece Falco, os Authentiks e os Tigris Mystics.

[16] Artur Guilherme Moraes Gusmão, goleiro que defendeu o Cruzeiro Esporte Clube entre 2003 e 2007.

[17] Toca da Raposa, centro de treinamento do Cruzeiro Esporte Clube.

[18] Carlos Adriano de Souza Vieira, mais conhecido como Adriano Gabiru, atleta do clube de 2004 a 2005.

[19] Cleofas Sóstenes Dantas da Silva, mais conhecido como Cléo, comandou a Mancha Verde entre 1987 e 1988.

[20] Grêmio Recreativo e Cultural Torcida Mancha Alviverde, fundada em 11 de janeiro de 1983.

[21] Torcida Organizada Independente, surgida em 17 de abril de 1972.

[22] Torcida Organizada Camisa 12, fundada em 1969.

[23] Torcida Uniformizada Os Imbatíveis, criada em 20 de outubro de 1997.

[24] Grêmio Recreativo Esportivo e Social Leões da Torcida Uniformizada do Fortaleza, surgida em 17 de fevereiro de 1991.

[25] Grêmio Recreativo e Torcida Organizada Leões da Fabulosa, fundada em 26 de fevereiro de 1972.

[26] Grêmio Recreativo Cultural Torcida Jovem do Flamengo, criada em 6 de dezembro de 1967.

[27] Grêmio Recreativo Torcida Organizada Força Jovem do Vasco da Gama, fundada em 19 de fevereiro de 1970.

[28] Torcida Pavilhão Independente, criada em 28 de outubro de 1997.

[29] René Barrientos Ortuño, presidente do Estado Plurinacional da Bolívia entre 5 de novembro de 1964 e 26 de maio de 1965.

[30] Torcida Fanáti-Cruz, fundada em 27 de julho de 1999.

[31] Geral do Grêmio, torcida do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense criada em 2001.

[32] Guarda Popular do Internacional, torcida do Sport Club Internacional surgida em 2004.

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Bernardo Borges Buarque de Hollanda

Professor-pesquisador da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV).
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