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Gabriel Uchida

Equipe Ludopédio 10 de julho de 2013

O fotógrafo Gabriel Uchida vem observando e registrando a paixão, angústia, alegria e desespero das torcidas de futebol desde 2009. O material fotográfico produzido é publicado no site FotoTorcida.

Nesta entrevista, Gabriel relata sua trajetória, narra alguns causos de arquibancada e experiências que transcendem o próprio universo do futebol.

Boa leitura!

O Fotógrafo Gabriel Uchida. Foto: Max Rocha.

 

 

Primeira parte

 

Gabriel, conte-nos sobre a sua formação. Quais foram suas principais influências?

Bom, eu sou jornalista. Nunca estudei fotografia… Mas o que eu acho mais importante para a minha formação é ter vivido em meio ao futebol desde criança, ir em estádio desde criança. Até os 15 anos eu tinha um campinho de futebol na frente, atravessando a rua de casa. E, apesar de nunca ter estudado fotografia, eu sempre me interessei muito por cinema, por música, por quadrinhos. Acho que isso me influencia bastante. Acho que essa é a minha formação. Eu até brinco, quando me perguntam das minhas influências na fotografia, eu falo: “minhas influências são Hunter Thompson, jornalista gonzo, são Joe Sacco, que fazia quadrinhos muito sobre a questão palestina”. E uma série de outras pessoas que não tem nada a ver com fotografia. E se eu for citar um fotógrafo como referência, vai ser, sei lá, a última pessoa que eu citaria. Minha formação é essa. Como eu estou passando uma mensagem, eu estou mostrando meu ponto de vista de alguma coisa. Então, o que me influencia nisso não é só outros fotógrafos ou a fotografia em si. É o que eu faço, o que eu leio. A minha influência são as pessoas que eu leio, a música que eu ouço, sei lá, o vegetarianismo, que eu sou vegetariano há muito tempo, é andar de bicicleta pela cidade. Sabe? A minha formação, no início, é em jornalismo. O jornalismo foi importante dentro desse processo do FotoTorcida, desse meu projeto, foi bem importante, por conta de mediar com o olhar, pensar certas coisas. Mas, na minha formação, eu acho muito mais válido os livros que eu leio, a música e passear pela cidade fotografando…

Como você entrou na fotografia? Como a fotografia chegou à sua vida?

É engraçado. Se for parar para pensar a minha carreira como fotógrafo, digamos assim, ela está intimamente ligada com esse projeto, eu basicamente comecei a fotografar junto do começo do FotoTorcida. Antes de começar esse projeto, eu tinha brincado de fotografia uma ou outra vez e tinha feito um ensaiozinho num ato de Dia das Mulheres aqui em São Paulo, num 8 de março. Era uma única vez que eu tinha saído para fotografar. Aí quando eu tive a ideia desse projeto, foi quando eu estava começando a fotografar. E daí, então, segue junto: a minha carreira de fotógrafo, do aprendizado da fotografia, com esse projeto. Tanto é que, se você pegar fotos do primeiro ano do FotoTorcida, eu só não apago porque eu reconheço aquilo como registro histórico, importante não só pela torcida, mas também para mim, uma coisa mais de lembrança minha. Mas na questão da qualidade da fotografia tem muita coisa ruim, tem muita coisa que hoje eu não publicaria de jeito nenhum. Apesar de ter muita coisa que eu me interesso bastante, que eu vejo, “porra, lá em 2008, 2009, eu fiz isso com uma camerazinha bem menor…”, às vezes eu fico até feliz.

Como é a sua ligação com o futebol? Como você se apaixonou? Qual que é a sua formação no futebol?

O futebol sempre esteve muito presente na minha vida. Meu tio foi jogador de futebol, Henry Chiste Fleming, ele jogou no Atlético Mineiro, jogou na Europa, jogou no Benfica, no Porto, jogou no Rio. E, como eu falei, eu cresci numa rua que tinha um campo de futebol, que tinha um time da região. Eu morava numa cidade bem pequena do interior, morava dentro de uma usina de cana-de-açúcar, morava na zona rural mesmo, e tinha o time da usina, que era formado mais pelos trabalhadores, cortadores de cana, pessoal da indústria. Então, de uma forma ou de outra, tanto na família, por conta do meu tio, quanto ali no bairro, eu sempre tive essa influência do futebol. Até porque, como eu cresci na zona rural, o meu círculo ali era, o meu ambiente estava fechado numa vila, não era nem uma rua, era uma vila com 10 casinhas e um campo de futebol. Esse era o meu ambiente. E a diversão. A gente não tinha nada na zona rural. Mal tinha televisão, a televisão não pegava direito. Nossa diversão era nadar no rio ou jogador futebol. Nadar no rio não dava para fazer sempre. A qualquer momento podia jogar futebol. Meu pai me levou ao estádio uma ou outra vez. Jogava no time da cidade, de futebol de salão. É, foi isso. Sempre, de uma forma ou de outra, futebol sempre teve na minha vida. Seja parente, seja escola, seja criança, clube do bairro, futebol sempre teve lá.

E quando você decidiu fotografar o futebol? Você começou com fotografia junto com o projeto do FotoTorcida. Mas quando você decidiu: “agora eu vou fotografar o futebol”?

Foi muito por acaso. Por conta dessa história de ter o futebol sempre próximo. A partir dos 18, eu já comecei a ir em estádios com muita frequência, toda semana. Teve um jogo, certa vez, que era a última rodada do Campeonato Paulista, era a rodada que ia decidir quais times iriam para a 2ª fase. O Santos foi jogar no interior com a Ponte Preta. Eu sou santista. E em São Paulo jogou Portuguesa e Santo André. E eu tenho muitos amigos de Santo André que vão ao estádio, que são amigos, assim, de mais de 10 anos. Aí como eu ia ter que ficar na cidade, e não ia poder ver o jogo do Santos, eu fui encontrar meus amigos no Canindé. Como eu não estava nem ligando muito para o jogo em si, levei a câmera, que eu tinha acabado de comprar, e fiz umas fotos. Como o que importava mais ali era a festa, a torcida, que era bem menor, bem reduzida, e conhecia mais eram as pessoas, me impressionava mais o sentido ali do que o jogo em si. Então, eu acabei fazendo foto dos meus amigos. Foi aí que eu tive a ideia, porque naquela época eu já era jornalista. E aí foi um insight, sabe? Falei, porra, ninguém produz nada muito ligado à torcida, cultura do futebol, a não ser coisa de jogador. O que tem, o que passa é o que acontece no jogo. O que passa além do jogo? Aí que eu tive a ideia. Eu não sei se foi em 2009, em 2008, tem que ver no site, mas foi a última rodada do Paulista. Estavam disputando uma vaga. O Santo André, a Portuguesa e a Ponte Preta. E o Santos acabou passando. Eu não lembro direito. Acho que o Corinthians foi campeão do Paulista nesse ano. Deve ter sido então 2009. Mas foi o primeiro jogo. Aí que eu tive essa ideia, mas aí eu parei para pensar. Eu sempre quis ter muito controle autoral das minhas coisas, sabe? Jornalista tem essa coisa de querer pensar muito no editorial das coisas. Pelo menos, eu tenho. Aí eu parei para pensar, fiquei dias pensando qual que seria a linha editorial. Até que ponto eu iria. É lógico que isso tudo foi se moldando um pouco, foi se transformando um pouco ao longo do tempo. A partir desse jogo, que eu parei para pensar, falei: “não, vou fazer isso, isso e isso, vou até esse ponto”. E foi assim que começou.

Gabriel Uchida. Foto: Max Rocha.

Você comentou que tem uma proposta numa linha editorial. E como que definiria essa linha editorial que você procura seguir? Como é que você pensa o seu próprio trabalho?

É difícil. É, eu penso assim. Até uma coisa que está meio de slogan no site, é “futebol além das 4 linhas”. Isso explica um pouco, mas ainda é muito aberto, é muito amplo. Minha linha editorial é assim: os torcedores, a festa. E é mais uma coisa assim de um grupo mais marginalizado do futebol, do futebol tanto quanto o futebol da imprensa quanto o futebol que está sendo hoje. Eu penso em mostrar o que não aparece. É muito mais mostrar o que não aparece na mídia no geral, sabe? Sempre. Agora têm aparecido mais. Eu tenho mandado muita coisa. Não gosto de mandar muito, mas tenho mandado algumas coisas para alguns sites às vezes. Mas foi isso. Mostrar o que muita gente conhecia, mas que não era mostrado na imprensa. E tentar mostrar, assim, uma coisa mais humana do futebol. Uma das minhas ideias iniciais foi isso. Pensar o lado mais humano do futebol. Eu nunca fui muito fã de jogador de futebol, apesar de gostar de futebol. Eu nunca tive essa coisa muito de fã, de ídolo. Se for parar para pensar, eu nem gosto muito do Pelé. Se eu falar isso, os santistas vão querer me bater. Acho que sou o único santista que não acha muita graça no Pelé. Prefiro muito mais o Sócrates, que é tido como um ídolo corintiano, apesar de ter jogado um tempinho no Santos e ter falado que enquanto criança ele era santista, do que o Pelé, que é um grande ídolo mundial. Mas eu nunca tive muito essa coisa de ídolos do esporte, do futebol. E também acho que por conta das minhas preferências em literatura e música, eu sempre fui uma coisa meio underground, uma coisa mais marginal. Então, eu fugi dos holofotes do futebol para mostrar o lado mais humano, acho que foi isso.

E o Neymar?

Cara, eu nunca gostei muito do Neymar. Mas, depois de um tempo, se eu for parar para pensar, depois do Neymar, o Santos ganhou a Libertadores, ganhou Copa do Brasil, ganhou tudo. Eu não gosto do estilo de jogo dele, do estilo dele. Eu estive falando com o Zé Elias, que jogou também no Santos por duas temporadas, que era muito conhecido por ser de pegada, de ser “cavalo”, que a gente fala na gíria. Eu falei para ele, “pô, Zé Elias, eu gosto muito mais do seu estilo, uma coisa mais gaúcha, um pouco das antigas, assim, de pegada, de raça, do que desses jogadores novos”. O Neymar não tem muito o que falar. Eu não gosto do estilo dele, mas ele tem resolvido para o Santos há algumas temporadas. Enfim, como torcedor, se não tivesse o Neymar… Quando o Santos joga sem o Neymar não vai ninguém ao estádio, o jogo é muito diferente. Como torcedor ele resolve para o meu time. Ele resolvendo para o meu time está ok, mas eu não gosto do estilo dele, não gosto das coisas que ele faz extracampo. Como torcedor eu gosto de ver o meu time ganhando, ver um time que levanta a taça. Então é um preço que eu sei que se paga (risos).

O seu trabalho de fotografia não se limita só ao futebol. O que mais que você tem fotografado?

Atualmente, por conta da Copa, eu tenho focado mais no futebol, mas outro projeto que eu faço dentro de fotografia, além de futebol, é fotografar os cantores de hip hop. Eu estou sempre muito com o Dexter, que é um cara que saiu da penitenciária há 2 anos. Mas, por conta da proximidade da Copa, tem surgido muita coisa. E eu estou focando mais de 100%, 200% no futebol. Mas esse é um projeto que eu mantenho sempre. Fotografando com o pessoal de hip hop. Eu costumo brincar, falar: “ah”, às vezes ou de fim de semana, ou eu estou fotografando os marginalizados do futebol ou os marginalizados da música brasileira”, que é o pessoal do hip hop. Não está mais tão marginalizado hoje, mas enfim… Essa é a brincadeira que eu faço. Estive vários dias nos protestos, mas apenas um fotografando. Por acaso, foi na quinta-feira, 13 de junho, o dia mais violento. Eu estava bem preocupado com o rumo que as coisas estavam tomando e acabei decidindo fotografar apenas a polícia, o que era também uma forma de chamar a atenção para a ação absurda dos oficiais. Assim como outros jornalistas, também tive problemas naquele dia. Em determinado momento, um policial me pegou pelo braço. Não fazia sentido, porque eu carregava minha câmera e estava com o crachá da Associação dos Repórteres Fotográficos e Cinematográficos do Estado de São Paulo. Tive que repetir por inúmeras vezes que era imprensa mas ele não estava muito disposto a acreditar, mesmo puxando meu crachá do peito para ler. Por sorte, outros fotógrafos viram a cena e começaram a registrar, o que acredito que inibiu um pouco a ação, e eu acabei solto. Como muitos outros profissionais, também fui alvo de bala de borrachas e bombas, mesmo quando estava sentado em um ponto de taxi, guardando meu equipamento para ir embora. Na verdade, o que eu vi nos dias mais violentos de protestos foi bem parecido com o que acontece nos estádios. A única diferença é que em alguns dias até a imprensa foi atacada pela polícia, de resto, tudo muito igual. Outra semelhança com os dias de jogo foram as pessoas. Muitos dos que estavam na linha de frente eram integrantes de torcidas. Posso afirmar porque conversei pessoalmente com muitos deles ou então reconhecia vários rostos no meio da confusão. As vezes era até surpreendido por algum mascarado que chegava perto e falava “E aí, FotoTorcida”.

Protestos em São Paulo. Fotos: Gabriel Uchida – FotoTorcida.
Protestos em São Paulo. Fotos: Gabriel Uchida – FotoTorcida.
Protestos em São Paulo. Fotos: Gabriel Uchida – FotoTorcida.

 

Você falou assim: começou num jogo do Santo André e Portuguesa, no Canindé. E como é que você estruturou o trabalho? “Agora vou fazer um site disso, começar a fazer mais e mais e procurar jogo para ir…”. Como é que foi?

É muito louco isso, porque parece até megalomaníaco, mas não é. No começo, quando eu pensei no site, eu tracei uma proposta, uma linha editorial e um plano de curto, médio e longo prazo. Eu tracei o que eu preciso fazer para tocar esse projeto em frente é conseguir uma relação estável com as torcidas porque eu vou estar entrando na casa delas. E torcedor de futebol, e mais ainda torcida organizada, não gosta de imprensa, de gente mostrando a cara deles. Então, a princípio, era divulgar o projeto e conseguir estabelecer uma relação de confiança, conseguir espaço ali na arquibancada, porque eu sempre estive na arquibancada e em 90% dos casos em setores mais populares, mais baratos, que são com a torcida. Conseguir alguns contatos e explicar meu projeto, conseguir uma legitimidade dentro da arquibancada, conseguir uma liberdade para fotografar. A médio prazo era obviamente crescer do ponto de vista da qualidade da imagem, adquirir equipamento novo, ter um público maior, uma visibilidade maior. E, a longo prazo, acredito, mais perto do que eu esteja hoje, é expandir esse projeto. Por exemplo, hoje eu estou fazendo um filme, baseado no FotoTorcida, e, além disso, está sendo filmado um curta, que é em cima da minha figura como jornalista, como eu desenvolvo o FotoTorcida. Eu faço muitos projetos para fora. Eu estive recentemente na Etiópia, levando uma exposição minha de fotos, que é uma exposição do FotoTorcida. Então, a longo prazo, era isso, expandir. Hoje eu tenho publicação certamente em mais de 20 países diferentes. Eu tenho exposição minha que, de repente, fechou na Etiópia, mas que já tem propostas para ir a três outros países da África, Alemanha também. Felizmente deu tudo certo, eu consegui me organizar. E é isso. Agora eu estou com essas coisas de fazer filme, de continuar fazendo projeto para fora. Eu brinco que por conta de eu me misturar, me juntar muito com torcida, eu virei um marginal também aqui, porque eu tenho muito problema de credenciamento, eu sempre sou barrado em alguma coisa maior. Na final da Libertadores eu fui barrado, mesmo depois de ter conversado, mesmo explicado: “eu tenho empresa, tenho CNPJ, tenho tudo certo no site…”. Eu fui barrado. Mas para fora não. Para fora é um tratamento, é um respeito, é uma relação muito diferente. Então eu tenho me interessado mais em fazer esses projetos para fora. Eu tenho uns jornalistas ingleses com quem eu sempre colaboro, sempre faço ensaios para eles. Na Alemanha também, eu tenho muita coisa publicada. Eu tenho me interessado mais em fazer essas coisas para fora, que tem um reconhecimento e é também uma resposta mais bacana, e também financeiramente é mais interessante.

Como é a abordagem com os torcedores?

Hoje eu estou na 5ª temporada do FotoTorcida. Então, hoje as pessoas estão acostumadas comigo, porque eu fotografo mais aqui em São Paulo. Então, fica mais em São Paulo, Corinthians e Palmeiras. Depois de 5 anos, se você frequenta estádio, as pessoas têm meio que um ritual de ficar sempre no mesmo lugar, fazer sempre as mesmas coisas. Tem quem pode me ver lá também, sabe? As pessoas estão no mesmo lugar, em algum momento vão me ver passando. Porque eu sempre fico na arquibancada. Eu nunca entrei no gramado do Pacaembu, por exemplo. Então, hoje em dia, já é uma relação muito amigável, já criei muitos amigos, já criei conhecidos. É tranquilo. E disso tem casos engraçados, dos próprios torcedores, de um ou outro caso, de intervirem e me protegerem de alguma situação. Tem um caso bem interessante que foi o mais grave, e recente, que foi ano passado, no final do Brasileiro. O Palmeiras estava mal. E foi um clássico contra o Corinthians, o Palmeiras já estava desacreditado, no Pacaembu. E estava todo mundo explorando essa coisa do sofrimento palmeirense, que a torcida obviamente não gosta. Eu tinha acabado de chegar no estádio, e tinha ido junto com a Mancha Verde, do Palmeiras, caminhando desde o Palestra Itália até o Pacaembu. Tinha acabado de entrar na arquibancada, veio um torcedor meio exaltado reclamar comigo. Eu estava só caminhando, estava com meu equipamento, que eu uso duas, três lentes, uma pochete, uma mochila. O cara me viu com a câmera, veio para cima, começou a reclamar por que eu estava ali, que eu ia mostrar palmeirense chorando, que não era para fazer isso. Só que ele estava muito exaltado. E aí já falei: “não, você sabe quem eu sou? Sabe o que eu faço?”. Só que ele estava muito exaltado e já veio para cima, assim, de uma maneira agressiva. Até chegamos a debater, ele tentou me agredir. No que ele tentou me agredir, eu só segurei. Só que nesse momento, vieram, sei lá, vinte caras da torcida organizada e foram para cima do cara, me proteger. Aí depois essas pessoas conversaram com ele e ele ficou o resto do jogo me pedindo desculpa, falando que não conhecia, que eu devia entender o lado dele, mas que ele estava errado. Mas é isso. Eu tenho uma relação já bem sólida e de confiança com a torcida. Muitas vezes, eles falam: “ó, vai acontecer tal coisa…”, “ah, isso toma cuidado…”. Já aconteceu muitas vezes de eu estar num jogo perigoso, de estar acontecendo várias brigas ao redor do estádio, uma pessoa chegar e falar assim: “ó, daqui 5 minutos, a gente vai entrar, fazer tal coisa ali, toma cuidado. Se você quiser, você pode até fotografar…”. Apesar de eu nunca mostrar briga, a pessoa fala: “ó, pode até fotografar, mas toma cuidado”. Então, tem essa relação de uma confiança bem grande, que isso, hoje em dia, eu falo até, é o que eu mais prezo. Eu busco muito mais manter uma relação, manter uma postura com as torcidas, de confiança. Não que eu fique, sei lá, dependente deles. É mais manter uma relação estável, de confiança com as torcidas do que ter uma foto bacana. Uma atitude hoje em dia do FotoTorcida é muito mais importante do que eu conseguir, sei lá, 50 mil acessos no dia. Mas é isso, minha relação hoje é muito boa, as pessoas me ligam. Recentemente teve um caso que foi interessante. Uns torcedores do Palmeiras foram fazer um protesto em frente ao Pacaembu, ali na Praça Charles Miller. Eles pregaram 12 cruzes em frente ao estádio. Algumas delas tinha nome de torcedores palmeirenses. Eu recebi uma ligação no meio da noite, falando, “ó, Uchida, a gente vai fazer isso, isso e isso no meio da madrugada. Se você quiser, pode ir lá. A gente só está avisando você”. O que aconteceu? Eu fui lá no meio da madrugada, consegui fazer as fotos, a polícia chegou. No dia seguinte só eu tinha essas fotos. Foi notícia em vários jornais. Foi a primeira pergunta da coletiva de imprensa. Só eu tinha as fotos e fui eu que falei para a imprensa: “ó, aconteceu tal cosia”, porque ninguém estava sabendo. Eu lembro que de manhã eu mandei mensagem para um cara do Lance!, “ó, aconteceu tal coisa, vocês estão sabendo? Vocês viram? Fotografaram?”. Aí: “Não, não sei, não estou sabendo…”. Começou o burburinho, eu lembro que, nesse dia, uma foto que eu publiquei cedo – eu posto, sei lá, 10 horas da manhã – chegou 5 horas da tarde. Só essa foto tinha mais de 60 mil visualizações. E uma das primeiras perguntas da coletiva de imprensa foi sobre esse protesto. O presidente do Palmeiras deu uma entrevista falando desse protesto. Então foi uma coisa que só eu estava ali por conta dessa minha confiança. Fizeram no meio da madrugada obviamente para não se prejudicarem, para não ter nenhum problema com polícia, com segurança, e me avisaram.

Torcedores do Palmeiras protestam contra os jogadores do clube em frente ao Pacaembu. Foto: Gabriel Uchida – FotoTorcida.

E rola muito isso. Às vezes uma torcida vai estrear um bandeirão novo, alguma coisa assim, eles sempre me avisam. Mesmo as pessoas de foram, quando vem para São Paulo, eles me ligam. Tem muito disso. Agora, mais recentemente, nos últimos dois anos, eu tenho criado uma relação mais interessante também com as torcidas de fora do país… As torcidas da Colômbia, da Argentina. Tem rolado um contato bacana. Inclusive, na final da Libertadores, quando foi Corinthians e Boca no Pacaembu, eu fiquei negociando um tempão para eu ficar na mesma torcida do Boca Juniors, La Doce, que é uma torcida mundialmente conhecida por ser perigosa, que tem uma série de casos de violência, que está todas as semanas nas capas dos jornais lá na Argentina com prisões, com coisas obscuras. Eu fiquei negociando. Só que daí me barraram. O Corinthians me barrou nesse jogo. Nesse jogo eles pediram credenciamento especial e falaram que iam dar prioridade para quem estava acompanhando o Corinthians com mais regularidade. Eu, nos últimos cinco anos, devo ter feito acho que 90% dos jogos do Corinthians no Pacaembu. Só que daí me barraram por uma série de questões. Eu ainda tentei negociar, falar: “ó, eu não vou para espaço de cabine, nem vou ocupar espaço no gramado, vou ficar na arquibancada…”. Mas não, fui barrado. Uma coisa interessante até desse jogo também, para falar dessa minha relação com a torcida, foi que esse jogo é um jogo que todo corintiano queria ir, gente estava vendendo ingresso por milhares de reais. Eu já cheguei a ver por 5 mil reais o ingresso. E nesse dia, quando eu falei, “ó, o Corinthians está me barrando. Eu não vou para o jogo”, eu recebi várias ligações de gente de torcida falando, “ó, eu tenho ingresso para você. A gente vai ter dar o ingresso”. Falei, “não, não quero. Porque eu não quero ingresso. Se eu pegar o ingresso, vou estar tirando de mais um corintiano”. Porra. É o momento mais especial, mais importante da vida do corintiano e eu vou tirar o ingresso de um cara? Eu não vou lá para torcer. Para mim, pouco importa se o Corinthians for campeão. Eu vou tirar o ingresso de uma pessoa e pode ser o melhor dia da vida da pessoa? Não vou tirar esse ingresso. E as pessoas me ligando, falando: “não, tem ingresso separado para você. Você vai nesse jogo. O ingresso está aqui”. Falava, “não vou. Ou eu entro com credencial ou eu não entro. Eu não vou tirar de jeito nenhum a oportunidade de uma pessoa estar lá”. Para essa pessoa vai ser provavelmente o dia mais importante da vida dela. E foi. Possivelmente, foi um dos dias mais importantes. No contexto do futebol. E eu ia me sentir eternamente mal por ter tirado uma pessoa. Uma pessoa não pode assistir o Corinthians ser campeão da Libertadores, uma coisa que estavam esperando há 100 anos, para eu poder fazer minhas fotos. Não, não ia fazer isso. Mas, então, é uma coisa que mostra essa minha relação. Várias torcidas estavam dispostas a me dar o ingresso, que estava custando milhares de reais, só para eu estar ali fazendo as fotos. Fiquei muito puto esses dias, fiquei extremamente chateado. Até encontrei umas pessoas no estádio, “não, tenta entrar lá. Vai por trás, vai pelo no ginásio”, mas falei, “não, me barraram, então não rola. Eu vou para casa. Vou assistir o jogo do sofá”.

Você falou dessa importância da relação com a torcida e de como você se apresenta em relação à torcida. Você conseguiria traçar um perfil de como as torcidas te veem? Se elas te veem como um representante de imprensa alternativa, ou se te veem como um jornalista que de alguma forma desenvolveu uma relação de amizade? Ou isso nem passa por essa relação de imprensa ou de fotografia e que está numa relação mais pessoal? É claro que deve ter variação de torcida para torcida. Mas como você imagina que as torcidas te veem?

Veem-me claramente como um deles. Não me veem como jornalista. Não me veem como imprensa em momento nenhum. Eles sempre falam, “não, você é um dos nossos”. Quando eu vou ao Pacaembu fotografar jogo do Corinthians, eles até brincam, falam, “é, você veio ver o seu time hoje”. Tudo, eu falo abertamente, em qualquer momento, que eu sou santista. Eu lembro, inclusive, que teve um jogo importante, que foi o São Paulo e Corinthians, na Arena Barueri. Foi o único clássico desses dois times que foi jogado lá na Arena. Eu fui com as torcidas do Corinthians de trem para Barueri. Teve uma organização especial, que juntou todas as torcidas, foram para a Barra Funda, da Barra Funda pegaram um trem direto para Barueri. Eu fui nesse trem, no meio dos caras. Depois uma longa caminhada até o estádio. E teve um cara, que era diretor da Gaviões da Fiel, que chegou para mim e falou, “porra, você além de ser jornalista, você não é corintiano. Mas a gente gosta de você e você pode ficar aqui tranquilo”. Então, é isso, tem duas coisas para eles que é fatal: ser jornalista, é a pior coisa do mundo, às vezes muito pior que ser policial, e não ser corintiano. Mas é assim, é a relação, me veem como um deles. Às vezes, muitas vezes, como uma pessoa que tem mais voz, que pode falar alguma coisa. Muitas vezes alguma pessoa me chama e fala, “olha, está acontecendo tal coisa ali, a polícia está batendo na gente ali em cima. Pô, fala sobre isso…”. Com esse tempo todo, eu consigo ter um público grande já. Hoje eu publico uma foto na internet, chega a ter 150 mil visualizações num dia. Se eu escrevo uma coisa, em poucos segundos, eu consigo ter uma abrangência de pelo menos 2 mil pessoas, em instantes. Então, as pessoas me veem também, uma coisa meio que um porta-voz, sabe? Mas me veem como um deles. E também por ser um projeto independente e só eu trabalhar nesse projeto. Já teve gente que se interessou em fazer junto, mas sempre fiquei muito preocupado, porque é uma relação tênue. Ao mesmo tempo em que eu estou ali e eles gostam de mim, confiam em mim, eu posso fazer alguma coisa que eles vão me odiar. Por exemplo, uma vez, em março, teve uma briga entre corintianos e palmeirenses, e dois palmeirenses foram mortos. Eu conhecia, eu era amigo de um dos meninos que foi morto e nessa semana a notícia ficou, sei lá, 1 mês na imprensa, pelo menos. E, nos dias seguintes, muita gente me procurou pedindo foto das torcidas. Eu tinha, eu tenho centenas, de verdade, centenas de fotos do cara que foi morto e provavelmente centenas de fotos das pessoas que estavam envolvidas. No dia, eu poderia ter feito 5 mil reais, pelo menos. Ou mais, nos dias seguintes também. Um dinheiro muito alto para a fotografia jornalística. E eu não quis. Eu falei, “não, não quero”. Aí um jornal, eu não lembro qual foi, publicou uma foto minha mostrando esse menino com os dois irmãos dele, que é uma foto bem forte, que é a linha de frente da torcida, são as lideranças, os caras grandes, fortes, tatuados, uma coisa meio hooligan. Um jornal pegou uma foto minha dessa, que mostrava o menino, os dois irmãos dele. Um dos irmãos foi preso no dia, inclusive. E publicou na capa do jornal. Com meu nome ali. Depois, no dia seguinte, outro jornal pegou a mesma foto e publicou a mesma foto. Quando os caras viram no jornal, falaram: “porra, o Gabriel está com a gente há tanto tempo, ele conhece o Lucas, conhece a família, conhece o Lucas, conhece todo mundo, e agora, porra, ele está vendendo isso, nesse momento tão complicado? Ainda mais ele que conhecia o menino?”. Teve um cara que falou: “quando eu vi o jornal, eu queria te matar”. Falou, “porra, por que ele fez isso com a gente?”. Quebrou nossa confiança total. Mas aí logo eu pretendi falar, “meu, roubaram a minha foto”. Logo eles entenderam. De cara, eles entenderam, “não, beleza, você não ia fazer isso”.

Gabriel Uchida. Foto: Max Rocha.

Mas é assim, é uma coisa que pode ser uma relação que é muito boa, mas que também, se eu não tomar cuidado, pode mudar a qualquer momento. Muitas vezes, eu converso com as pessoas de torcida. Muitos vêm reclamar. Eu fui moldando a estrutura da minha linha editorial, mas antigamente eu costumava sempre escrever em todos os posts, hoje já não escrevo mais. Tem uma coisa que me incomodava porque as pessoas não liam e, quando liam, não entendiam. E tinha uma coisa com rixa, que ficava muito acima de qualquer coisa. Por exemplo, se um palmeirense foi atacado pela polícia, “ah, foda-se, está certo, tem que ser atacado pela polícia”, se um corintiano foi atacado pela polícia, “não, eu tenho que falar disso, é um crime grave não sei o quê”. É uma coisa com rixa que chega a ser uma coisa ignorante até, sabe? Aí comecei a ter gente reclamando muito. Um dia eu parei para conversar com algumas pessoas, com algumas lideranças, com algumas pessoas que já tinham tempo de arquibancada, até com jornalistas. E eu falei, “não, vou parar de escrever. Pelo menos no site, por um tempo, até porque eu guardo essas histórias para colocar num livro futuramente”. Mas, assim, eu tenho que ter muito cuidado. Essa relação é uma linha tênue. Sei que, a qualquer momento, se eu der um passo errado, eles não vão gostar e vai ser uma coisa meio complicada. Acho que a confiança nem seria reconquistada. A torcida têm códigos éticos, morais, de disciplina, de confiança, muito fortes. É uma coisa que, meu, “ou você está com a gente ou você não está. Ou você serve ou você não serve”. Então, é uma coisa muito difícil. Felizmente, eu consigo, eles conseguem me entender também. Por exemplo, evidentemente eu falei dos corintianos presos. Eu não lembro exatamente quais foram as palavras, mas eu falei que era uma injustiça 12 pessoas presas. Podia ser que até um dos autores do disparo, desse caso do menino boliviano, estivesse na cadeia, na prisão, mas, de qualquer forma, se um deles estivesse, fosse o autor do disparo, tinha pelo menos 11 ali injustiçados. E muita gente achou ruim, falou, “é, você está defendendo. Você não tem que ser advogado de corintiano”. Mas é mais uma questão clubística. “Ah, eu sou palmeirense e odeio os corintianos”, sabe? Uma coisa assim. Mas eles conseguem entender que eu circulo em todas as torcidas, não importa que seja de A, B ou C, que seja de São Paulo ou do Rio. Mas é complicado. Eu tenho que ficar muito atento. Eu tenho que me policiar às vezes num comentário que eu faço na internet, porque qualquer coisa que eu escrevo na internet as pessoas estão lendo. Tem uma abrangência, tem um público já considerável, um número razoável de pessoas. Então, eu tenho que ficar meio que esperto com isso, para não quebrar essa confiança.

Confira a segunda parte da entrevista no dia 24/07/13!

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