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Jamil Chade (parte 7)

O jornalista Jamil Chade é correspondente do jornal O Estado de S. Paulo na Europa e colunista da Radio Estadão. Suas reportagens sobre os bastidores do esporte mundial renderam ao repórter diversos prêmios, além de participações na CNN, BBC, canais espanhóis, canadenses, suíços e de diversos países. Em 2011 e em 2013, Chade foi premiado como o melhor correspondente brasileiro no exterior pela entidade Comunique-se. Em 2015 publicou o livro “Política, Propina e Futebol: Como o ‘Padrão Fifa’ ameaça o esporte mais popular do planeta“, que relata os bastidores da entidade máxima do futebol e seus escândalos de corrupção.

Jamil Chade nas arquibancadas do estádio do Pacaembu. Foto: Equipe NAV.
Jamil Chade nas arquibancadas do estádio do Pacaembu. Foto: Equipe NAV.

Sétima parte

Recentemente, teve na Copa do Mundo de 2014 a “Máfia dos Ingressos”, que derrubou o secretário-geral, Jérôme Valcke, “braço direito” do Blatter. Em seu livro, tem uma passagem em que você diz que o Valcke coloca as provas nos e-mails que ele troca. Como você avalia o personagem dele nessa estrutura e se tem uma inocência dentro desse processo onde ele achava que todo mundo era amigo dentro da lógica da corrupção?

Eu acho que vai além da questão do amigo. Até um certo momento, as pessoas dentro da FIFA e também dentro do COI achavam que estavam acima da lei. Essa é a realidade. Eles achavam que, de fato, tinham poder ou que o produto que eles têm é tão influente, tão poderoso, tão atrativo para a parte comercial – notadamente, a televisão – e para políticos locais, que eles podem jogar com tudo isso. Eles controlam, para ser muito claro, o maior produto comercial do mundo. Que outro produto gera 5 bilhões de renda em um mês? É isso que a Copa do Mundo gera. Isso é uma explosão de renda. E com alguma razão, porque o futebol que a gente gosta não vai ser jogado, é um momento que inteligentemente só acontece a cada quatro anos. Senão, ele fica desgastado. Daí a briga do COI com a FIFA. O que é a briga do torneio de futebol da Olimpíada e da Copa do Mundo? É o desgaste. Se tiver uma Copa do Mundo a cada dois anos, a Copa do Mundo de fato terá seu valor reduzido. Então, eles têm um produto que é muito bem pensado. Em 1930, ele não foi pensado a cada quatro anos por conta disso. Era assim porque, primeiro, as seleções demoravam seis meses para chegar até o país sede. Hoje, esses quatro anos têm um sentido nessa direção que estou falando.

O que o Valcke escreve nos e-mails é chocante. Tanto ele quanto o cambista que está atuando em conjunto falam claramente em uma dessas mensagens trocadas: “Nós vamos ganhar mais do que investir na bolsa de Nova York.”. Não se tratava de Nigéria e Irã. Ele não vendeu ou tentou vender ingressos para esse tipo jogo, mas para os sete jogos da seleção brasileira, além da abertura, final, semifinais etc. E os e-mails mostram que existe a seguinte sensação ou sentimento interno: “Nós temos poder ou pelo menos temos o direito de fazer isso.”. O cambista que explode toda essa situação, você não pode dizer que ele é o inocente da história. Não, ele era o parceiro do crime. O que ele fez foi justamente provar pelos e-mails. Isso levou à queda do Valcke no mesmo dia que as matérias saíram. Foi no mesmo dia de tão escancarada que era a situação.

O que isso reflete do Valcke e da própria estrutura da FIFA? Isso também mostra a surpresa deles quando aconteceram as prisões. Por que tanta surpresa? Porque o sentimento interno era: “Não, aqui isso não acontece. Afinal de contas, nós compramos deputados, compramos políticos, compramos parceiros comerciais, compramos televisões… Isso não acontece aqui.”. Não digo “comprar” só no sentido de propina, mas em termos de aliança. Por exemplo: “Eu vou fazer três jogos na tua cidade que vai te eleger.”. Então, é um clientelismo que vai muito além daquela propina. Voltando para o Valcke, temos a situação de um dirigente com muito poder, a ponto de ele achar que pode usar em termos pessoais também. Quando se dá a virada desse jogo? Quando eles se dão conta de que não há mais esse espaço ou, pelo menos, isso aí vai ter que ser modificado.

Antes dessa própria história dos ingressos, tem um outro episódio que envolve o Valcke que também demonstra o poder que ele tinha. Na verdade, o grau de influência que ele tinha talvez explique por que ele tinha essa capacidade de falar tão tranquilamente “vende”, “compra” etc. Isso aconteceu em 2006, quando a FIFA tinha um contrato com a Mastercard. Esse contrato estava terminando, e a Mastercard tinha o direito de renovar esse contrato de forma preferencial antes de a FIFA passá-lo para outra empresa. O Valcke, literalmente, deu o “bolo” na Mastercard e passou o contrato da Copa do Mundo para a Visa. A Mastercard entrou com um processo nos Estados Unidos e ganhou o processo contra a FIFA e o próprio Valcke. O juiz que julgou o caso disse com todas as letras: “O senhor Valcke enganou o patrocinador.”. A FIFA foi multada em 90 milhões de dólares! Foi obrigada a pagar pela justiça americana. O Valcke deu, vamos dizer assim, um “desfalque” na FIFA de 90 milhões de dólares.

Naquela época, ele era o diretor de marketing, não o secretário-geral. Na coletiva de imprensa, Blatter disse: “Isso é inaceitável! Não toleramos isso aqui dentro. Eles [era o Valcke e mais dois funcionários de menor escalão] estão excluídos da instituição.”. Todos nós, jornalistas presentes, escrevemos a notícia. Eles nunca foram demitidos. Um ano depois, o cara que deu um desfalque de 90 milhões de dólares volta como secretário-geral da FIFA… Como? Qual o segredo? O que ele tem guardado que é tão poderoso que faz com que ele volte para essa posição? Quem é que pagou os 90 milhões? Quanto vai gerar esse novo patrocinador que vai compensar esse desfalque? Foi tudo uma grande estratégia? Então, ele ficou afastado oficialmente por um ano da FIFA. Ela não dizia que ele tinha sido afastado, mas sim excluído. Depois, voltando e lendo os comunicados de imprensa, é interessante notar que em nenhum lugar está escrito que ele foi demitido. “Excluído” queria dizer demitido? Não se sabia, mas essa palavra foi escolhida de forma muito cuidadosa.

Enquanto ele esteve afastado da FIFA, mas recebendo salário – sim, ele continuou recebendo seu salário durante esse período –, ele prestou consultoria para a CBF sobre como apresentar a candidatura para a Copa do Mundo de 2014. A CBF pagou por isso. Quando ele vira secretário-geral, ele é o dirigente que vai monitorar aquele próprio projeto que ele mesmo criou… Portanto, não é dizer que ele se achava poderoso. Não, ele tinha, de fato, muito poder.

Outro aspecto que fica muito claro é o salário que o Valcke chegou a ganhar: 8 milhões de dólares por ano. Às vezes, a gente fala ou escuta que o Neymar ganha muito dinheiro. O salário dele no Barcelona, se não me engano, começou com 6 milhões de euros. O Valcke chegou a ganhar mais do que o Neymar! É claro, o jogador ainda tem a imagem etc. que depois pode completar, mas em salário o secretário-geral da FIFA chegou a ganhar mais do que um astro de futebol. Então, esse comportamento dele tem que ser entendido dentro desse poder que ele tinha, e não: “Ah, vou vender três ingressos aqui, vou conseguir isso aqui ali para tentar…”. Não, é algo que é, vamos dizer assim, estrutural dele.

No livro, você fala de um personagem que pouco aparece aqui no Brasil, mas que tem sua importância ao desconstruir todo esse esquema, que é o Michael Garcia. Qual é a relação dele dentro dessa estrutura? Qual é o seu contato com ele?

O Michael Garcia foi um dos personagens enganados ou ludibriados pela FIFA. A FIFA prometeu que ele teria independência ao investigar o Catar e a Rússia. Prometeu para ele, também, que o trabalho dele seria levado adiante em termos de punição. Ele passou dois anos fazendo esse trabalho. A estrutura foi criada pela FIFA, ele era o investigador, e o juiz, o Hans-Joachim Eckert. Esse juiz alemão, irrelevante em seu país, virou, de forma inexplicável, o juiz independente da FIFA. O relatório chegou ao Eckert, e ele, simplesmente, essa é a realidade, o engavetou. Ele disse que não poderia publicar o relatório, mas assegurou: “Acreditem em mim: o relatório não diz nada de comprometedor.”. Se não diz nada de comprometedor, então o divulgue! Qual o problema de divulgar um relatório que não diz nada de comprometedor e que ninguém será punido? Mas não é isso que o juiz faz. Ele mantém sigilo e não pune ninguém. Aí o que o Michael Garcia faz basicamente é, primeiro, mostrar toda a sua indignação e, depois, pedir sua renúncia.

A parte que ainda está para ser revelada é: Qual a relação do Michael Garcia com o FBI nos Estados Unidos? Porque, no mesmo momento em que ele renuncia, aparecem as primeiras informações de que o FBI está começando uma investigação em relação à FIFA. Isso lá atrás, muito antes das prisões. Eu não estou dizendo que foi ele que chegou lá e falou: “Olha, vocês deviam investigar aquele pessoal da FIFA.”. A credibilidade do Michael Garcia foi afetada. Ele sabe disso. Sabe, também, que foi enganado por dois anos para fazer um trabalho que literalmente foi engavetado. Agora, o que é muito importante do trabalho dele é que ele acaba sendo subsídio inicial para uma coisa muito maior, que é a investigação do FBI.

Falando nos personagens diretamente afetados por essa investigação, o Blatter e o Platini, você tem acompanhado a vida deles pós-investigação? Você tem tido acesso a eles para produção de matérias ou tem lido sobre eles? Aqui no Brasil, pouco se fala deles após os fatos.

Os dois, de fato, tomaram uma postura de retração. No caso do Platini, se não me engano, deu apenas uma entrevista depois da saída dele. Foi para a imprensa francesa, e é absolutamente normal ter contatos com a imprensa de seu país… O Blatter é um personagem um pouco diferente. Eu não acredito que o Blatter só vivia do dinheiro da corrupção. O que o movia não era o dinheiro da corrupção, era o fato de ser tratado como chefe de estado, algo que ele adorava dizer. Era isso que ele queria! Não se tratava só dos milhões na conta dele, mas de quanto ganhava em status internacional. O que ele dizia às pessoas que trabalhavam com ele era: “Eu ainda vou ganhar o prêmio Nobel da Paz.”. Eu acredito que era uma ilusão, mas para ele era algo muito sério. Ele, de fato, achava isso. Por isso foi procurar o Instituto Nobel para estabelecer uma relação etc. Ele tinha, então, uma realidade um pouco diferente da do Platini.

O Blatter tentou manter isso na Suíça, fosse na própria imprensa do país, fosse na cidadezinha onde ele mora. Ele não pode sair da Suíça porque sempre tem o risco de ele ser preso. Ele vive uma relação curiosa. De tempos em tempos, parece que ele não aguenta e convoca a imprensa suíça para dar algum tipo de entrevista. É muito curioso porque, obviamente, ele tenta dizer que a vida dele está muito bem, que agora ele está muito mais relaxado etc., mas ele precisa dessa exposição. E a Suíça tem uma relação de amor e ódio com ele, porque ele, de fato, é um suíço conhecido no mundo todo, mas não exatamente pelos motivos que a gente gostaria.

Inclusive, agora no mês de agosto, a gente vai testar essa realidade do Blatter. Por quê? Porque em todo mês de agosto ele realiza uma festa no vilarejo dele, com salsicha, acordeão, vaquinhas etc. É literalmente uma festa caipira, no bom sentido, no interior da Suíça. É um pouco para agradecer a cidade dele. Eu tenho minhas dúvidas em relação ao que aquela festa tem como objetivo a isenção de impostos, não é? Porque de repente ele promove essa festa para atender à prefeitura local e não pagar exatamente os impostos… Enfim, tem alguma coisa que vai além. De qualquer maneira, essa festa já é realizada há muito tempo. Ele sempre convida alguns jogadores para estar presente…

A queda dele foi em junho de 2015. A festa de agosto daquele ano foi, obviamente, uma festa esvaziada. Afinal, quem é que queria ficar ao lado de uma pessoa questionada etc.? Mas a população local ainda estava lá. A deste ano eu gostaria de ver, inclusive para saber se ele ainda tem algum apelo popular na Suíça ou, pelo menos, no vilarejo dele. Imagine só: aquele cara que era recebido pelo Putin não consegue nem mais fazer a festa no vilarejo dele. Por isso que eu digo: a prisão dos cartolas, a queda dessa história vai muito além do dinheiro que eles foram pegos desviando. Era uma cultura que foi desmontada, uma cultura de motorista com luva branca abrindo carros para esse pessoal andar, uma cultura de um luxo fora do comum. Então, quando você tem esse mesmo pessoal indo para a prisão, é chocante, para além do dinheiro desviado.

Jamil Chade no estádio do Pacaembu. Foto: Equipe NAV.
Jamil Chade no estádio do Pacaembu. Foto: Equipe NAV.

Essa dimensão que o Blatter carrega valeria para todos os outros: Havelange, Teixeira, Marin, Del Nero, Chuck, Platini, Valcke?

Olha, alguns deles eram movidos por isso. Disso, eu não tenho nenhuma dúvida. Eu tenho impressão que parte do deslumbramento do Marin, quando ele voltou para a cena pública internacional, ou pelo menos nacional, se deve a isso. De novo, quarenta anos depois, ele voltou a ser alguém que as pessoas buscavam para entrevistar. Não tinha uma vez em Zurique que ele não desse uma entrevista. Não tinha. Era mais forte do que ele. Então, não só ele, mas vários ali na FIFA viviam justamente dessa percepção de que eles eram relevantes. Aí tem uma história do Marin que é muito divertida e que o pessoal que trabalhou com ele sempre dizia. Ele recebeu cartas de pessoas dizendo que infelizmente não podiam ir à abertura da Copa do Mundo. Eles convidaram obviamente todos os chefes de Estado. Uma das cartas que ele recebeu foi do Obama, agradecendo o convite, mas dizendo que não poderia ir e que lamentava. Provavelmente, não tinha sido nem ele quem escreveu a carta. E o Marin colocou num quadro a carta que dizia basicamente que o Obama não aceitava o convite. De certa forma, é um símbolo de uma pessoa que tinha descoberto que era relevante de novo, que podia ter influência, que podia falar e a imprensa iria buscá-lo.

Nesse sentido, por mais que ele esteja preso em domicílio na cidade de Nova York, o que aos olhos do público pode ser um absurdo, para ele que viveu toda essa vida, isso não poderia ser visto como uma punição muito dura?

O que eu digo é que a gente quer que um corrupto esteja na prisão, mas eu acho que a punição não é só a prisão. Uma punição pode ter outras dimensões. Para esse pessoal – e eu não estou dizendo que o Marin não mereça ir à prisão, não é isso –, a queda que eles tiveram é algo que jamais pensaram que aconteceria na vida deles. Então, você limitar alguém que viajava pelo mundo, que tinha um estilo de vida totalmente fora do padrão normal, a um apartamento, isso é uma punição. Pode não ser suficiente. Se fosse um pobre, certamente estaria numa prisão. Isso é verdade e essa é a parte injusta da resposta, mas posso garantir que para esse pessoal que viveu a FIFA durante vinte anos, e ele viveu ou FIFA ou a CBF, a queda que eles tiveram é uma punição muito grande. Não dá para a gente dizer: “Ah, ele está bem.”. A questão não é essa, é claro que ele está bem. O que era a vida dele antes? Essa é a comparação que deve ser feita.

Dentre os outros dirigentes da FIFA, eu me lembro do Napout, ex-presidente da Conmebol, que teve a cara de pau, até um dia antes de ser preso, de dizer: “Porque comigo é diferente. Eu vou abrir tudo. Comigo, é transparência. A Conmebol vai mudar…”. Ele deu o WhatsApp dele para todo mundo, dava entrevistas etc. E está preso. Então, você tem uma parte da cartolagem que achava que podia enganar. Não é o caso.

Eu insisto um pouco nessa parte dos processos. Por mais que a gente hoje ainda fale: “Ah, mas o Del Nero ainda está aí, o Infantino não resolveu a questão, os problemas continuam.”. Eles continuam, mas o sinal que essas prisões deram para eles é o seguinte: “Olha, aquele jeito que vocês faziam, aquela forma que vocês se comportavam não dá mais. Isso não dá mais!”. Eles podem tentar de outro jeito, podem oficializar a propina anunciando que a partir de agora vão receber mais dinheiro em termos oficiais, podem criar um mecanismo para a transferência de dinheiro. Antes era com envelope por baixo da porta do hotel, agora não. Agora eles podem anunciar que o projeto social deles vai receber mais dinheiro. Enfim, eles podem criar um novo processo. O processo não se destrói e refunda num sistema depois de quarenta anos de vigência. Então, não adianta pensar: “E agora? Acabou?”. Não. A história está no meio ainda. Estamos em 2017, e eles foram presos em maio de 2015. O julgamento nos Estados Unidos nem começou ainda. Essa história ainda vai ter um desdobramento que talvez a gente possa até se surpreender.

Enquanto ações do Infantino, ele aumentou o número de seleções em Copas do Mundo, ele tem criticado publicamente várias ações da gestão do Blatter, como por exemplo o Museu do Futebol em Zurique, que diz ser deficitário, e ele colocou uma mulher como secretária-geral. Essas ações geram algum impacto efetivo de maneira imediata ou elas servem só para ele se posicionar de um modo diferente, mas não tão diferente quanto a estrutura comporta?

As reformas que estão acontecendo na FIFA hoje são maquiagem apenas. Não foi feito nada de forma expressiva para mudar esse sistema que a gente conversou. Escolher uma mulher é óbvio que é importante e que tem um impacto. É óbvio que, além de mulher, Fatma Samoura é africana, negra e muçulmana. Então, a pergunta é: Como é que ela foi escolhida? Foi uma decisão democrática, as pessoas foram consultadas? Não, ninguém foi consultado. Essa é a parte genial de quem bolou essa estratégia. Quem é que vai levantar a mão, sendo que todos os outros são homens, e falar: “Eu vou questionar a escolha dessa mulher.”. O próprio Infantino vai dizer: “Você está questionando porque ela é mulher, negra, muçulmana.”. “Não, eu estou questionando porque você não consultou ninguém.”. Mas isso ninguém pode falar em público apesar de ser o clima geral dentro da FIFA.

Qual foi o critério que ele utilizou para trazê-la? Samoura não tem nenhuma relação com futebol. Não tinha e não conhece futebol. Então, você tem uma situação em que o Infantino de uma forma muito inteligente – por isso que falo que é maquiagem – trouxe alguém que simboliza tudo que a gente precisa hoje no mundo: diversidade, paridade e o não confronto com o mundo muçulmano. Ele trouxe para dentro sem consultar ninguém. É culpa dela? É claro que não é! Agora, a gestão dele não difere em nada da gestão anterior em termos de autoritarismo.

Eu te dou outro exemplo, para sair da questão da secretária-geral. Tem três instituições dentro da FIFA que, vamos dizer assim, lidam com caixa: o comitê de auditoria, o comitê de finanças e o comitê de compensações, que é aquele que paga salários. Para começar a história, o comitê de auditoria e o de compensações têm o mesmo diretor. Espera aí. O que paga salários é o mesmo que audita? Puxa… Sigamos em frente. E quem é o presidente do comitê de finanças? É o presidente da Conmebol, que é a entidade que teve três presidentes presos em sequência… O Infantino está “bem”, estamos numa situação “confortável” em termos de imagem para o exterior.

O que eu quero dizer com isso? Onde toca, onde de fato a reforma tinha que ser profunda, não só ela não aconteceu como é ainda mais concentradora de poder. Aí você vai ver quem é a pessoa de compensações e de auditoria e descobre que é justamente um cara da Eslovênia. Por que Eslovênia? Porque foi esse país que elegeu o novo presidente da UEFA. Esse dirigente era o secretário-geral do presidente da UEFA. Enfim, o que quero dizer é que a concentração de poder é muito grande. Não houve abertura da FIFA, não houve democratização das decisões, não houve uma escuta aos atores para tomar uma decisão sobre o que fazer. Então, por enquanto o que aconteceu na FIFA é pura maquiagem.

Jamil Chade nas arquibancadas do estádio do Pacaembu. Foto: Equipe NAV.
Jamil Chade nas arquibancadas do estádio do Pacaembu. Foto: Equipe NAV.

E a secretária-geral, o que tem dito? Ela tem se pronunciado? Como ela tem se posicionado? Ela tem se sentido usada pela própria FIFA ou isso faz parte do jogo dela também?

Ela trabalhava na ONU. Como eu tenho meu próprio escritório dentro da ONU, quando ela foi anunciada, levei uns dez minutos para ter o número de celular dela. Eu ligo para ela e, muito simpática, ela me diz: “Olha, eu não posso dar uma entrevista por dois motivos: primeiro, porque eu não tenho autorização; segundo, porque não sei muito de futebol ainda.”. De uma certa forma, ela é muito clara que tem um limite do próprio chefe dela e um limite em termos do assunto…

Eu tenho gostado muito das coisas que ela tem dito desde então. Mas o ponto principal continua sendo quem é o chefe dela: É a instituição e o futebol ou é o próprio Infantino? Por que digo isso? Porque na criação da “nova FIFA” o que se estabeleceu é que o secretário-geral no caso é a pessoa que tem uma independência na gestão da entidade, e o presidente é a parte política da FIFA. O que não está claro para ninguém é se esta gestão está sendo feita de forma independente de fato. Se, de fato, ela está tomando decisões que precisam ser tomadas ou decisões para atender aos interesses do próprio Infantino. Se esse processo tivesse sido feito de uma forma democrática – por exemplo, se três nomes tivessem aparecido e as pessoas tivessem elegido um desses nomes –, você poderia ter algum tipo não diria de garantia, mas pelo menos de um espaço maior para pensar que essa pessoa tem alguma independência. Como ela foi nomeada, obviamente que as questões sempre aparecem.

Agora, ela teve frases que eu sinceramente aplaudi. Uma questão foi a dos gritos xenófobos nos jogos no Brasil e na América Latina. A Conmebol entrou com uma petição na FIFA, dizendo: “Vocês precisam entender que isso é uma questão cultural.”. Aí ela deu uma resposta espetacular, rebatendo: “A última coisa que eu quero ouvir de alguém é que uma ofensa é cultural. A resposta tem que ser educação.”. Então, ela teve a capacidade de colocar, pelo menos em relação a este caso, uma linha muito clara, dizendo: “Não, não é isso.”. Obviamente, ela tem algum tipo de estrutura montada para ela. De todo modo, repito: a questão não é ela ou o que ela pensa, mas sim qual foi o processo de seleção dela. Por quê? Porque depois dela pode ser o presidente do comitê de ética ou o próprio juiz que vai ser selecionado por alguém. Então, será que a “nova FIFA” é tão democrática assim? Não.

Confira a última parte da entrevista na semana que vem!

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Marcel Diego Tonini

É doutor (2016) e mestre (2010) em História Social pela Universidade de São Paulo, sendo também bacharel (2006) e licenciado (2005) em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP - Campus de Araraquara). Integra o Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO-USP) e o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (LUDENS-USP). Tem experiência nas áreas de Ciências Sociais e História, com ênfase em Sociologia do Esporte, Relações Étnico-raciais, História Oral e História Sociocultural do Futebol, trabalhando principalmente com os seguintes temas: futebol, racismo, xenofobia, migração, memória e identidade.
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