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Marcelo Weishaupt Proni (parte 2)

Marcelo Weishaupt Proni é professor livre docente da Universidade Estadual de Campinas e ex-diretor associado do Instituto de Economia. Tem experiência de ensino e pesquisa nas seguintes disciplinas: desenvolvimento econômico, mercado de trabalho, políticas públicas. Realiza estudos sobre economia do esporte, marketing esportivo e futebol-empresa. É autor do livro A Metamorfose do Futebol.

Marcelo Proni. Foto: Sérgio Settani Giglio.
Marcelo Proni. Foto: Sérgio Settani Giglio.

Segunda parte

A metamorfose do futebol, que você anuncia na tese e no livro, nunca acaba?

O livro começa falando do futebol antes dele se tornar um esporte, quando ele era o jogo das multidões, de regras frouxas e práticas mais violentas. Houve uma grande metamorfose, de transformação daquele jogo em um esporte, na Inglaterra, que se completa com a fundação da Football Association em 1863. Foi a primeira grande metamorfose. O jogo se transformou em uma atividade esportiva que refletia a ordem burguesa da sociedade liberal inglesa no século XIX. A sociedade inglesa do século XIX estava dividida em três classes sociais: nobreza, burguesia e operariado. A nobreza vai perdendo importância política e econômica, mas continua tendo importância social. No campo esportivo essa aristocracia continua a ter grande influência. Quando ocorre a profissionalização, na década de 1880, é uma nova mudança fundamental na estrutura de poder: os aristocratas dirigindo as federações, os empresários dirigindo os clubes e os trabalhadores como atletas. Aquilo reflete muito o que era a sociedade inglesa no final do século XIX. Mas, a FIFA preservou o modelo de organização amador, pois nos demais países ainda não havia atletas profissionais. E estabeleceu sua hegemonia ao reproduzir o mesmo modelo em todos os países a ela filiados. A profissionalização se difundiu na Europa na década de 1920. A Copa do Mundo de 1930 é um marco. Com o rádio, depois a televisão, o futebol se transforma num espetáculo popular veiculado pelos meios de comunicação de massa, completando essa segunda grande metamorfose, mas agora do ponto de vista estrutural, organizacional. A Lei do Passe veio para evitar que a disputa entre os times para contratar jogadores inviabilizasse o sistema federativo. As regras vão sendo aprimoradas, criando maneiras de preservar os interesses dos clubes, estabelecendo uma hierarquia com as divisões, permitindo o acesso e impondo o descenso com base no desempenho esportivo. Isso funcionou durante décadas.

No final do século XX, as sociedades na Europa já tinham mudado de novo. Aquela configuração institucional se tornou anacrônica. Primeiro, tinham sido abolidas as restrições ao marketing, depois foi extinta a Lei do Passe. Com o passar do tempo, as instituições vão mudando, lentamente, mas elas mudam. A FIFA mudou bastante durante a gestão Havelange. Tornou-se muito parecida com uma empresa transnacional. Eu usei a palavra metamorfose, mas não sei se é a palavra mais adequada para falar desse processo. O que eu quis dizer é que estava em curso uma mudança completa não da natureza do jogo, mas de seu ordenamento jurídico, da estrutura de propriedade dos clubes, da relação entre o time e a torcida. Inclusive, algumas regras do jogo foram aperfeiçoadas. O futebol-empresa do final do século XX era algo novo. Na era da globalização, os grandes clubes europeus tinham adotado estratégias para diversificar as fontes de receitas e ampliar seus mercados, alguns tinham se transformado em sociedade anônima e lançado ações na Bolsa de Valores, outros tinham feito parceria com fortes grupos econômicos. Muito diferente do que era um clube de futebol nos anos 1970. A metamorfose é uma transformação das formas, mas continua a essência. No imaginário das pessoas predomina a ideia de que o futebol é um jogo cujas regras são fáceis de entender e que se tornou paixão popular na maioria dos países. Desse ponto de vista, não há grande diferença entre o futebol na época do Charles Miller, do Pelé e do Neymar. Continua sendo um jogo de bola com os pés disputado por dois times de 11 jogadores.

Na tese, eu explico que o mundo esportivo se transformou radicalmente ao longo do século XX. Faço uma analogia com a interpretação de Fernand Braudel sobre a história da civilização moderna. Para entender o que é o capitalismo, ele divide a economia em três grandes estruturas. É como se fosse um prédio de três andares. No térreo, a produção não mercantil, que continua existindo no cotidiano das pessoas, quando a gente cozinha para a família, limpa a casa, educa os filhos, cuida de um parente doente. No segundo nível, a economia de mercado, que é o universo das trocas mediadas pelo dinheiro, quando a gente recebe nosso salário e compra o pão na padaria, compra o remédio na farmácia, paga o serviço do jardineiro, do médico, do advogado. No último andar é que aparecem as relações econômicas capitalistas, que para ele tem a ver com os bancos, o mercado financeiro, as indústrias, a inovação tecnológica, exportação e importação, a política monetária, a política cambial, a tributação, enfim, é um nível de maior complexidade, que se assenta sobre os dois andares de baixo. As mudanças são muito lentas na base, mas muito rápidas no nível superior. Usei um raciocínio semelhante para explicar o mundo do esporte contemporâneo. Na base da pirâmide, a prática esportiva não mercantil. No caso do futebol, é o futebol jogado nas escolas, na várzea, os torneios amadores. No segundo patamar vem o futebol profissional, organizado pelas federações com base nas regras da FIFA, com as respectivas divisões de clubes, com o registro dos atletas etc. E no nível superior é que surge o futebol-empresa, que se baseia numa racionalidade estritamente empresarial, que se tornou um ativo muito rentável para a grande mídia e está integrado ao sistema capitalista mundial.

Voltando à sua pergunta, a metamorfose do futebol se refere à construção desse edifício. As estruturas foram se tornando mais complexas, mas as formas “arcaicas” foram preservadas, pois são imprescindíveis. Certamente, a sociedade continuará se transformando, só que a gente não sabe como isso afetará o mundo esportivo. Na medida em que vão surgindo novas tecnologias, novos arranjos econômicos, novos ordenamentos jurídicos, novos valores éticos, é provável que o futebol também acompanhe essa transformação social que acontece ao longo do tempo.

Você também usa esse conceito para falar dos Jogos Olímpicos. Olhando para a Copa do Mundo e para os Jogos Olímpicos, no que elas se aproximam e no que elas se distanciam?

Apresentam muitos pontos em comum. Inclusive a FIFA faz parte do Comitê Olímpico Internacional. Mas como a FIFA é muito grande, por causa da dimensão do futebol hoje, a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos rivalizam enquanto megaeventos. O futebol masculino disputado nos Jogos Olímpicos não tem os principais jogadores, só alguns. Do ponto de vista estrutural, institucional e organizacional, não tem muita diferença. A transformação que acontece nos Jogos Olímpicos também faz parte desse movimento mais geral de espetacularização do esporte. Uma coisa é o espetáculo esportivo, outra coisa é o esporte-espetáculo. Os Jogos Olímpicos do Pierre de Coubertin ofereciam espetáculos esportivos. Os Jogos Olímpicos do Samaranch são um exemplo de esporte-espetáculo, uma organização muito mais complexa, com uma lógica diferente daquela da primeira Carta Olímpica. Essa penetração da lógica mercantil, de diretrizes capitalistas, que transforma o espetáculo num produto, que faz tudo girar em torno do marketing, é o mesmo processo que acontece no futebol e outras modalidades. Nesse sentido, do ponto de vista do movimento mais geral, é o mesmo movimento. Inclusive, Havelange e Samaranch são contemporâneos. Samaranch veio um pouco depois, mas é o mesmo movimento. A estrutura política e de relações de poder dentro dessas instituições é muito parecida. A valorização dos contratos de televisão, de patrocínio, tudo é muito parecido. A diferença é que os Jogos Olímpicos têm uma sede única e recebem 10 mil atletas, e a Copa do Mundo é disputada em várias sedes, com uma dimensão mais nacional. Mas eu diria que a leitura é muito semelhante.

Aqui no Brasil podemos pensar de forma diferente o legado da Copa do Mundo e o legado dos Jogos Olímpicos, pois muitas das modalidades olímpicas são pouco desenvolvidas, aqui, em termos de esporte-espetáculo. Do ponto de vista da Educação Física, o legado dos Jogos Olímpicos é muito mais importante como impulso para a ampliação da prática de algumas modalidades e valorização da cultura esportiva. O Brasil já é o “país do futebol” e a Copa do Mundo teve um impacto em outro nível: sobre a consolidação do futebol-empresa. Não precisava ter a Copa para isso. Por exemplo, a arena do Palmeiras não foi feita para a Copa do Mundo, assim como a arena do Grêmio. Mas, representou um impulso na passagem para um novo estágio do futebol-empresa no Brasil, tentando acompanhar o movimento do centro, a Europa. No caso dos Jogos Olímpicos é outra coisa, precisamos analisar de um modo diferente. O futebol no Brasil tem uma lógica própria e o impacto da Copa do Mundo sobre o futebol brasileiro está muito claro. O provável impacto dos Jogos Olímpicos sobre o esporte no Brasil ainda não está muito claro. Vai levar a organização esportiva de algumas modalidades para um novo nível ou não? Vai ampliar o mercado consumidor de bens e serviços esportivos? Qual o impacto do ponto de vista dos profissionais que atuam na área do esporte? Como isso vai mexer com o equilíbrio de poder nas federações? Será um impacto mais momentâneo ou vai se sustentar por mais tempo? Quais serão as modalidades que vão aprofundar essa organização esportiva mais profissional, com mais patrocínio, mais televisão, mais dinheiro? Por sua vez, os Jogos Paralímpicos são um capítulo à parte. Eu sou muito otimista quanto ao legado dos Jogos Paralímpicos, para a sociedade brasileira é uma coisa muito importante.

Marcelo Proni. Foto: Sérgio Settani Giglio.
Marcelo Proni. Foto: Sérgio Settani Giglio.

Com base nas projeções econômicas anteriores e posteriores à Copa do Mundo, qual a análise que podemos fazer dos dados disponíveis até o momento? E qual a comparação, nesse aspecto, com as edições anteriores, realizadas na África do Sul e Alemanha?

Em 2014, antes da Copa do Mundo, publicamos – eu, Raphael e Leonardo, dois ex-orientandos – o livro “Impactos econômicos de megaeventos esportivos“. Nossa preocupação era tentar esclarecer algumas coisas que estavam muito confusas no debate nacional, inclusive no debate político, envolvendo quem era a favor ou contra o governo Lula e depois o governo Dilma. Procuramos fazer uma análise, em primeiro lugar, com uma síntese da bibliografia internacional sobre edições anteriores da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos. Se você olha a literatura internacional, grande parte dos estudos chega sempre à mesma conclusão: as projeções feitas são sempre muito otimistas com a intenção de legitimar o gasto público nos megaeventos. Há uma promessa de retornos econômicos, de benefícios que serão deixados. Fizemos uma discussão para mostrar que os estudos que estavam sendo divulgados no Brasil, encomendados pelo próprio governo a respeito da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos, projetando seus possíveis impactos e legados, tinham uma metodologia que intencionalmente procura medir o potencial máximo de retornos, se nada der errado. A literatura internacional já mostrava que os estudos realizados após a realização desses megaeventos verificaram que os benefícios proporcionados estavam muito aquém do que havia sido prometido. Outro ponto que a literatura internacional permite concluir é que existem diferenças entre as edições dos megaeventos. Uma edição pode ser bem sucedida e a seguinte ser um fracasso. Isso depende de uma série de circunstâncias. Por exemplo, o caso da Grécia, que realizou os Jogos Olímpicos depois dos atentados, em meio à guerra contra o terrorismo. Quando a Grécia ganhou o direito de sediar os Jogos Olímpicos não havia nada disso. No meio do caminho, veio a guerra contra o terrorismo e eles tiveram que gastar muito mais dinheiro com segurança do que tinham planejado. Às vezes acontecem mudanças no cenário internacional. No caso do Brasil, quando a Copa e os Jogos foram projetados, havia a expectativa de que a economia brasileira, que vinha crescendo, continuaria a crescer nessa década. Até o início de 2011, as projeções para a economia brasileira na década atual eram muito positivas. Nesse cenário, pensava-se que os megaeventos esportivos seriam catalisadores de investimentos. Mudou o cenário, principalmente a partir de 2013, 2015 foi um ano péssimo. Assim, temos que mudar a análise. Verificar se os Jogos Olímpicos ajudaram a impactar positivamente a economia do Rio de Janeiro ou se evitaram uma recessão mais profunda no estado carioca. São duas hipóteses bem diferentes. Além disso, nas metodologias que geralmente são aplicadas não se leva em conta o que os economistas chamam de “custo de oportunidade”. É um termo técnico, mas vou tentar falar de uma forma bem simples.  Quando você gasta, por exemplo, para construir um estádio e está deixando de gastar para construir um hospital, você tem que fazer uma avaliação do impacto que teria um hospital do ponto de vista de geração de emprego, demanda na cadeia produtiva, efeitos indiretos. Todo gasto do governo tem um retorno, pois esse gasto aquece e movimenta a economia. Mas precisamos analisar se, do ponto de vista do impacto, havia outras possibilidades mais interessantes, que poderiam gerar um retorno maior. Quando entramos nesse tipo de análise, precisamos separar o que é governo federal, governo estadual e governo municipal. No caso do governo federal, o valor destinado aos megaeventos foi relativamente pequeno dentro do orçamento da união, não afetou muito os gastos do governo em outras áreas. Isso já é diferente quando olhamos para o governo estadual e para a prefeitura. No Rio de Janeiro, hoje, várias obras estão sendo feitas, mas tem uma crise na saúde, crise na educação, tem uma série de investimentos na área social que deixaram de ser feitos em função da Copa e dos Jogos Olímpicos. Esses megaeventos têm impactos diferentes no território. Florianópolis provavelmente foi beneficiada pela Copa do Mundo embora não tenha sido sede. Outras cidades que foram sedes talvez não tenham sido tão beneficiadas. Cuiabá, por exemplo, gastou bastante e talvez o retorno tenha sido pequeno. A distribuição disso é muito diferenciada, seja espacialmente, seja nos segmentos econômicos que ganham e perdem. Alguns grupos econômicos foram beneficiados e outros foram prejudicados. O gasto é deslocado de uma área para outra. Se a pessoa vai para um jogo da Copa, ela deixa de ir ao cinema e ao restaurante. O balanço final, de quem ganhou e quem perdeu, é difícil de ser feito. Não temos dados disponíveis para fazer um balanço. O que dá para afirmar é que essa é uma discussão política, que depende muito da maneira como é visto o papel do Estado na sociedade. Como o Estado deve gastar o dinheiro público? Acho que é dever do Estado investir no esporte, e que promover um megaevento pode até ser uma coisa interessante. É legítimo. Não sou contra a realização da Copa ou contra a realização dos Jogos Olímpicos. Mas questiono a maneira como gasta o dinheiro. Era para ter uma participação muito maior do setor privado nos investimentos relacionados com os megaeventos. Notamos uma grande distância entre aquilo que é prometido e aquilo que é entregue. Existe uma série de problemas na maneira como você legitima isso. Não existe uma discussão no Brasil sobre qual deve ser a política de esportes, quais são as prioridades nessa área. Existe uma política nacional de esportes, mas na prática o que é executado está muito distante daquilo que está no plano. Essas questões me incomodam um pouco. Existe uma carência muito grande de estudos que façam essa discussão de uma forma consistente, para que não seja uma discussão maniqueísta. No fundo é isso: não podemos ficar em uma discussão maniqueísta, se é favor ou é contra, se foi bom ou ruim, se o governo estava certo ou errado. Esse tipo de discussão empobrece a análise.

Recentemente, em uma palestra na Unicamp, você pontuou que os gastos com a Copa, quando comparados a outros gastos do governo federal, teriam sido relativamente menores, e especificamente naquele momento você fez uma comparação com o Bolsa Família. Sem cair em uma discussão maniqueísta, mas pensando no impacto de investir em um megaevento e investir no Bolsa Família, não seria arriscado ficar atrelado a uma análise dos números?

Eu estava fazendo uma comparação para dizer o seguinte: o Governo Federal gastava, aproximadamente, 25 bilhões de reais por ano com o Bolsa Família, o que representava cerca de 1% do orçamento da União para 2014. Era mais ou menos o valor do gasto total projetado em função da Copa do Mundo, com infraestrutura e estádios, somando o gasto do setor público e o gasto do setor privado ao longo de sete anos. Então, o impacto da Copa na economia brasileira não é expressivo, pois temos um PIB relativamente grande. Isso é uma coisa fácil de entender. A economia da Grécia é bem menor que a nossa, a da Alemanha é maior, a da China é maior. Então, a depender do tamanho do país e do seu PIB, o gasto com um megaevento pode ter impacto mais significativo ou pouco significativo. Entre 2011 e 2014, havia a previsão de que o PAC envolveria investimentos de 990 bilhões de reais, somando todos os investimentos do setor público, inclusive Petrobrás. É claro que isso não se realizou, mas era o que estava projetado. Portanto, o Governo Federal destinou uma porcentagem bem pequena do dinheiro da União para a Copa. O BNDES concedeu 6 bilhões em empréstimos para as arenas. Só que, apenas em 2014, o volume total de empréstimos do BNDES alcançou quase 190 bilhões, e para a Copa do Mundo foram 6 bilhões, parcelados em vários anos. Não teve um impacto significativo para a carteira de empréstimos do BNDES, não prejudicou outros setores. Mas, será que a Copa desviou recursos que poderiam ser aplicados em outras áreas? No caso do Governo Federal, eu diria que pouco. No caso de alguns governos estaduais e prefeituras, eu diria que sim. Quando um governo estadual toma dinheiro emprestado para fazer um estádio ou investe dinheiro para fazer um terminal de aeroporto, é preciso ver a capacidade de endividamento. O mesmo vale para uma prefeitura. No caso de alguns governos estaduais que bancaram a construção de arenas, isso pesou no orçamento. Outra discussão envolve saber se é legítimo ou não o governo investir em megaevento, sendo que há tantas carências sociais no país. É uma outra discussão. Na Constituição Federal, esporte e lazer são direitos. A questão é: o governo deve colocar dinheiro em uma atividade profissional que deveria ser autossustentável? Faz sentido o Governo de Pernambuco construir uma arena que será utilizada pelos clubes de futebol profissional de Recife? Lembrando que existe uma política nacional de esportes. O governo tem que investir em esporte, mas não no esporte profissional ou esporte de alto rendimento. É uma questão de ponto de vista, de entendimento. É importante ter centros de treinamento para modalidades esportivas, mas o grosso do investimento do Estado na área de esporte tem que ser no esporte escolar, na democratização do acesso à prática esportiva. Mas essa relação entre Estado e esporte é muito diferente de um país para o outro. O Brasil tem um modelo que é híbrido. Por um lado, existe essa coisa de dizer que o Estado não deve interferir, mas sim dar autonomia para clubes e federações. Por outro lado, existe uma demanda para que o Estado financie e dê isenção fiscal, para que as empresas estatais patrocinem etc. Existe uma ambiguidade e quem tem mais força prevalece. Quando o governo tem que gastar ele atende os grupos organizados que têm mais força de pressionar. A discussão acaba sendo feita de forma equivocada. No caso dos Jogos Olímpicos também. Os Jogos do Rio recebem pouca verba do Governo Federal. Mas exigem um gasto pesado para o Governo Estadual e para a Prefeitura do Rio de Janeiro. Em primeiro lugar: por que um megaevento tem que ser tão caro? Em segundo lugar: quem deve financiar essa infraestrutura esportiva? Em terceiro lugar: por que tem que deixar como legado uma “revolução urbana” para legitimar os Jogos Olímpicos? São perguntas que qualificam melhor a discussão.

Esse modelo estruturado para a Copa e para os Jogos requer uma série de patrocinadores. Em que medida esses patrocinadores têm um peso expressivo nessas mudanças? Eles têm interesses nesse sentido?

A intenção da FIFA e do COI é valorizar o seu produto e ampliar suas receitas. Para valorizar o produto, tem que ter as melhores condições para a superprodução do espetáculo. Para valorizar um produto que será veiculado no mundo inteiro, tem que oferecer determinadas condições para a mídia, para os atletas, e assim atrair o interesse do público, valorizar os contratos com os patrocinadores, valorizar o contrato de exclusividade na transmissão. Para isso, foi criado um caderno de encargos e o Governo Federal tem que assiná-lo para assegurar que as exigências serão atendidas. Com o passar do tempo, esse caderno de encargos foi ficando cada vez mais pesado. Para convencer a opinião pública de que é interessante o governo assumir esses encargos, tem que dizer que haverá legados, tem que dizer que isso gerará benefícios econômicos para o país sede. É toda uma propaganda motivada por interesses econômicos que deve ser amarrada aos interesses políticos. Por que vários governos estaduais e municipais queriam sediar a Copa do Mundo? Porque que o evento dá uma visibilidade muito grande. Além dos interesses econômicos, têm uma série de interesses políticos. Deixa-se de lado a discussão sobre quais são as prioridades da população, sobre o que é importante para a cidade, para o país. Demandas sociais importantes ficam em segundo plano. Para os patrocinadores o mais importante é a visibilidade para as suas marcas, mas também é importante que o megaevento seja visto pela população como algo positivo, que deixa um legado e traz benefícios. A imagem do megaevento projetada pela mídia internacional é importante, assim como é necessário que a FIFA e o COI demonstrem ser capazes de realizar o que foi planejado e sejam respeitados como entidades idôneas, compromissadas com o meio ambiente, isentas de questões políticas, religiosas, étnicas… e isentas de corrupção.

Marcelo Proni. Foto: Sérgio Settani Giglio.
Marcelo Proni. Foto: Sérgio Settani Giglio.

Quais são seus atuais projetos de pesquisa, bem como de seus orientandos, sobre a temática esportiva?

Após a publicação do livro “Impactos econômicos de megaeventos esportivos“, continuei acompanhando esse debate, tenho procurado atualizar a análise sobre os Jogos Olímpicos em parceria com o Raphael Faustino. Em 2015, dois orientandos defenderam suas monografias de graduação. Um deles pesquisou a participação de clubes de futebol na Bolsa de Valores. Outro analisou a Medida Provisória relacionada às dívidas dos clubes brasileiros. Atualmente, estou orientando uma iniciação científica sobre a situação financeira dos times da elite nacional. No caso do futebol, portanto, eu tenho acompanhado essas mudanças e tentado fazer um balanço do que aconteceu nos últimos vinte anos, desde a Lei Bosman. Quanto se avançou, quais são as tendências. Mas, tenho outras linhas de pesquisa fora do campo esportivo, publico a respeito a outros temas. Então, minha reflexão sobre o futebol avança de maneira mais lenta, não tenho uma pesquisa financiada, nem um grupo de pesquisa estruturado. Mas, acho necessário fazer esse balanço. Daqui a pouco a Lei Pelé vai completar vinte anos. Quem sabe até lá eu consigo fazer uma segunda edição do meu livro [“A metamorfose do futebol”], atualizando a discussão. Isso me motiva. O livro foi publicado em 2000. De lá para cá muita coisa aconteceu. Uma das justificativas daquela modernização era reduzir o descompasso em relação à Europa; outra coisa era moralizar o futebol e mexer nas estruturas de poder; outra era combater a violência entre as torcidas e dar mais segurança e conforto ao torcedor. Uma série de problemas que continuam e que inclusive dependem de fatores não esportivos. Mas, infelizmente, não consigo dar conta de todos os projetos de pesquisa que me interessam, tenho de ir devagar…

Qual é a sua partida de futebol inesquecível?

São várias. A primeira eu já citei aqui, essa do Botafogo contra a Ponte Preta em 1977, no Moisés Lucarelli, quando apagaram as luzes. O Botafogo estava ganhando de 1×0 e mandando no jogo. Eu estava no estádio. Era o melhor time do Botafogo de todos os tempos, o time do Sócrates. E foi uma coisa muito inusitada. Depois o jogo foi remarcado e a Ponte Preta ganhou a partida. O Botafogo tinha um time excelente, mas não tinha um grande plantel. E dois jogadores machucaram. A Ponte Preta tinha uma equipe excelente, que acabou sendo vice-campeã naquele ano. Outro jogo inesquecível, que presenciei no estádio, foi em 1976, quando o Botafogo estava disputando o Campeonato Brasileiro. Foi na época que tinha aquele lema: “Onde a Arena vai mal, um time no Nacional. Onde a Arena vai bem, um também”. Alguma coisa assim. Aumentou muito o número de times. O Botafogo foi convidado e conseguiu montar uma ótima equipe em 1976, contratou jogadores experientes, e já tinha o Sócrates. E teve um jogo inesquecível, Botafogo x Fluminense, no estádio Santa Cruz. Zé Mário fez o primeiro gol, 1×0, e no final da partida Rivelino empatou para o Fluminense, que também tinha uma equipe fantástica. Eu tinha 12 anos. O estádio estava superlotado, todo mundo apertado. Meu time jogando de igual para igual contra um clube da elite. Três semanas depois, o Inter de Porto Alegre, time do Falcão e companhia, que viria a ser campeão naquele ano, foi jogar em Ribeirão Preto e ganhou de 4×0 [risos]. Achávamos que seria um jogo duro, mas o Botafogo nem viu a cor da bola [risos]. Foi uma lição de humildade, mais ou menos como Santos x Barcelona na final do Mundial de Clubes. Pela televisão, acho que Brasil x Itália, de 1982, foi meu jogo inesquecível. Havia uma aura em relação àquela seleção do Telê Santana. Aquela seleção merecia ser campeã. Eles jogavam um futebol muito bonito, que encantava as pessoas. Mas naquele dia a Itália foi muito mais eficiente. Na época não entendíamos como a Itália poderia ter vencido. Depois, percebemos que a Itália foi campeã porque tinha bons jogadores e uma aplicação tática perfeita. Futebol é muito interessante, entre outros motivos, porque aprendemos muito com as derrotas. Futebol é aprender a ganhar e aprender a perder. Não é fácil. Saber ganhar sem humilhar o outro. Saber perder sem apelar, saber lidar com as frustrações. Especialmente quando se torce pelo Botafogo de Ribeirão Preto (risos). Esse jogo, Brasil x Itália, doeu muito mais que o 7×1 contra a Alemanha. Em 2014 eu já sabia lidar melhor com as frustrações da vida. Talvez também pelo fato da seleção do Felipão não estar encantando. O 7 a 1 foi inesquecível, mas ninguém estava encantado com essa seleção. Aquela seleção de 1982 encantava a todos, inclusive os nossos adversários.

Para encerrar, o que é o futebol para você?

O que é o futebol? Essa é difícil. Futebol é paixão, é muito mais do que um jogo. Futebol é algo que mobiliza a opinião das pessoas, que é motivo de conversas sem fim. O futebol encanta as pessoas porque fala de psicologia, de economia, política, ética, ideologia. O que é legal no futebol é que não é previsível, ninguém sabe direito o que vai acontecer, por isso é tão apaixonante. Podem acontecer tantas coisas. Inclusive, o time pequeno pode ganhar do grande. Mas, para mim, foi a conexão que estabeleci com meu pai. Foi o ambiente em que fiz amizades, onde aprendi a conviver com garotos bem diferentes de mim. Quando eu era garoto, era tão importante quanto a escola e a religião.

Quando eu comecei a estudar o futebol, passei a gostar menos de futebol. Esse é um preço que pagamos quando transformamos aquilo que amamos em objeto de estudo, quando começamos a observar o lado sombrio. Faz parte do nosso amadurecimento enquanto pessoas, saber que ao conhecer a fundo algo ou alguém geralmente nos decepcionamos. As desilusões fazem parte desse processo. Mas, hoje eu voltei a gostar de futebol. Gosto de ver futebol apesar de saber dos interesses econômicos, dos favorecimentos, das sacanagens. Ainda consigo sentar para ver um jogo do Botafogo, do Santos ou da seleção brasileira e me deixar levar. Não sou mais a mesma pessoa que ia ao estádio com meu pai. Conforme amadurecemos, nossa relação com o futebol vai mudando. Eu espero, em breve, levar meu neto ao estádio para ver uma partida. Mas, não preciso explicar para ele o que é futebol. Podemos falar muito sobre futebol, analisar a partir de diferentes aspectos, mas colocar em palavras o que é o futebol é difícil. E na maioria das vezes, desnecessário.

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Vitor dos Santos Canale

Licenciado em História pela Universidade Estadual de Campinas, Mestre em Educação Física pela Unicamp. Principais interesses: Torcidas Organizadas, Torcedores, Museus Esportivos e Crônica Esportiva.

Gustavo Higa

Estudante de educação física. Apaixonado pelo esporte e todas as histórias por trás dele.

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