05.11

Sobre futebol e barreiras

Equipe Ludopédio 14 de dezembro de 2011

A entrevista deste mês é com Arturo Hartmann, João Carlos Assumpção, José Menezes e Lucas Justiniano, diretores do documentário Sobre Futebol e Barreiras. Os diretores viajaram e gravaram pelos territórios de Israel e Palestina durante os jogos da Copa do Mundo de 2010 para mostrar o cotidiano de judeus e palestinos em diferentes cidades, bem como abordar a relação deles com o futebol. Exibido na Mostra Internacional de São Paulo, entre outubro e novembro, o filme já participou de inúmeros festivais e breve deverá ser exibido no circuito comercial. Confira nessa entrevista algumas questões trabalhadas no documentário.

Capa do documentário Sobre Futebol e Barreiras. Foto: Divulgação.

 

Segunda parte

Como surgiu a ideia de fazer um documentário sobre Israel e Palestina tendo como pano de fundo o futebol?

Arturo: Como jornalista, já trabalho há algum tempo, uns quatro anos, escrevendo sobre Oriente Médio, Israel, Palestina, Líbano, um pouco de Iraque etc. No fim de 2009 e início de 2010, fiz uma viagem sozinho para lá. Eu queria conhecer o cotidiano, entender o conflito. Um dia, fui num bar, nos territórios ocupados, ver o jogo Egito x Argélia, um jogo da Copa da África. Era semifinal e quase todos estavam torcendo para a Argélia. Estavam torcendo para a Argélia porque os palestinos alegavam, na época, que o presidente do Egito ajudava Israel a cercar Gaza. Três fronteiras são controladas por Israel e uma pelo Egito. O exército do Egito trabalhava em coordenação com o serviço secreto israelense. Por isso, eles odiavam o governo egípcio. Um dos palestinos que estava lá me disse que era assim mesmo e que eu deveria ver uma Copa do Mundo lá, que as pessoas piram. Eu achei sensacional. Contei para o Lucas por internet, falamos em fazer alguma coisa, ele contou para o Zé e o João. Foi um pouco assim. Essa foi a faísca do documentário, discutir o conflito pelo futebol. Uma manifestação da sociedade, ainda mais no Brasil. Nós vivemos o futebol como um fenômeno cultural e social. Isso reflete a sociedade em que vivemos, com questões de racismo, de desigualdade social etc. Pensamos: por que não fazemos isso em Israel e na Palestina? Tentar entender esse conflito por essa via, dessa festa das nacionalidades.

Lucas: Em países que amam o futebol e não estão representados na Copa do Mundo. Pensávamos que eles iriam torcer politicamente. Usando o futebol e a Copa do Mundo, achávamos que iríamos ter um retrato da sociedade. Perguntavam se faríamos de filme de coesão. Não sabíamos se os caras iriam de abraçar e torcer. Se rolar isso, legal. Mas não rolou isso.

João: Outra coisa para acrescentar sobre essa relação entre futebol, sociedade e cultura. Fui para a Copa das Confederações de 1997. Na Arábia Saudita, o futebol até serve como coesão social. E vai refletir também um série de coisas da sociedade. As mulheres não entravam nos estádios de futebol. Lembro que fizemos uma matéria sobre pessoas que eram condenadas à pena de morte e decapitadas. Fizemos uma matéria para a Folha, com um fotógrafo meio maluco (risos), ele disse que era tranquilo, que fotografaríamos uma decapitação em praça pública usando uma câmera escondida. Eu nem sabia que aquela espada da bandeira servia para matar as pessoas, acertando um ponto da coluna e depois no pescoço. Mas em jogos do Brasil, por exemplo, o que acontecia? Fomos em dois jogos para ver. Não houve decapitação porque eles querem muito público, muita platéia para as execuções e o público estava nos jogos. Em dias de jogos do Brasil, com o estádio lotado, a platéia da execução era pequena. O pessoal ia ao jogo do Brasil, não ver as execuções.

Arturo Hartmann, João Carlos Assumpção e Lucas Justiniano. Foto: Enrico Spaggiari.


Durante a viagem vocês se dividiram? Mantinham algum tipo de comunicação entre vocês para saber o andamento das filmagens?

João: Eu estava separado, graças a Deus. Pelo menos uma coisa positiva tinha que ter (risos).

Lucas: A gente chegou 15 dias antes da Copa, já para fazer uma pesquisa maior. Como o Arturo já tinha ido antes, ele ficou mais um mês lá e começou a pesquisar já pensando no filme. Eu, Arturo e o José viajamos, conversando com as pessoas, buscando os contatos que o Arturo já tinha, pensando nos caras como personagens. Buscávamos um personagem que gostasse de futebol, que torcesse e que também tivesse algum conteúdo político. E saímos daqui já com a ideia de não pegar extremista, de ambos os lados. Tampouco algum cientista político.

João: Eu até tentei (risos). Eu consegui contato com um judeu ortodoxo uruguaio que torcia muito, adorava futebol. A primeira partida entre Uruguai e França caía no Shabat. Aí ele não poderia assistir porque não pode ligar a televisão. No segundo jogo do Uruguai, ele até marcou com os três de assistir o jogo na casa dele. Mas aí saiu uma matéria no jornal Jerusalém Post. A capa do jornal trazia uma lista das seleções para quem o israelense poderia torcer durante a Copa do Mundo. Das 32 seleções, só para três. E ele dava um motivo para cada uma: EUA, Holanda e Dinamarca. Até foram bem, vice-campeões (risos). Eram as três únicas seleções que apóiam Israel.

Lucas: Para cada seleção eles botavam o motivo de não torcer. O Brasil era o principal, por causa do apoio do Lula à mediação do acordo com o Irã de enriquecimento nuclear.

Arturo: Tínhamos um blog e o João escreveu um texto sobre a lista.

João: Eu escrevi um texto dizendo que o problema estaria com Israel. Eles só torceriam para 3 equipes e contra 29 seleções. E sorte que Irã não estava na Copa (risos).

Arturo: Aí o cara leu o texto do João, não gostou e cancelou a entrevista. A partir daí nossas pesquisa de personagens foram para outro caminho, com pessoas mais laicas, tanto do lado israelense quanto do palestino.

Capa do jornal The Jerusalem Post. Foto: Reprodução.


Esse fato de alguma forma interferiu na organização? “Nós somos do Brasil e vimos no jornal que eles não torceriam para o Brasil…”.

Lucas: Isso não. Quando falávamos que éramos brasileiros a aceitação era absurda. Era surreal, dos dois lados.

João: A matéria não refletia o que acontecia nas ruas.

Arturo: Devia ser um jornalista muito chato, e que quis exagerar.

João: Eles torciam muito para o Brasil. No primeiro jogo da Copa, por exemplo, ela fizeram bares temáticos: um do Brasil, outro da Argentina e outro da Espanha.

Lucas: Todos cheios, vestindo camisas das seleções.


Como chegaram aos entrevistados? Os próprios entrevistados indicavam outras pessoas, formando assim uma rede?

Lucas: O personagem que torce para a Alemanha, Grégori, foi indicação do Nelsinho, um brasileiro que mora lá. Por contatos de amigos em comum, ele indicou. Alguns foram da primeira viagem do Arturo. Contamos também com o acaso. O Zahi, o jogador de futebol, foi um acaso sensacional. Um amigo do José que morou em Israel.

José: Ele nasceu em Haifa.

Lucas: Ele falou: “tem uma cidade no norte de Israel onde os caras são malucos por futebol. Até já fizeram um documentário sobre isso”. Pegamos o carro e fomos procurar a cidade. É uma cidade cheia de bandeiras. Achamos e paramos na cidade. O José estava com camiseta do Brasil. Paramos o carro no centro da cidade e já descemos com câmera para entrevistar as pessoas. Encontramos uns cinco caras tomando chá, eles perguntaram de onde éramos, ficaram felizes quando falamos que éramos do Brasil. Um cara disse: “A minha irmã é casada com o maior jogador de futebol de Israel, um grande jogador”. Achávamos que ainda estava jogando. Não sabíamos muito. Pegamos o contato e no dia de um jogo da Itália fomos fazer uma entrevista com ele. Chegamos lá e descobrimos que era um ex-jogador de futebol, muito conhecido em Israel e no Oriente Médio inteiro. Foi um acaso sensacional, foi sorte. Acho que isso conta muito. Para contar uma história é preciso ter sorte.

João: Eu fiquei impressionado com o Zahi, pois eu não sabia que ele era tão famoso. Aqui no Brasil, dois amigos que são judeus e adoram futebol comentaram sobre o Zahi.

Lucas: Após começarmos a entrevista, pensamos: “caramba”. Saíamos na rua, comentávamos sobre o Zahi e as pessoas perguntavam como ele estava. Até no aeroporto, na hora de sair, comentei: “conheço o Zahi”. E o segurança falou: O Zahi? Que legal”.

José Menezes e Lucas Justiniano. Foto: Enrico Spaggiari.


A primeira cena do filme, que se passa na barbearia, tem como mote o futebol e a questão da identidade. Como essa questão da identidade apareceu durante a produção do filme?

Lucas: Foi inclusive no dia em que fomos entrevistar o Zahi pela primeira vez. Marcamos com o cunhado do Zahi.

José: Ficamos esperando por três horas.

Lucas: O problema é que naquele dia três pessoas da vila tinham morrido. Um fato que não acontecia há muito tempo.

Arturo: E estava tendo muito movimento nas igrejas. Estávamos cansados de filmar o dia inteiro, um pouco de saco cheio, a coisa não tinha dado muito certo naquele dia. Ainda íamos pegar estrada até Jerusalém, uma hora e pouco de viagem, de carro. Mas aí foi assim: eu estava na frente da barbearia. Foi aquele segundo entre entrar e não entrar. Empurrei a porta e entramos, o Zé ligou a câmera e começamos a conversar. Esse judeu que abre o filme começou a falar exatamente qual era a ideia do filme para a gente; a história da bandeira, das nacionalidades etc.

João: Ele resume bem o filme.

Arturo: O resumo está na barbearia e se expande para o resto do filme. Tinha aqueles dois caras engraçados que começaram a brigar. Virou uma peça de teatro do filme, sem querer. Um acaso.


Como foi o processo de edição e finalização do filme?

Lucas: Mais de 100 horas de material bruto. 26 entrevistados. Pegamos todos os personagens, dividimos, começamos a ver e transcrever todas as entrevistas. A partir daí começamos a desenhar a história. Acho que esse processo de transcrever e desenhar o roteiro durou uns dois meses. Depois começamos a montagem. E muitos personagens caíram na montagem. O roteiro foi se redesenhando. O período de roteiro e montagem durou uns quatro meses.

José: Isso até o primeiro corte, que tinha duas horas e meia.

João Carlos Assumpção. Foto: Enrico Spaggiari.

Qual foi o apoio que vocês conseguiram? Algum edital?

José: O apoio fomos nós quatro mesmo.

Lucas: Bancamos no peito. Antes de ir colocamos a produtora, Olé Produções, para tocar essa história de edital. Decidimos que com grana ou sem grana iríamos bancar. Era um ‘vai ou não vai’. Conseguimos apoio de amigos que têm finalizadora de áudio. Recentemente conseguimos um edital de finalização, de isenção do ICMS, de uma usina de álcool, São Manoel, que patrocina o filme aos 47 do segundo tempo. Isso foi um mês antes da Mostra. Assim, conseguimos pagar as pessoas que trabalharam de graça, que investiram bastante.


Ao assistirmos o documentário ficamos curiosos em entender o motivo pelo qual resolveram ir para os dois países para dialogar com a Copa do Mundo da África. Após assisti-lo a mensagem que ficou foi a relação entre países que sofreram algum tipo de segregação. Foi isso mesmo que pretenderam relacionar?

José: Foi mais incidental.

Arturo: Se a Copa fosse na Alemanha teríamos feito de qualquer jeito.

Lucas: Se fosse no Brasil iríamos de qualquer jeito (risos).

Arturo: Mas essa relação com a África do Sul não foi proposital. A preocupação foi retratar aquela sociedade especificamente, independente de poder criar analogias com outras.

Arturo Hartmann. Foto: Enrico Spaggiari.

Como essa questão da identidade apareceu durante a produção do filme? Era algo latente a todo momento?

João: Eu acho que era. Pensando até num exemplo que não tem ligação direta com futebol, a Cinemateca, que ficava pertinho da casa que alugamos. Em Jerusalém, no shabat de sexta-feira a noite fecha quase tudo. Só reabre sábado a noite. Assim, sábado era o dia em que os árabes podiam tomar conta da cidade, como os parques, por exemplo. Faziam churrasco, as crianças brincavam, ou seja, estavam mais presentes que os judeus, que ficavam recolhidos. A Cinemateca fazia questão de frisar que abriam na sexta-feira de noite, pois eles são contra os judeus religiosos. Existe muita aquela coisa de ligação com a terra, por isso os personagens acabam sendo contraditórios mesmo. A Reut, aquela moça do documentário que namora o cara que torce para a Espanha, fala muito sobre isso. Ela tem um discurso contraditório. Ela é contra o muro, mas ao mesmo tempo ela fala que o muro deu uma certa segurança. Ela fala dos pais dela da República Tcheca, do Marrocos, da suástica na frente da casa. Ela crítica muito os políticos de Israel. Diferente do Brasil, lá existe um receio de se criticar o político israelense, pois não se está apenas criticando o seu governo, mas também seu país.

Lucas: Como se estivesse criticando o povo.

Arturo: A Copa do Mundo permite perceber essa questão da identidade. Pode-se escolher alguma seleção para torcer por alguma ligação política: por que a Espanha ajuda os palestinos, ou porque a Argélia é um país árabe. A partir daí é possível acessar a identidade dos israelenses. A Reut é um personagem legal do lado israelense, pois ela não nega o passado, a origem familiar dela, sua identidade que ela admite estar ligada ao judaísmo, mas ao mesmo tempo ela é secular e laica, entende que foram decisões históricas, que o país comete alguns erros etc. Do lado palestino, é possível perceber como é a resistência que faz parte da identidade deles, a bandeira, o fato deles estarem oprimidos. Assim, podemos começar a discutir as contradições de cada lado para ver quem são essas pessoas. O que é um israelense? O que é um palestino? Eles vivem separados, mas também não vivem separados. Você perguntou inclusive sobre como ordenamos. Não ordenamos pelos jogos ou pelas fases da Copa, mas sim por blocos sociais pelos quais acreditávamos que a discussão deveria seguir. Primeiro, mostra Israel. Em seguida, mostra a Palestina. Depois, mostra como os israelenses agem sobre a Palestina e como isso repercute. No fim, você mostra as pessoas refletindo sobre as questões de forma conjunta. Eu penso que foi assim o modo como trabalhamos a identidade. É enxergar aquelas sociedades que vivem naquele território.

João: Parece até naquela parte em que eles falam para quem torceriam se fosse Zahi jogando por Israel, e Israel x Palestina, e eles dizem que torceriam contra o Zahi.

Arturo: Perguntamos sobre o fato de Zahi ter jogado por Israel. E eles dizem que é uma questão individual e Zahi tem todo o direito de jogar por Israel, pois é um jogador de futebol que quer fazer a sua carreira. Mas se perguntamos sobre um jogo Palestina x Israel, eles dizem que não podem torcer por ele, pois é uma questão política coletiva. O Ahmad é quem mais fala sobre isso. Ele fala: se o soldado quiser vir aqui, ele pode, pois o problema não é ele ser israelense, o problema é o que governo de Israel faz conosco. Então, já é possível discutir indivíduo, geral, coletivo etc.

Lucas: Acho que a barbearia é realmente um exemplo disso. Começa com futebol, mas o cara é muçulmano, aí já entra na questão religiosa e política. Você está falando de futebol e de repente você está falando de política, de Gaza, de tudo, de 1948. Como aqueles papos de bar com amigos. Como começou a falar nisso? Você não sabe. Isso acontecia direto.

Lucas Justiniano. Foto: Enrico Spaggiari.


Por que resolveram não mostrar os israelenses e palestinos durante os jogos do Brasil?

João: Por que os brasileiros não renderam tanto.

Arturo: O Brasil, além disso, caiu cedo na Copa. O Zahi torcia para o Brasil, mas com ele a discussão era outra. O importante é que ele era um jogador de futebol. De fato, a discussão sobre Brasil não foi legal.

Lucas: Foram mais para a performance do futebol brasileiro, do fato de ser um dos grandes do mundo. Tem um personagem que chegamos a entrevistar, mas ele sacou qual era a do documentário e não quis falar. Chegamos a assistir dois jogos com ele.

Arturo: Conversamos com muita gente que torcia para o Brasil, mas uma hora percebemos que o documentário poderia ficar muito brasileiro. Não queríamos isso. Mas agora após você falar, talvez tenha acontecido ao contrário, não tem nada do Brasil.

Lucas: Nos créditos, ao final, aparece o Zahi vendo o jogo do Brasil, xingando o Dunga.

João: Ele até fala que no jogo contra a Holanda, o primeiro tempo foi dos jogadores (placar de 1×0) e o segundo tempo do treinador (placar de 1×2).

Lucas: O pessoal detonava o Dunga.

João: Eles conhecem muito de futebol brasileiro.

Lucas: O narrador da Al Jazeera, durante as transmissões dos jogos do Brasil, fala umas coisas do tipo: ‘Roberto Dinamite’, ‘Sócrates’, ‘Leônidas’. O conhecimento dos caras é surreal. Impressionante.


O futebol está muito presente no início e no final do documentário. Em certo momento fica muito mais presente o conflito em si e o futebol fica em segundo plano. Essa foi uma decisão consciente de vocês?

João: Foi algo discutido. Foi pensado.

Arturo: Na verdade, em cortes anteriores, tinha mais futebol. Mas já sem a mesma força do início do filme.

Lucas: O filme não caminhava.

João: Ficava o futebol pelo futebol.

Arturo: Aquela parte é importante, pois mostra o dia a dia dos dois lados. Foi uma escolha. Para a história daquela sociedade que estamos mostrando aquilo é importante.

Lucas: Foge inclusive daquela coisa de coesão, de que o futebol resolve tudo.

José Menezes. Foto: Enrico Spaggiari.


Qual reflexão vocês podem fazer quando mostraram a final da Copa do Mundo de 2010 tendo israelenses e palestinos torcendo para a Espanha?

Arturo: Na verdade, o Yasser torce contra, ele perde, fica chateado, mas o amigo dele comemora. Mas ao mesmo tempo em que você pode ter a interpretação de que eles estão torcendo para a mesma seleção, a minha interpretação é de que eles estão vivendo a mesma coisa, capazes de sentir a mesma emoção. Mas eles estão separados, e você não consegue unir essas coisas. Alguns israelenses perguntavam se íamos para os territórios ocupados, como Ramallah, e diziam que também gostariam de ir para Ramallah, mas tinham medo. Eles podem ir para lá. Vários ativistas israelenses vão para lá. O fato é que existe uma barreira, que muitas vezes é mental.

João: Eu já fiquei com a impressão exatamente oposta. Eles estão juntos. Vendo o final, fico com a impressão de que não existe barreira. Eles estão vendo o mesmo jogo, estão com os mesmos sentimentos. Víamos um palestino que torce para a Espanha, outro que torce contra, um israelense que torce para a Espanha, outro para a Holanda. No fundo, todo mundo, de um lado, querendo paz, muitos judeus que gostariam de ir para casa, de ir para Ramallah ou para a Cisjordânia. Muitos árabes que gostariam de viver em Israel de forma muito mais tranquila. O que eles querem no fundo é a mesma coisa, mas alguns bloqueios dificultam. O sonho deles é uma coisa muito parecida, mas têm uma desesperança muito grande dos dois lados. Se perguntarmos o que eles pensam, se eles têm alguma solução, cada um vai ter uma, e nenhuma ao mesmo tempo. Isso é que é triste.

Arturo: Acho legal ter essa interpretação aberta, acho que o filme permite isso, ainda mais nessa parte. Eu interpreto de um jeito, o João de outro, o Lucas vai interpretar outra coisa, o José outra. Mas é isso que você falou: a Reut quer ir para Gaza, mas ela não pode. As pessoas querem caminhos, mas não encontram. As pessoas vivem separadas, não podem estar juntas.

João: Novamente pensando diferente (risos), elas estão juntas porque as barreiras são para todas. Mas hoje em dia existe skype e facebook (risos).


Para além da Copa do Mundo, como perceberam a relação de israelenses e palestinos com o futebol?

Lucas: Os palestinos são viciados em futebol, mais que os israelenses. O primeiro esporte em Israel é o basquete, o segundo é o futebol. Acompanham a Liga Espanhola, se dividem entre Barcelona e Real Madrid.

Arturo: São apaixonados por estes dois times, pois estão na mídia o tempo todo, têm os grandes craques, Messi e Cristiano Ronaldo.

João: Em Israel, o futebol tende a crescer, porque eles disputam agora as Eliminatórias da Europa. Israel é o único país que já disputou eliminatórias em todos os continentes, até na Oceania. Agora ficou fixo na Europa. Inclusive, equipes de Israel podem disputar a Liga dos Campeões da Europa. Acho que isso fortaleceu, porque fica mais difícil ir para a Copa e exige que eles formem equipes mais competitivas contra adversários mais fortes. Lá inclusive jogam muitos brasileiros.

Lucas: Sim, bastante.

João: Existe também uma divisão política no futebol. Tem time que é mais conservador, time que é mais para esquerda, de acordo com a política em Israel.

Lucas: Isso se diluiu um pouco hoje, mais ainda existe. Os times que começam com ‘Beitar’ são clubes antigos que tinham uma tradição política de ser mais de direita. Clubes que começam com “Macabi’ são mais de esquerda.

João: Inclusive, comprei uma camisa de um clube, mas não posso mais usar a camisa. Patrulhamento ideológico (risos). Comprei uma camisa que é muito bonita. Só que eu não sabia que é um time muito racista, inclusive com brasileiros. Comprei porque achei bonita (risos). Só depois o Arturo me explicou que esse time era o pior de todos. A partir disso, eu não usei mais a camisa (risos).

Arturo Hartmann e João Carlos Assumpção. Foto: Enrico Spaggiari.

Além de ter muitas manifestações do torcer, vocês viram muita gente jogando bola?

Lucas: Bastante.

João: Pelas ruas, parques.

Lucas: Depois que o Brasil jogava, a molecada ia para a rua e rolava carnaval. Numa cidade, chegamos a ver batuques. Não conseguimos pegar imagem disso, mas tinha muito ortodoxo jogando bola nos parques. É futebol para todo lado, muitas bandeiras durante a Copa.


Mas são os homens que jogam?

Lucas: Sim, mas tinha algumas meninas.

Arturo: Não vi na rua, mas tem um time feminino na Palestina, deve ter em Israel.


Do ponto de vista cultural, o que chamou a atenção de vocês, durante esses dois meses, no exercício de proximidade e estranhamento em relação aos nossos próprios aspectos culturais?

Lucas: Eles ficavam impressionados que tínhamos vinte e tantos anos e ainda não éramos casados e nem tínhamos filhos.

João: Vocês, pois eu já passei dos quarenta (risos).

Lucas: Vinte e tantos na média (risos).

João: Ah sim, mas eu aumento a média (risos).

Lucas: De comida, não senti falta.

Arturo: Você pode dizer que ambas são sociedades mais conservadoras. Se você for para cidades menores, com mais ortodoxos, é muito mais conservador. A mesma coisa na Palestina. Não pode dar a mão para uma menina num campo de refugiados. Em Ramallah é um pouco mais aberto. Mas isso existe no Brasil também. Em São Paulo existe um estilo de vida, mas se você vai para as cidades do interior encontrará um lugar mais conservador.

João: Eu achei algumas coisas, em termos de semelhança com o Brasil. Aqui também vivemos com guetos, pessoas morando em favelas, sem condições de ir ao cinema e teatro. Estava lembrando a hora que voltei para o Brasil a imagem que a gente passa e que talvez seja um pouco parecida que temos de lá. Estava no aeroporto e a segurança perguntou: ‘você está indo para o Brasil?’. Ela falou: ‘Não é para o Rio de Janeiro?’. Eu disse que era para São Paulo. ‘Para São Paulo? Então você é muito corajoso’. Ela disse que queria muito conhecer o Brasil, mas tinha muito medo do Rio de Janeiro (risos). Ela disse que as imagens que via na televisão, das favelas e da polícia, dava tanto medo que não teria coragem. Eu disse que no Brasil falavam a mesma coisa quando eu dizia que estava indo para lá. Para ela, lá era muito mais seguro que o Brasil. Ela me tratou como seu eu fosse um maluco (risos).

Lucas: Uma coisa que me impressionou em Israel, no começo, é que lá o serviço militar é obrigatório por três anos para homens e dois anos para mulheres. Andando na rua, víamos muito uma molecada de 17 anos vestindo roupa militar e com armas. Eu estava no ônibus e tinha um moleque com um arma. Era uma coisa que impressionava. Várias pessoas andando com arma. Mas depois você acostuma.

João: Outra coisa bem diferente é a revista. Eu andava sempre de mochila. Quando eu entrava em qualquer lugar, seja restaurante, shopping ou cinema, revistavam tal como no aeroporto. Abriam, tiravam as coisas. Mesmo que fosse para entrar num bar.


Vocês chegaram a assistir algum jogo no estádio?

Lucas: Não, era recesso do campeonato. Tentamos entrevistar alguns jogadores que estavam de férias, como os brasileiros, mas eles estavam de férias no Brasil ou viajando.

José Menezes e Lucas Justiniano. Foto: Enrico Spaggiari.

Depois de terem feito o documentário, vocês acreditam que o futebol tem ou pode ter algum papel importante dentro desse conflito?

Arturo: Eu acho que não.

Lucas: É muito improvável.

Arturo: Um personagem contou que o Shimon Peres tem uma organização que promove jogos da paz entre as seleções de Israel e Palestina. Ou eles montam um time misto de israelenses e palestinos para jogar contra a Espanha, por exemplo. Ele disse que isso era bobagem, que não funcionava, que iludia e não trata da realidade. Perguntamos ao Zokhir, um radialista, se o Zahi proporcionou algum tipo de mudança jogando futebol. Ele disse que o Zahi fez, mas foi muito pouco. Para ele, não adiantava o Zahi jogar e ser o maior astro do futebol israelense, se o governo israelense continuava a agir daquele jeito e a sociedade a pensar do jeito que ela pensa.

João: Acho que é que nem aconteceu na Olimpíada de 2000, em Sydney, quando as duas Coréias entraram juntas. O Estádio Olímpico ovacionou. Mas o que adiantou? Igual ao jogo entre Estados Unidos e Irã na Copa do Mundo de 1998. Lembro de outros dois episódios. Em 2000, nos Jogos de Sydney, a única vaia que eu ouvi foi quando a Argentina entrou e alguns brasileiros vaiaram. Inclusive jornalistas. A outra foi na Copa da Alemanha de 2006, quando o Bussunda morreu. Um pouco antes eu assisti ao jogo ao lado pessoal da televisão, entre eles o Bussunda e o pessoal do Casseta. Foi Brasil e Croácia. Tinha um croata muito chato. Qualquer ataque do Brasil, ele se levantava, gritava, xingava. Na hora em que saiu o gol do Brasil, nós comemoramos bastante e um dos comediantes do Casseta, não lembro quem, gritou: Sérvia! (risos). O croata estava sentado umas 10 fileiras para frente. O cara olhou feio e começou a subir as fileiras enquanto algumas pessoas tentavam segurá-lo. Ele foi se aproximando e ele iria matar o cara (risos). Alguns pediram desculpas. Argumentaram que era como Brasil e Argentina, mas ele disse que não.

Lucas: O futebol reflete a sociedade. Às vezes me incomoda quando dizem que o futebol está muito violento. Ora, a sociedade está mais violenta. Futebol reflete isso. As coisas estão muito conectadas.


Nessa semana, em mais um capítulo entre Israel e Palestina, a Unesco aceitou a Palestina como membro e logo Israel e os Estados Unidos promoveram retaliações quanto a essa decisão. Vocês continuam acompanhando essas questões?

Arturo: Talvez a pessoa que vá assistir ao filme hoje faça alguma relação com os últimos acontecimentos. Mas para mim não, pois o filme aborda a sociedade, não aborda as questões políticas. Claro, as pessoas estão discutindo política no âmbito social. O filme é um retrato da sociedade em 2010, mas como eles olham para questões históricas que acabaram por formar suas identidades. Ele é uma reflexão de como eles vivem hoje, mas sem deixar de olhar para o que aconteceu no passado e que vai acontecer no futuro. Por exemplo, hoje, enquanto estamos conversando, uma flotilha saiu do Chipre e está indo para Gaza, enquanto estamos conversando aqui, neste exato momento. Mas o filme trata mais da estrutura social que mantém o conflito.

Arturo Hartmann e João Carlos Assumpção. Foto: Enrico Spaggiari.

Mas vocês continuam acompanhando? Mantiveram contato com alguns dos personagens?

Lucas: Esporadicamente. Optamos por sair um pouco disso. Mas temos uma dívida gigante com eles, de ir para lá e mostrar o filme, projetar, e não somente enviar um DVD.


E quais são os próximos passos em relação ao filme?

João: Vai passar em outros dois festivais e depois exibir circuito comercial.

Lucas: Estamos vendo em tentar estrear em breve no ano que vem, até abril. E mandar para festivais internacionais.

Arturo: E em universidades, para debates.

Mais informações:

Site: www.sobrefutebolebarreiras.com.br/

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