Depoimento de Tia Aida. Fundadora da Torcida Organizada do Vasco (TOV), em 1944.

Data da Gravação: 26/07/2005
Entrevistada: Aida de Almeida (1925-2010)
Entrevistador: Bernardo Buarque
Transcrição: Juliana Paula L. Mattos
Edição: Pedro Zanquetta Junior

Tia Aida
Tia Ainda é fundadora da Torcida Organizada do Vasco (TOV) e dona da carteirinha número 01.

 

Segunda parte

 

O Vasco da Gama começou como um clube de regatas, não é?

Exatamente. Eram lindas as regatas! Eu as adorava e me deram muitas emoções, pois ganhávamos várias. Quando eu via nossos remadores chegando na frente dos do Flamengo ou do Botafogo, sentia vontade de me atirar na água de tanta beleza que via. Tivemos competidores belíssimos no Vasco, como o irmão da Carmen Miranda, o campeoníssimo Mocotó (Amaro Miranda da Cunha). Ele remava sozinho – em single skiff – e quando estava na água, era vitória garantida.

Certa vez, eu, meu irmão e dois amigos saímos antes das seis da manhã de nossa casa no Méier e fomos de carro até a Gávea para assistir as regatas. Costumávamos levar carne assada, frango… Um monte de comida. Nesse dia em especial, ganhamos a regata juvenil, a reserva e o campeonato profissional! Partimos de lá em carreata e entramos em São Januário cantando com uma banda que tocava a Marcha da Vitória. Comemoramos demais e cheguei em casa toda suja. [Risos] Para minha mãe, aquilo era o fim.


Quando você começou a acompanhar a equipe de futebol, era frequente a presença feminina nas arquibancadas?

Nas décadas de 1940 e 1950, havia muitas mulheres nos estádios. Quando começamos com a torcida organizada, íamos bem vestidas ao Maracanã e ao São Januário. Todas usávamos sainhas abaixo do joelho. Era muito bonito. Hoje em dia, não há mais educação. Fico horrorizada com os palavrões que até as crianças gritam. A Força Jovem do Vasco, bem como as outras, entoa músicas com dizeres horrorosos. Naquele tempo, não tinha cabimento uma coisa dessas, pois famílias inteiras iam ao estádio e existia respeito. Os rapazes que nos acompanhavam, por exemplo, ficavam atrás de nós para nos proteger. Atualmente, eu entro no ônibus e é uma pouca vergonha. Não tem mais aquela calma, as brincadeiras sadias… Afora isso, as pessoas não possuem tanto dinheiro. Antes, todo mundo entrava nos restaurantes, comia e pagava sua conta. Se as torcidas forem agora, acontece uma roubalheira… Deus me livre! Inclusive, quando posso, me afasto da Força Jovem.


A Torcida Uniformizada do Vasco foi a primeira do clube e a segunda do Brasil. Como surgiu a ideia de fundá-la?

Ela apareceu na sede social por iniciativa de um grupo de torcedores seletos do qual eu fazia parte. Nós íamos juntos aos estádios nos dias de jogos e costumávamos nos reunir na minha casa, na da dona Idalina ou na da Madame Bastos, uma das maiores estilistas do Rio de Janeiro na época. Além das mulheres, havia o Tião – dono de uma fábrica de caixas de papelão – e o Tony, que era comandante da Polícia Especial e, depois passou para a Polícia Federal.

No início, as torcidas não eram essa bagunça que se observa hoje. Nós começamos frequentando as partidas no clube e, em 7 de março de 1944, criamos a Torcida Uniformizada do Vasco. Sou a dona da carteirinha 0001, de fundadora. Depois decidimos trocar o nome para TOV, Torcida Organizada do Vasco.

Como eram os primeiros uniformes que vocês usaram nas arquibancadas?

As mulheres vestiam uma blusinha chemise e os rapazes, camisas. Nos dois tipos havia um bolsinho onde era bordado “TUV”. Tínhamos uma faixa enorme com os dizeres: “Felicidade, teu nome é Vasco”. Algum tempo depois, fizemos outra para levarmos ao campo do Bonsucesso, do Olaria, do Botafogo… Nela, grafamos: “Com o Vasco onde estiver o Vasco”.
Aliás, nas partidas contra o alvinegro no Caio Martins, éramos recebidos por uma multidão de vascaínos pobrezinhos de Niterói que nos conheciam e sabiam que levávamos comida. Eu, a Madame Bastos, o Tião, a dona Idalina e suas filhas queríamos nos exibir um mais que o outro e sempre exagerávamos na quantidade de alimentos que carregávamos. Sobrava bastante e eles costumavam ficar perto de nós para comerem o que não íamos levar de volta.


Além do uniforme e das faixas, vocês tinham cantos próprios?

Sim. O Tião era o responsável por criar muitas das músicas que entoávamos nas arquibancadas. Por exemplo, quando vencemos o América e conquistamos o Campeonato Carioca de 1950, ele compôs uma marchinha de carnaval que dizia: “Zum, zum, zum, zum, Vasco 2 a 1; Ademir pegou a bola e desapareceu; Osni está procurando onde a bola se meteu”. Havíamos sido o primeiro clube campeão no Maracanã e fomos de lá até São Januário cantando isso. Foi tão bonito!

As nossas canções falavam sobre os jogadores e o time e nenhuma tinha xingamento. Outra composta pelo Tião era: “Ê Sabará, ê Sabará; olê mulher rendeira; olê mulher renda; me ensina a fazer renda, que eu te dou o Sabará.” O Sabará (Onofre Anacleto de Souza) era um atacante maravilhoso. A Lurdinha, filha da Dulce, era louca por ele. Nós tínhamos ídolos e o meu era o Augusto. Aquilo é que era beque! O time era Barbosa; Augusto e Bellini; Eli, Danilo e Jorge; Chico, Friaça, Ademir, Ipojucan e Maneca. Infelizmente, a maioria deles morreu pobre. Hoje, todos os atletas querem ser milionários, porém não querem se dedicar ao clube. Muitas vezes eu vi o Eli jogar com febre. Ele reclamava: – “Aida, estou me sentindo muito mal, mas vou jogar”. Era um espetáculo presenciar isso.

Além de inventar os cantos, o Tião foi o responsável pelo apelido de “urubu” dos flamenguistas. Numa noite houve um clássico contra o rubro-negro e nós gritávamos para eles: – “Oh, cachorrada!”. Naquela época, a TUV se concentrava exatamente no meio do campo e estávamos com raiva porque eles haviam roubado nosso espaço das tribunas. No meio do alvoroço, ele decretou: – “Cachorrada, não. A partir de agora, eles vão ser urubus!”.

A rivalidade com o Flamengo é bastante forte e antiga, não é?

Exatamente. Desde que eu me entendo por gente, sempre foi assim. É curioso, pois não há uma oposição tão forte em relação ao Botafogo ou ao Fluminense. Na verdade, ninguém o suporta porque a torcida é maior. É o mesmo que acontece com o Corinthians em São Paulo.
Recordo que no primeiro clássico entre Vasco e Flamengo no Maracanã ocorreu uma disputa por espaço entre o nosso grupo e a charanga do Jayme de Carvalho – que foi a primeira torcida a surgir. A partida aconteceu em um domingo e, quando subimos a rampa, nos posicionamos do lado direito das tribunas e eles do lado esquerdo. Como os torcedores não usavam camisas nas arquibancadas, nós precisamos mandar os rubro-negros embora da nossa área. Diante daquela situação, eu, a Neide, a Margarida, a Norma e a dona Idalina fomos até um guarda e pedimos para ele chamar o Jayme. Ele era um gentleman e nos tratava com muito carinho. Conversamos e ficou estabelecido que ele iria chamar os torcedores dele para lá e nós faríamos o mesmo quanto aos nossos. A divisão que começou naquele dia permanece até hoje. Daqui a uns anos, eu já não estarei aqui, mas sei que isso vai durar para sempre.

Em algumas publicações, aparecem como fundadores da torcida um homem chamado João de Lucca e, em outros, uma torcedora chamada Dulce Rosalina. Eles faziam parte desse grupo inicial?

Não! O João de Lucca nem sequer fez parte da TOV ou de alguma outra organizada. Ele era apenas um torcedor que usava um megafone na sede social do clube e entoava gritos de guerra durante as partidas. Sua participação se restringia a isso. Quem fazia a torcida mesmo éramos nós. Íamos para todos os lugares acompanhar os jogos, sempre com muita linha e classe. Não como hoje, todos mal vestidos e cheirando mal.

Muita gente desconhece os verdadeiros fundadores porque eu nunca fui de dar entrevistas. Eu saía do clube e ia para casa. Quanto à Dulce Rosalina (Presidente da TOV entre 1956 e 1969 e de 1970 a 1976), fui eu quem a levou para a organizada e tempos depois a expulsei, pois ela nos traiu. Eu a conheci no campo do Bonsucesso quando ela havia recém-chegado de São Paulo, após se separar do seu marido. Ele era jogador de futebol e foi o autor do primeiro gol no Maracanã, na partida de inauguração entre cariocas e paulistas. A Dulce sentou-se ao meu lado, gostei dela e a chamei para fazer parte do nosso grupo. Ela começou a participar bastante e, num dado momento, quando eu estava com dificuldades em conciliar a liderança da torcida com minhas obrigações profissionais e familiares, entreguei-lhe o comando. Todavia, ela foi falsa conosco.

Em que contexto aconteceu esse rompimento entre vocês?

Na campanha da eleição para a presidência do clube em 1976. Eu, ela, o Amâncio César (Presidente da TOV de 1976 a 1988), o Antônio e o Ely Mendes (Presidente interino da TOV entre 1969 e 1970) havíamos redigido e assinado uma declaração definindo um setor no qual deveríamos trabalhar para a reeleição do Agathyrno Silva Gomes. Mal havíamos acabado de fazer isso, ela saiu de onde estávamos e foi direto para o escritório do candidato da oposição, o Medrado Dias. No dia seguinte, um jornal publicou a foto dos dois juntos, acompanhada de uma legenda que dizia: “Dulce Rosalina apoia Medrado Dias”. Ela estava na miséria e aceitou dinheiro em troca de sua aliança. Quando vimos aquilo, decidimos excluí-la e colocamos o Amâncio César – que era professor e tinha gabarito – em seu lugar à frente da torcida.

Logo após esse fato, eu a encontrei no Maracanã e ela estava reclamando para um grupo da nossa decisão. Chegou a se aproximar de mim e dizer coisas que não gostei. Acabei acertando-lhe uma bofetada! Ela não reagiu e depois me pediu desculpas. A minha mãe gostava dela e me repreendeu demais. Fora do nosso grupo, ela acabou fundando a Renovascão e se doou ao clube. A Dulce era filha de um português que, além de proporcioná-la uma excelente educação, ainda deixou-lhe uma herança considerável. Entretanto, ela perdeu tudo. Quando ainda fazia parte da TOV, era bastante ativa. Corria atrás da feitura das bandeiras, fazia as campanhas, organizava os ônibus de viagem e contribuía com dinheiro do próprio bolso. Muitos se aproveitaram pelo fato de ela ser uma mulata bonita e ter dinheiro. Depois, passou a amanhecer e adormecer no clube, sem exercer nenhuma atividade remunerada. Apenas ficava sentada, conversando. Ela faleceu há um ano e meio atrás, aos 80 anos, e ia ser enterrada em cova rasa. Felizmente, o Rui Soares Proença de Souza, dono da Casa Cruz, ficou sabendo disso e arcou com os custos do funeral.

Infelizmente, muitos dos torcedores daquela época têm acabado assim. O Jânio de Carvalho passou por algo parecido e o Ramalho (Domingos do Espírito Santo Ramalho) só não sofreu o mesmo por lhe restar os filhos e devido à ajuda do Eurico Miranda que mandou bandeira, coroa…

O Ramalho foi um torcedor-símbolo de grande notoriedade, não é?

Sim. Ele era conhecido internacionalmente. Chamou a atenção do presidente Juscelino Kubitschek e um cineasta chamado Mário Peixoto chegou a escrever alguns versos para ele. Em Bonsucesso, na casa de sua família, há coisas belíssimas guardadas. Eu sou madrinha da filha dele e ainda mantenho contato. Ele me convidou para amadrinhá-la após vencermos, em 1957, o Torneio Teresa Herrera, em Corunha, na Espanha. Aliás, dentre as tantas taças que ficam no salão do clube, essa é a mais bonita. Quando ganhamos esse campeonato, não tínhamos televisão ainda e era difícil saber os resultados das partidas que ocorriam fora do país. No dia da final, eu recebi um telefonema do Mário Figueiredo, diretor da Rádio Continental e ele disse que se o Vasco ganhasse era para comparecermos lá e fazermos uma homenagem. Assim que recebi esse convite, telefonei para o bar que o seu Ramalho frequentava e solicitei: – “Por favor, seu Domingos, chame o seu Ramalho para mim”. Ele atendeu e eu perguntei: – “O Vasco está jogando na Espanha, você tem alguma novidade sobre o jogo? Se ganharmos, vamos todos para a Rádio Continental”. Ele não sabia o resultado e liguei para São Januário. Eles me disseram que havíamos ganhado e avisei todo mundo: Dona Idalina, Neide, Norma, seu Ramalho, Margarida… Com exceção da Madame Bastos, que estava ocupada, toda nossa turma foi para a rádio. Ao chegar lá, o seu Ramalho bateu com um talo de mamona no meu ombro e disse: – “Oh, comadre!”. Eu retruquei: -“Por que, comadre?”. E ele: – “Minha filha nasceu hoje!”. Fiquei bastante feliz e batizei: – “Então, ela vai se chamar Teresa Herrera”. Ele aceitou e me convidou para ser a madrinha dela.

Naquele dia, estávamos todos eufóricos e conseguimos colocar o Mário Figueiredo em contato via telefone com o presidente do clube. Ele entrou ao vivo na programação e nós gritamos: – “Casaca!”. Nós choramos aqui e ele, lá. Foi incrível!

Quando começou a ser usado o Grito da Casaca?

Essa canção é eterna e surgiu por volta de 1900, nas competições de regatas. É um grito simples, mas muito bom: “Ao Vasco, nada?; Tudo!; Então como é que é?; Casaca, casaca, casa, casa, casaca; A turma é boa, é mesmo da fuzarca!; Vasco, Vasco, Vasco!”. Está na cabeça da gente. Atualmente, acho muito bonito quando a equipe está perdendo e entoam: – “O Vasco é o time da virada; o Vasco é o time do amor; Ôôô”. Gosto também daquele outro: “É gol, é gol; A rede vai balançar; Vai balançar; Vasco da Gama, meu bem; é campeão da terra e do mar”.

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Bernardo Borges Buarque de Hollanda

Professor-pesquisador da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV).
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