A entrevista faz parte do projeto Memórias dos boleiros: histórias de vida de atletas e de integrantes de comissões técnicas brasileiras que atuaram no exterior. Esse projeto foi fruto de uma parceria entre LUDENS-USP, Museu do Futebol e o portal Ludopédio.

Esse projeto tem como proposta reunir as histórias de vida de jogadores de futebol e de integrantes das comissões técnicas que tenham atuado no exterior. Ao optarmos pela história de vida, teremos acesso a uma série de discursos até então pouco investigados. Isso pode ser verificado quando se recorre à história do futebol e se percebe que existe uma história que é considerada “oficial”. Essa pesquisa será uma forma de ampliar discussões sobre o futebol a partir da história de vida dos jogadores e integrantes das comissões técnicas. A história oral será o método adotado para a construção de um diálogo com o referencial teórico das Ciências Humanas, mais especificamente a produção da Antropologia, da História e da Sociologia. Por meio da história de vida, ainda será possível registrar memórias, histórias e experiências dos sujeitos mencionados, além da criação de um banco de vídeos com as entrevistas realizadas de modo a constituir um acervo para preservar a elaboração de tal memória, quer se refira de modo restrito à carreira dos mesmos, quer, de modo geral, ao futebol brasileiro.

O ex-lateral Zé Maria atuou no futebol italiano e espanhol.
O ex-lateral Zé Maria atuou no futebol italiano e espanhol. Foto: Museu do Futebol.

Como você lidou com a dor e com as contusões ao longo da sua trajetória do futebol?

Jogar futebol é a melhor coisa do mundo e o futebol é um esporte diferente. Todos os outros esportes jogam com a mão e o futebol você joga com os pés. O futebol já é diferente por natureza. Lidar com esses problemas não era fácil. A pubalgia foi em decorrência de um problema que eu tive no joelho. Eu cheguei à Itália, depois de 6 meses eu rompi o meu cruzado posterior, o que não é uma coisa normal. O normal é você romper o anterior. E eu fiquei parado três meses e meio, consegui voltar ainda pra jogar a fase final do campeonato italiano de 96, 97. Só que aí apoiando de maneira já diferente, acabou criando um desequilíbrio no corpo inteiro. E a pubalgia veio fora. E num torneio da seleção, a Copa Ouro de 98, eu cheguei a falar isso pro Zagallo, falei “professor não to aguentando jogar que tá doendo muito”. “Ah, joga esse jogo”, porque já era o penúltimo jogo, se não me engano, ai joguei, mas não conseguia, é uma coisa que num tem como correr, num deixa você fazer completamente nada.

Aí voltei pra Itália, a convocação saiu um mês depois, era normal que meu nome que não estivesse na lista, porque não joguei bem a Copa Ouro, o Zagallo sabia de tudo, meu nome não estava na lista. Aí foi um choro danado porque minha mulher estava no Brasil, eu tava na Itália, aí ela falou que estava saindo a convocação. Só que a convocação quando saía eu já sabia que ia ser convocado porque eles ligavam pra gente antes. Eu já sabia, falei: “po, meu nome num tá”, “Ah, eu acho que tá, num sei o que lá…”, colocou na rádio pra escutar e meu nome num estava. Então ela chorava aqui no Brasil, eu chorava lá na Itália. Mas beleza, continuei. Em 98, de tão frustrado que eu fiquei daquela situação de não ter sido convocado pra Copa do Mundo, pedi pra sair do Parma. O que não era uma coisa também muito normal. Você está num dos melhores times da Itália, falam que são sete irmãs na Itália, que são Juventus, Milan, Inter, Roma, Lazio, Fiorentina e Parma. Então dentro deste grupo estão os fortes do campeonato italiano. E eu pedi pra sair, falei “eu quero ir embora”. “Pra onde você quer ir, quer ir pro Brasil?”, “Não, não quero ir pro Brasil, quero ir embora pra Perugia”. Não sabia nem onde ficava Perugia, só sabia da existência do time. Aí foi lá em Perugia que fiz a pré-temporada inteira, toda a parte física, só que o primeiro treino com bola eu estourei o adutor. Devido sempre ao problema da pubalgia. Tanto é que o médico chegou pra mim e falou: “Zé, se eu tiver que raspar teu osso, você vai parar de jogar futebol. E eu preciso tratar o Marcelo, num preciso tratar o Zé Maria, mas sim a pessoa Marcelo” Que poucas pessoas no mundo sabem que eu me chamo Marcelo. “Eu preciso tratar o Marcelo! E o Marcelo pra mim é mais importante do que o Zé Maria porque o Zé Maria mais cedo ou mais tarde ele vai parar de futebol. Vai ficar o nome, mas o Zé Maria vai parar de jogar…” E eu, com 24 anos… “caramba, e agora?” “Mas eu vou tentar uma outra coisa, vou ver se a gente consegue fazer. Que é fazer uma xintolografia….” xintigrafia, eu não sei como se fala no Brasil. Você praticamente tira um pouco de sangue da veia, mistura com um produto, e devolve 25% daquilo, que é uma espécie de anti-inflamatório que vai agir diretamente na zona. Eu fiz isso numa segunda-feira, na quinta-feira ia recolocar o sangue de novo pra ver o que dava, e fazer as fotos do local. Refiz isso e tinha desaparecido completamente. “Esse cara não pode parar de jogar bola agora não” Foi quando me apresentaram pra Cristo, minha sogra me apresentou pra Cristo aqui no Brasil, e eu lá na Itália, a gente chorou bastante e Deus fez esse milagre na minha vida. Enquanto o médico fazia as fotos eu perguntava como que estava a situação. “O que você tinha aqui?” “Aqui eu tinha uma inflamação deste tamanho, com um braço do lado direito” “Aqui não tem mais nada. Então vai perguntar pro seu médico”. No outro dia eu já estava treinando normal, com bola, com tudo.

Então essa foi a grande contusão que eu tive na minha carreira, a que depois decorreram todas as outras. Eu tive problema no joelho, mas eu joguei depois 12 anos, 13 anos, sem o ligamento cruzado posterior, sem cartilagem, sem nada. Depois voltei a jogar, fiquei seis meses no Perugia depois disso voltei pro Brasil, vim pro Vasco. Joguei seis meses no Vasco, fomos campeões do Rio-São Paulo. Fui pra Belo Horizonte e tive uma outra contusão forte, que foi na minha coxa, fiquei três semanas parado na fase final da Copa do Brasil, tanto é que eu voltei na final, que era contra o São Paulo. Voltei, fiquei no banco, nós fomos campeões da Copa do Brasil de 2000. Essas foram as duas contusões que me deram muitos problemas. Depois tive outras, de tornozelo, de costelas quebradas. Já quebrei umas 10, 12 costelas, isso era uma coisa que era mais normal. E o resto foram coisas que acontecem o tempo todo, estiramento, essas coisas, que o jogador está sujeito a isso, porque é um esporte de muito contato físico, de muita intensidade, principalmente jogando uma séria A de um campeonato, série B de um campeonato, a intensidade é muito alta. Às vezes as pessoas não sabem disso, falam “Po, o cara só joga futebol…”, mas tem uma semana inteira atrás de tudo isso, uma semana inteira onde você tem muito desgaste, tudo que a gente faz você vai machucando alguma parte do seu corpo. E eu falo que o preço por você ser jogador de futebol é outro. Você pode reparar que no final de toda carreira todo jogador deixa uma parte do corpo pra trás. E isso não é fácil de administrar depois, porque depois que é o problema. Você caminhar sem o ligamento, um tornozelo que torceu ao contrário, um estiramento ou uma fratura, eu tive várias fraturas, tem o risco de você perfurar o pulmão porque quebrou uma costela, então tem todos estes riscos que a gente corre, coisas que outras pessoas em outras profissões não tem.

Os jogadores aqui do Brasil querem ir para a Europa. Como é que funciona isso? Eu imagino que você quando estava na seleção, mesmo na olímpica, grande parte dos jogadores já atuava lá. Esse é um caminho comum dos jogadores, pelo menos da sua época?

Era o sonho. É um sonho ainda de todo jogador querer ir jogar na Europa, você vai jogar contra o Barcelona, o Real Madrid, Milan o Bayern os times que são os mais fortes do mundo. Os times brasileiros são bons, mas os melhores times do mundo ainda estão na Europa. Você vê a diferença de jogar numa Copa dos Campeões [Champions League], um estádio, um gramado e você vê a Libertadores, a diferença do gramado, do estádio. Eu estava reparando semana passada, acho que o Corinthians jogou fora, um campo que era horrível, e você olha o Bayern contra o Barcelona, o campo parece um tapete, melhor que um tapete. Então são essas coisas que você olha pela televisão e fala “poxa que legal isso ai”. Você vai crescendo na seleção, na seleção olímpica, naquele ano o Roberto foi pra Inter de Milão, o Zé Elias também senão me engano, o Rivaldo estava indo também, o Bebeto já tinha voltado da Espanha,  e a gente conversava com eles, com o pessoal que já estava na Europa. O Juninho foi para o Middlesbrough da Inglaterra, então é aquela coisa, “poxa eu quero ir pra Itália”, o Perugia me queria mas eu recusei, falei que não conhecia o Perugia, com todo o respeito. E legal foi que meu primeiro amistoso foi contra o Perugia, Parma contra Perugia, me xingavam de tudo quanto é nome, e eu não entendia nada. A gente via pela televisão, que legal jogar no San Siro, um dos estádios mais bonitos do mundo, “deve ser o maior barato, o cara fala o seu nome em italiano”, então era o sonho de todo aquele grupo, eu queria ir embora para a Itália, Espanha. Muitos foram para Itália, Espanha outros para Alemanha. Mesmo porque, a gente vê depois, só de ouvir falar a gente escuta aqui, mas você estando lá você vê a organização, coisa que a gente ainda sonha no Brasil . Então “poxa eu quero ir pra lá, quero meu nome escrito nas costas”… bobeiras, mas você vê que no final são todos meninos juntos. Futebol é como uma classe de aula, todos têm a mesma idade, se você reparar a média de idade hoje é de 18 a 30 anos, daqui a pouco 30 anos você está velho, sai da classe, mas é como você estivesse numa classe por 10, 15 anos, que é quanto dura uma carreira. Eu queria ir pra Itália, não queria ir pra Espanha, mesmo tendo convite de ir para o Barcelona e do Real Madrid, queria ir pra Itália…

Tinha algum motivo especial de você querer ir para a Itália? É por que passava mais na televisão, tinha algum clube que você tinha o interesse?

Não, porque na concentração passava muito o campeonato italiano, passava muito a Inter, Juventus, o Milan, o Napoli que tinha o Careca, aparecia muito no Brasil. Nunca tinha me interessado pelo idioma italiano, eu gostava muito mais do francês, mas não passava o campeonato francês aqui, vocês sabem melhor que eu, quanto mais você focaliza uma coisa, quanto mais passa na TV mais vontade você tem de querer aquela coisa, de comprar aquela coisa, era muito mais divulgado o campeonato italiano, então “quero ir pra Itália, quero jogar na Itália, quero jogar naqueles estádios lá e falar que poxa via você jogando lá”, tanto é que depois o Crippa, que jogava no Napoli com o Careca, jogou comigo no Parma, “poxa eu via esse cara na televisão agora jogo com ele”, e ele era um palhaço super gente boa, então essas curiosidades que a gente tinha na época e depois vai lá e realiza tudo. O campeonato espanhol também. Estou vendo o Messi, daqui a pouco posso ser companheiro do Messi. Eu joguei contra o Messi, ele estava começando, sou muito mais velho que ele, na época ele estava começando. Então essas coisas que de lá pra cá não tem muito.

O que você conhecia da Itália antes de ira para lá? Você conhecia a cultura?

A gente fala o spaghetti aqui, mas o spaghetti daqui é totalmente diferente do de lá, o resto zero, nada, o italiano zero,  não sabia nada, sabia que a Torre de Pisa era um pouco inclinada. E eu sou muito curioso nesse ponto de vista, gosto muito de matérias história e geografia, então na Itália isso é o pão diário, você vai ao Coliseu, você vai a Pisa, eu moro em Perugia que é uma cidade etrusca, onde você cava lá, você vai ver caminhos por debaixo da terra, é isso que eu acho que é cultura,  é você ir lá e aprender aquilo que você viu na escola, aqui você vê pessoalmente, a Itália te dá  isso, você vai no Coliseu pode analisar o que aconteceu há dois mil anos. Eu estive há pouco tempo nas catacumbas, onde ficavam os presos, é uma coisa que aqui não tem isso,  vai pra lá pra aprender. Você vai pra Espanha também tem muita história, países mais antigos do que o nosso que você pode aprender realmente aquilo que aconteceu. Você começa a montar  o quebra cabeça, “poxa aqui aconteceu isso, aquilo”. Lá a gente tem essa possibilidade de aprender.

Então eu cheguei na Itália, como eu falei, o Crippa era um palhaço, então ele viu eu o Amaral e o Crespo nós chegamos os três juntos, no primeiro treino estávamos nós três e ele dava risada o tempo todo. O Amaral falou: “poxa essa cara ta rindo da gente, ele ta de palhaçada…”, e eu: “ deixa isso pra lá”. Eu me interessava, então eu chegava no hotel, pegava um jornal, um dicionário e ia traduzindo. Então o que significa essa palavra, o italiano tem uma palavra que tem 10 significados. Eu escutava no jornal, na televisão, ia no dicionário ver o que significa o que o cara tá falando. Começava a juntar um pouquinho e foi indo, depois de três meses eu já dava entrevista, um pouquinho estranho, mas foi. Eu nunca estudei italiano, mas as pessoas falam que eu falo melhor do que muitos italianos, eu não acredito muito nisso. Mas é um idioma que eu aprendi a gostar.

E comunicação interna, Zé, dentro do campo, nesse início você ainda não falava, não entendia muito bem? Tinha jogadores de outros países que estavam na mesma situação? Existia um código estabelecido por vocês?

Italiano gesticula muito. Dentro do campo não tem muito segredo, o problemas maior são nos treinos, fora do campo. Dentro do campo é aquela coisa, eu era lateral, sabia que eu tinha que dar a bola no cara e passar por trás dele. Então a gente fazia muito treino tático. O Ancelotti dava muito treino tático, ele parava muito explicava muito, é um cara que falava muito, ali eu tinha muita coisa que eu não entendia muito. Mas ele fazia os movimentos, então eu seguia, mas é igual, então vai. Outras coisas que a gente aqui sabe que tem que fazer e não faz, lá você tem que fazer.  Então eu tive um pouquinho de dificuldade na parte tática, comunicação fora de campo, porque deram uma tradutora pra gente que falava só espanhol. Imagina, eu sou brasileiro, me dão uma tradutora que fala espanhol para eu aprender italiano, foi uma macarronada completa, a gente tem um pouquinho de dificuldade. Mas dentro do campo era fácil, não era difícil, porque a gente teve um mês antes do primeiro jogo,  a gente pode conversar bastante. Na Itália tem um habito de sair muito pra jantar, o grupo inteiro, pra se criar um grupo, pra se conhecer melhor. O Parma fazia muito isso, então ambientava muito fácil o pessoal que chegou, eu, o Amaral, o Crespo, chegou o Thuram, que já tinha um companheiro francês então pra ele era menos difícil porque esse francês já falava italiano, o Crespo já tinha um amigo argentino. Eu e o Amaral não tínhamos ninguém, nós tínhamos que nos virar ali só nos dois: “então Zé, eu não entendi isso aqui”, “eu também não!”, então vamos procurar a tradutora nossa porque as vezes para o espanhol do português é mais fácil, então a gente passou a falar muito em portunhol com ela. E por ai vai, mas a minha escola foi muita televisão, dicionário e no caderninho anotava tudo e depois colocava em pratica isso.

E além da língua você teve alguma outra dificuldade na vivência lá, na adaptação…?

Eu cheguei e engordei 6 quilos em 15 dias. Porque a gente aqui é arroz, feijão, carne e salada. Lá é macarrão, macarrão, macarrão! A macarronada nossa aqui é só no domingo, mais tradicional no Brasil. E lá é o único pais do mundo que tem a entrada, tem a pasta, massa, tem o segundo, que é a carne ou alguma outra coisa, e tem o doce no final. Você tem 5 pratos, 3 pratos… e tem que comer! Tem hora que você tá cansado de comer e ta chegando coisa! Eu tive que entrar naquele ritmo, e o metabolismo é completamente diferente. Aqui você comia e ia pro shopping passear, lá você come e tem que estar mais ou menos. Tinha treino todo dia de manhã e de tarde, porque era preparação ainda. Essas diferenças de alimentação eram muitas. Foi da água pro vinho. Você tinha que aprender a tomar vinho, que aqui vinho na nossa mesa é muito difícil. Tinha que aprender a tomar água, porque eles tomam água ou vinho, aqui a gente toma refrigerante ou suco. Eu até hoje nunca vi uma pessoa comer lá com suco. Nunca vi. Na hora que eu faço isso as pessoas assustam um pouquinho. Lá é água ou vinho. Alimentação, modo de se vestir, porque jogador aqui é de bermuda, camiseta. O cara deu uma dura na gente “Po, você só põe jeans!” Olhei e pensei, poxa, tenho que começar a usar uma calça social um pouco mais elegante. Você acaba mudando completamente o seu modo de ser, aquele moleque com boné pra trás, som alto, bermuda, você acaba mudando isso. Mesmo no verão, que você pode colocar isso, você não põe. Você acaba tendo uma disciplina fora de campo mais voltado pro estilo europeu de se comportar dentro e fora de campo, de se vestir, de comer, é uma mudança radical.

Mas esta é uma orientação do clube? Tem alguém do clube que te orienta nesse sentido?

Lógico que você olha. O presidente lá, o Stefano, tinha a minha idade. Ai olhava pra ele, o cara sempre de terno e gravata. Acho que o exemplo tem que vir sempre do alto, você não pode chegar pra conversar com o presidente de bermuda e camiseta regata. Uma vez eu sentei pra conversar com ele sobre meu contrato, meu procurador que é brasileiro me deu uma dura. “Po, você não pode chegar com boné dentro da sala do presidente”. Você começa a pegar estes sinais, você tem que procurar se aproximar daquele nível de vestiário, de se vestir, de agir de uma certa maneira. Muitos palavrões que a gente fala aqui, lá não fala – falam também, mas em uma proporção muito menor do que a nossa aqui. Então você começa a entrar naquele ritmo, e não é uma imposição do clube, mas é uma coisa que você começa a ver e vai entrando naquele ritmo. Você não vê aquelas coisas de medalha no peito, corrente grossa, isso não existe lá. Na Itália já é um pouco mais virado pra moda, que eles gostam de se vestir bem, são famosos por isso, de ter um estilo italiano. Alguns tipos de comportamento o time determina, mas não entram muito no particular, no tema privado.

E a sua família foi com você nesse  primeiro momento ou você foi sozinho?

Eu fui sozinho. Nos primeiros meses eu fiquei sozinho. A Sandra, minha esposa, foi seis meses depois. A gente ficou noivo lá e casou rapidinho, pra não ficar longe um do outro. E ela chegou em fevereiro, depois de fevereiro a gente ficou sempre junto. Meu filho nasceu em 1998, alguns meses depois. Depois foi minha sogra, foi minha mãe, sempre um pouquinho pra visitar porque não tinha aquele tempo de vir pro Brasil, era uma vez só por ano. Mesmo porque lá a gente jogava Copa Itália, campeonato e Copa Uefa. Estava viajando sempre, e eu jogava na seleção brasileira, não tinha tempo de vir pra cá. Teve uma época em que eu viajei por três continentes diferentes em uma semana. Era uma coisa muito puxada, então não tinha como vir pro Brasil. Quando vinha era pra jogar na seleção, dali ia pra São Paulo e já voltava, não tinha tempo de ficar em casa, foi um período muito intenso. Eu aproveitava, levava minha mãe, minha cunhada, minha sogra, comprei cachorro, então a gente ficava muito mais lá.

E a vida na comunidade, quando você foi jogar no Parma? Você chegou a conhecer a localidade, você teve esse tempo, você tinha algum programa que preferia fazer quando tinha um tempinho de folga…?

Eu procurava conhecer um pouquinho a cidade. Parma é uma das cidades mais bonitas da Itália, uma cidade muito rica, muito bonita, com muita cultura. A gente fazia muitos amistosos, como se fosse daqui de São Paulo em São Bernardo do Campo, São Caetano, fazia muitos amistosos em volta, participava de muitas atividades nestas cidades. A gente ia fazer amistosos e depois participava da festa, que são tradicionais, as pessoas te davam presunto, linguiça, essas coisas típicas, e Parma é famosa por causa da culinária, que é a melhor da Itália. Nas folgas eu procurava dar voltas, a gente ia sempre passear. Parma tem uns castelos que viraram restaurantes, a gente ia jantar nesses restaurantes, então são imagens bonitas que você está jantando e tem uma parreira em cima de você, cheia de uvas, é uma coisa legal. São coisas típicas deles. Perugia eu também procurava conhecer, Milão já é que nem São Paulo, uma cidade muito grande. É aquela coisa, você vai passear na Montenapoleone, Via della Spiga, coisa tradicional, mas Milão você tem que conhecer também saindo fora da cidade, que é muito bonito, eu gosto muito. É caótica porque é cidade grande e tem turistas do mundo todo, mas é uma cidade muito bonita e diferente das outras duas. Perugia tem 140 mil habitantes, toda a região Umbria tem 800 mil habitantes, que é menor do que Campinas que é onde eu moro hoje. Parma tem 160 mil habitantes, então são cidades muito pequenas, são bairros nossos aqui de São Paulo. Você não precisa de muito tempo pra conhecer estas cidades, meia hora você acabou conhecendo tudo. É que é bom você ir, ficar um tempinho, conhecer, passear, conhecer as pessoas do local, conhecer cada dialeto, porque cada cidade tem seu dialeto, você não entende o que o cara de Milão fala, você vai mais pro norte, mais pro sul ainda você não consegue entender nada, que é Calábria, Sicilia, você não entende nada quando eles começam a falar. Aqui mais ou menos você entende o que um gaúcho fala, o que um baiano fala, o que o pessoal do norte fala. Lá você não entende o que um cara da Calábria fala… pode esquecer. Essas coisas que fazem a diferença. Eu treinei na Calábria, joguei no norte, em Perugia, Milão, Parma, são quatro culturas completamente diferentes dentro do mesmo país.

Outra coisa que eu acho legal da Itália, quando nós chegamos em Parma um companheiro de time falou “A Itália é o melhor país do mundo”. Você falar isso pra um brasileiro… o melhor país do mundo é o Brasil! Tem samba, tem tudo… Mas o cara disse: “Você tem montanha se você quiser esquiar. Saindo de Parma você vai pra montanha, em duas horas você ta esquiando. Quer ir pra praia? Em uma hora ta na praia. Quer ficar tranquilo na cidade…? Você tem tudo, todos os climas… E de avião em uma hora você atravessa a Itália.” Tem um pouco de razão, porque o Brasil pra você atravessar demora 8 horas dentro de um avião. Então falei “Poxa, não tá completamente errado…”. Se a Itália tivesse o clima do Brasil seria perfeito. Essas coisas que me atraíram muito na Itália depois que eu conheci.

E entre os jogadores brasileiros, você se comunicavam lá, você e o Amaral com o Roberto Carlos que jogava no Inter de Milão, ou com outros que jogavam no futebol italiano?

De vez em quando a gente se encontrava, porque Milão tem restaurantes brasileiros, e lá você acaba encontrando todo mundo. Milão e Roma acabavam sendo os dois centros que atraem as pessoas. Milão, Firenze e Roma. Estas cidades atraem pra fazer uma compra, uma compra de marca, se você quer dar uma volta legal, porque Firenze é uma cidade muito bonita, lá tem de tudo, tem restaurante brasileiro, assim como em Roma que tinha o Aldair, tinha o Antonio Carlos, na época jogavam os dois na Roma. Em Nápoles estava o André Cruz. Então tinha muitos jogadores que estavam lá. Em Milão estava o Ronaldinho, o Fenômeno, o Roberto ficou um ano e depois foi pra Espanha, tinha o Zé Elias. Todo mundo estava naquela linha, na Itália é a A-1, a auto estrada, que vai de Milão até Nápoles, e ali você pegava todo mundo. A gente se encontrava ou num restaurante brasileiro em Roma ou Milão, ou em algumas ruas que a gente saía pra passear já que a gente se falava. Era um período também que estava todo mundo na seleção brasileira e a gente acabava se encontrando, marcava pra se ver. Era uma coisa mais ou menos normal.

E vocês sempre foram bem recebidos, bem tratados, pela população geral?

Sim. Primeiro porque o italiano adora brasileiro. Brasileiro é bem visto no mundo todo, porque onde você chega você é alegre, ta sorrindo, brasileiro chega sorrindo pra todo mundo, brincalhão, então no meu caso o pessoal aceitou bem, mesmo eu sendo um pouco mais fechado do que isso. Eu converso, mas demoro um pouquinho. E o pessoal adorava muito isso. Minha esposa teve um pouco de problemas porque ela é loira e de olhos azuis. “Ela não é brasileira, ela é alemã! Como você nasceu no Brasil?” Então ela acabou tendo um pouquinho de problemas, não falava italiano, falava um pouco enrolado. Eu ficava muito tempo fora e ela acabava ficando sozinha, não falando bem italiano. É igual você ir morar na França você tem que falar francês, na Inglaterra você tem que falar inglês, não adianta que eles não falam outro idioma, eles não aceitam. O brasileiro, naquela época, ia pra trabalhar ou ia pra fazer outra profissão, que era a fama do Brasil naquele período, das mulheres brasileiras que iam pra lá. Então ela brasileira, falando daquele jeito, o pessoal já via de uma maneira um pouquinho mais… com menos respeito. Mas nós como jogadores, muito pelo contrário. O pessoal sempre gostou muito.

Mas teve alguma situação em que vocês se sentiram mais como estrangeiros?

Estrangeiro a gente sente sempre. O pessoal gosta, conversa, mas é normal que entre eles tenham um outro tipo de relacionamento, um outro tipo de intimidade, de falar, de brincar. Pra nós sempre teve o respeito, mas aquela amizade profunda mesmo só depois que você entra dentro da comunidade, quando você já tem tempo lá, a pessoa já sabe que pode confiar em você, já sabe que você é uma pessoa séria, então aquela coisa você vai conquistando devagarzinho, você num chega lá e o cara confia em você completamente, isso é difícil. Mas devagarzinho você vai conquistando a confiança do italiano, ele quer te ver primeiro e depois ele vai ver se ele dá aquilo que você acha que merece. Mas quando te dá também, te abre todas as portas.

Você falou um pouco sobre estas diferenças culturais, da língua, da culinária, do modo de tratar. E tinha alguma coisa que você sentia mais falta do Brasil quando você esteve lá? Alguma coisa que você falava “Ah, que saudade do Brasil”?

Eu levei um monte de CD de samba, um monte de CD de bossa nova. Eu nunca tinha escutado bossa nova, mas falei “vou levar que é do Brasil!”, e isso na minha época, eu tinha 22 pra 23 anos quando saí do Brasil, no auge da minha carreira, tinha muito aquela coisa de ir ao pagode no domingo depois do futebol, era uma coisa completamente normal. No começo eu senti falta disso. Tanto é que depois de um ano e meio eu queria ir embora. Mas conversando com o Aldair, ele falou “Zé, eu posso ir pro Brasil a hora que eu quiser, mas eu num posso vir de lá pra cá hora que eu quiser. Eu posso ir pra SP, eu posso ir pra qualquer lugar do Brasil” – isso ele falando em relação à moeda, ao Euro. “Poxa mas eu moro em Roma. Os brasileiros tem o sonho de vir conhecer Roma, de vir passear, e eu moro em Roma. Você mora em Milão, que é o sonho de muita gente e você tem isso aqui. Não to falando da parte econômica. Poxa, eu posso crescer, porque aqui eu tenho a Inglaterra do lado, tenho a Espanha do lado, tenho a Noruega do lado, então tenho culturas diferentes que eu posso com uma hora de avião chegar em qualquer uma delas”. Eu gosto de aprender essas coisas, eu gosto de dar isso pros meus filhos. Eu falo pra eles “se vocês tiverem que aprender inglês eu não acho que vocês têm que ir pros Estados Unidos, eu acho que tem que ir pra Londres, tá aqui do lado” Meu filho tá fazendo Química, eu falei pra ele ir pra Alemanha, que é a base de tudo. Eu vejo isso pros meus filhos, eu vejo isso pra mim. Eu aconselho a qualquer um que queira crescer a ir pra Europa, se tiver condições. Porque eu acho que isso te dá muito.

Do Brasil eu tinha saudade do samba, mas eu posso levar um CD de samba e escutar lá. Eu posso não estar longe de brasileiros lá. Falta o clima brasileiro na Europa, se tivesse o clima ia ser a melhor coisa do mundo, mas não dá pra gente ter tudo nessa vida. A saudade que eu tinha, depois eu falei “Poxa, não pode ser assim. Eu tenho uma carreira, eu tenho um filho, eu tenho que pensar no futuro dos meus filhos, eu tenho que pensar na minha carreira, pensar em muitas coisas. Se eu desistir daquilo que eu conquistei, acho que vai ser um passo muito grande pra trás. Eu tenho que continuar crescendo na minha carreira, fazer minha carreira”. Eu fiquei 10 anos na Itália e 1 na Espanha, eu fiz um curso de treinador na Itália que durou 3 anos, porque eu não queria como jogador simplesmente parar de jogar e virar treinador de futebol, ia faltar algum elo nessa corrente. Então eu sempre procurei crescer nessas coisas. Saudade… a gente ouve os outros falarem “To morrendo de saudade”, mas eu nunca vi ninguém morrer de saudade. A gente fica triste, mas com o passar do tempo eu transformei aquilo, eu costumava transformar as coisas negativas na minha vida em energia positiva pra poder ir em frente, porque se não a gente para, e se parou no tempo você perdeu. E eu não deixava essa saudade me dominar. Dava muita saudade, saudade dos meus irmãos, dos meus amigos, da minha mãe que foi uma vez só pra Itália e depois não quis nunca mais reclamando que era muito frio. Essa saudade a gente sempre teve, mas falei “Poxa, duas vezes por ano eu to lá”, porque acabava vindo em dezembro, ficava 10 dias, em junho a gente ficava um mês, dá pra matar um pouquinho a saudade, rever um pouquinho todo mundo. Eu vinha aqui, me recarregava e ficava 6 meses fora, me recarregava e ficava mais 6 meses. Então dessas coisas eu nunca deixei me atrapalhar.

Seu primeiro retorno para o Brasil se deu mais pelo motivo da contusão? Como que foi a sua readaptação aqui?

O meu retorno foi porque eu nunca tinha me contundido no Brasil. Eu cheguei na Itália e tive problema no joelho e pubalgia, falei “Po, quero ir embora daqui”. Foi uma coisa mais psicológica, achei que a mudança não fez bem pra mim. Mas quando eu pus o pé no Brasil, eu fui pro Vasco e conversando com o Juninho e outro rapaz… “Eu quero ir embora”. Foi bater o pé no Brasil que eu vi que num queria isso. Mas fiquei um ano e meio no Brasil, 6 meses no Vasco, 6 meses no Palmeiras e 6 meses no Cruzeiro. Três clubes maravilhosos, adorei jogar nos três, só não fui campeão no Palmeiras, mas no Vasco e no Cruzeiro eu fui. Belo Horizonte é uma cidade maravilhosa, fantástica, mas já com a idade de voltar pra Itália, meu passe ainda era do Parma. E dali eu fui pro Perugia, fiz minha história lá. Voltei pro Perugia, já tinha jogado aqueles 6, 7 meses, aí o Parma me vendeu completamente pro Perugia e eu fiquei mais 4 anos lá. Esse período que eu tive aqui foi difícil, mas foi importante também. Essa readaptação nunca foi completa, um período em que eu chegava depois de ver aquilo que eu estava vivendo naquele momento, falei “Não, alguma coisa eu errei, tenho que voltar lá pra Europa”, e acabei voltando.

Zé, lá na Europa estava em vigor a Lei Bosman neste momento? Como que era isso?

A Lei Bosman veio depois.

Então não tinha nenhuma restrição?

Não, a restrição lá era de estrangeiros, que eram 5 na época E depois passou a ser 3. Se não me engano há pouco tempo tinham limitado a 1 jogador. Essas eram as limitações, a Lei Bosman veio depois que eu voltei pra Itália.

E como que era isso, esse cenário de que para montar a equipe tinha que fazer essas contas?

Tinha que fazer contas. “Quero um jogador que é muito bom no Brasil, mas não posso, então tenho que mandar um que tá aqui embora”, não tinha jeito. O que os clubes faziam era mandar aquele jogador pra Suíça, que ele tinha que ficar um ano fora, mas dentro da comunidade europeia, e fazer esse cara voltar. Ou mandar o cara embora. A minha não volta pro Parma foi por esses motivos, pois o Parma no período já tinha pego outro jogador extra comunitário no meu lugar, quando eu voltei estava o Veron, o Crespo, todos argentinos e não poderiam pegar mais nenhum jogador que viria de fora da comunidade europeia. Isso por um pouco de tempo deu um “Poxa, queria voltar pro Parma”, mas depois os clubes se organizaram e agora está uma coisa um pouco melhor, mesmo porque eu acho que o que acontece, principalmente no campeonato italiano, é de ter muito estrangeiro. Você vê que na Inter não tem um italiano jogando, tem poucos italianos que jogam. Na seleção italiana você não vê jogador da Inter, hoje tem um e só. De 22 tem 5 italianos dentro do grupo, isso eu acho errado. Mesmo que sejam todos da comunidade europeia, nem todos são italianos. Eu acho que deveria ter uma limitação: o clube tem que ter no mínimo 60% de jogadores do país. Hoje, com a abertura da comunidade europeia, você pode pegar jogador de qualquer país sem nenhum problema. E acaba tendo a Inter, que o goleiro não é italiano, nem o lateral, os dois zagueiros, de três zagueiros só um é italiano, meio campo não tem italiano, a Inter só tem um atacante italiano. Isso é prejudicial pra seleção. No Brasil não é permitido isso. Você tem que procurar crescer o seu patrimônio, você tem que ter as categorias de base fortes. É mais fácil você pegar um jogador fora, então na Itália eles fazem como, por exemplo, com o Pato, que tinha 17 anos na época, pagou não sei quantos milhões de euros, e com aqueles milhões de euros você poderia crescer muitos jogadores dentro das suas categorias de base. Isso eles deixaram pra trás, porque os times grandes da Itália vão pegar jogadores novos, mas na África, que não custa nada e são fortes fisicamente, são fortes tecnicamente. Só que depois não vai servir pra seleção, vai servir pro time porque já fez todas as equipes no clube, então vai servir pro clube, mas não vai servir pra seleção. Isso acaba prejudicando muito o país, hoje a Itália não tem recursos humanos pra fazer uma seleção forte e vai demorar pra sair uma nova safra.

E como que o grupo, o clube ou até mesmo os torcedores lidam com essa grande presença de estrangeiros?

Para o torcedor o importante é que ganhe. O torcedor não quer saber se é italiano, brasileiro ou chinês, o importante é que ganhe.  Você tem a Inter com o Mourinho ganhou tudo e era tudo estrangeiro. A Juventus já tá ganhando, mas tem a base da seleção italiana. Já tem 7 ou 8 jogadores da seleção que são da Juventus. É lógico que o italiano prefere ver isso, prefere que tem um Chiellini, citando nomes, tem um Pirlo, tem Marchisio, são jogadores que jogam no Juventus, pra eles é um motivo de honra estar na seleção italiana. A base da seleção é a Juventus, porque tem jogadores italianos, e você não vê nenhum jogador da Inter, no Milan tá mais ou menos igual, você vê 2 ou 3 jogadores do Milan na seleção. E a gente ta falando dos grandes clubes, que deveriam ter essa base pra poder trabalhar e hoje não tem. Você vê mais os times pequenos que tem muito mais italianos na equipe. Eu acho isso errado.

Você chegou a presenciar uma situação de discriminação contra estrangeiros, ou ate mesmo negros, africanos, brasileiros?

O racismo ainda tem em algumas cidades da Itália, como, por exemplo, Verona, que é muito racista. Eu deveria ir pro Verona na minha volta pra Itália, antes de ir pro Perugia, e a torcida não me quis lá. Mas são episodios muito separados. Aconteceu recentemente um amistoso do Milan, com o Boateng. Mas são dez pessoas que não têm o que fazer, ou brigaram com a mulher em casa, e vão encher o saco dos jogadores. Eles não podem brigar com os italianos ou com os brancos, vão nos diferentes. Meu filho fala “Pai, quando eu tiver lá em baixo, quando você ver um pontinho preto na piscina sou eu, tá? Pode ficar tranquilo que eu to nadando lá embaixo”. Você vê, meu filho. O italiano pega aquele pontinho preto e acha que tá errado. Não vê que aquilo faz parte de um contexto geral. São pessoas pouco inteligentes, não têm muito o que fazer e acabam querendo arrumar confusão. Brigou com a mulher? Vai pro barzinho, vai conversar com um amigo, com um psicólogo, mas acaba indo pro estádio, xingando jogador que é do teu time, as vezes. O Luciano, famoso Eriberto, fez história lá, ta no Chievo há 12 anos. É um dos ídolos de uma parte grande da torcida, mas alguns não aceitam ainda. Coisas que têm pouco sentido.

E você chegava a conversar sobre isso com sua família, com outros brasileiros ou com atletas da África?

Não, não. Eu nunca dei muita ênfase pra essas coisas. Você parar um jogo, você deixou ele ganhar, é o objetivo do cara. O Milan parou um amistoso, era o objetivo do cara, ele não queria ver o jogo. Ele foi lá pra xingar, pra atrapalhar, ele conseguiu alcançar seu objetivo. Entra por aqui e sai por aqui, ou nem entra por aqui! Ou eu tentava dar alguma coisinha a mais e sacanear ele dentro de campo, meu time ganhava. A torcida da Lazio também é racista, eles ficavam xingando, a gente ganhava da Lazio toda hora, batia neles, eu fazia gol, tirava um barato. Então você pode “Poxa, o que você ta falando não me interessa, eu vou pela minha estrada, vou pelo meu caminho”, não ligo pra essas bobeiras. Não vejo diferença entre um branco, um japonês, um preto, mulato, pra mim é todo mundo igual, então isso nunca me afetou.

E dentro de campo? Aparecia isso em algum momento com provocação, do adversário xingar…?

Já, já aconteceu comigo, eu fiquei muito chateado com o que aconteceu em Parma. Era Parma e Perugia, esse jogo nós perdemos de 5 a 1, jogamos muito mal. E um jogador do Parma fez uma falta, eu ia bater a falta, um jogador do Parma me segurou, falei “cara, para com isso, vocês tão ganhando de 5 a 1, não tem necessidade disso”. “Po, sai pra lá negro…” O árbitro tava a meio metro e disse “Zé, deixa pra lá, esse cara é ignorante”. Era o Collina, o melhor árbitro do mundo. Vir da torcida é uma coisa, vir do cara que é da sua profissão, na tua frente, falar uma besteira dessas, é outra coisa. Ali sim tem o problema do jogador reagir, que é uma coisa bem direta. Você tem que contar até mil, nem até dez. Não vale nem a pena falar com um cara assim, porque se você é um cara com uma cabeça um pouco mais quente, teria reagido ali e ia ser pior pra mim, porque eu seria expulso e ninguém ia saber o que ele falou. O árbitro escutou, mas o árbitro não ia falar nada, se ele quisesse falar alguma coisa tinha expulsado o cara. Então são detalhes que você tem que ter um autocontrole, se você não tem um autocontrole você acaba se perdendo.

Aqui no Brasil já aconteceu algo do tipo?

No Brasil não. No Brasil não tem como acontecer isso, é a maior mistura de raças que tem, não tem como acontecer isso.

Depois de uma boa temporada que você ficou na Itália você acabou indo pra Espanha. Como que foi essa experiência de jogar na Espanha? Teve alguma motivação extra futebol pra você ir pra lá?

Foi bem traumático pra mim. Eu saí da Inter, tinha sido campeão da Copa da Itália, campeão da Supercopa, campeão italiano, tinha brigado com o treinador, e por isso eu estava saindo da Inter, e na época tinha um time pequeno que me queria na Itália. Meu procurador falou que o Levante da Espanha me queria. Também não conhecia a Espanha, o presidente dessa equipe italiana me ligou pessoalmente falando que me queria, disse que ia mandar um helicóptero me pegar, levar minha família, que eu ia ficar no melhor hotel da cidade, ofereceu o mesmo contrato que me ofereciam na Espanha. Só que eu falei “Poxa, já dei minha palavra que eu vou pra lá, então eu vou, vejo como é a situação e te falo. Se for da maneira como eu to pensando eu fico, se não for, eu volto. Você manda me buscar e eu vou embora”.  Ai cheguei na Espanha, na sede do clube, conversei com todo mundo, o pessoal super legal… não podia falar que não ia ficar. Aí liguei pra ele e falei que ia ficar. Beleza. Conversei com minha esposa e pra algumas coisas eu sempre fui muito chorão: “Eu não to muito contente… vou ficar, mas não to muito contente” “Ah, então vamos embora”, “Mas já to aqui”. Então quando eu converso com as pessoas eu não sou de fazer sacanagem com elas depois, então decidi que ia ficar. Aí chorei, porque eu não queria ir embora da Itália. Depois que eu fui embora da Espanha eu chorei porque não queria ir embora da Espanha! Eu gostei muito de Valencia, Valencia é uma das cidades mais bonitas da Europa. O clima é fantástico, faz frio uma semana, quinze dias por ano, tem a praia. Cidade muito segura, muito limpa, muito moderna. E acabei ficando na Espanha. Foi legal porque aprendi o espanhol, não ficou mais aquele portunhol do começo da carreira, deu pra aprender um pouco sobre cultura, aprendi a comer a paella que era estranho, porque a gente come todo mundo junto no mesmo prato. Mas foi um pouco traumático principalmente no começo. Eu saí da Inter de Milão pra ir pro Levante, que não é nem um time médio na Espanha, era o segundo time de uma cidade, de Valencia, que lutava pra não cair. Eu estava lutando pra ganhar o campeonato e fui lutar pra não cair. Essas mudanças que traumatizaram um pouquinho. Milão e Valência são duas cidades completamente diferentes, são duas cidades lindas, maravilhosas. Foi mais dentro do campo do que fora do campo.

E depois que você jogou no Levante você acabou voltando pra Itália pra jogar mais alguns anos lá. Você preferiu voltar pra Itália a voltar pro Brasil? Fala um pouco disso pra gente.

Poucas pessoas entendem porque que eu voltei pra Itália e não vim pro Brasil. Eu prezo muito pela segurança da minha família. O Brasil é o país mais bonito do mundo, o melhor clima do mundo, mas não é seguro. La na Itália meus filhos vão pra escola a pé, o outro vai de ônibus, eu posso sair e deixar minha esposa tranquila em casa, eu posso passear com o carro que eu quero, não to falando que tem que ser de luxo, mas o carro que eu quero, que ninguém vai me apontar uma arma como já aconteceu comigo aqui no Brasil. Os hospitais e as escolas públicas são muito bons. São essas diferenças que você começa a colocar na ponta do lápis, na balança: “Poxa, porque eu vou voltar pro Brasil?” Eu tenho um filho de 11 anos, um de 14 anos, um de 19 anos, eu acho que eles têm tudo de melhor. Não é o clima, porque chega no inverno é pesado. Porque que a gente não pode ficar aqui, porque eles não podem terminar a escola por aqui, fazer faculdade aqui? Lógico que chega com 18 anos a escolha é deles. O meu com 19 anos quis vir embora pro Brasil porque ele quer fazer a Unicamp. É uma escolha dele. Ele falou: “Se eu tiver que ir pra Pisa ou pra Bolonha, que tem a Universidade que eu quero, eu vou morar sozinho. Pra morar sozinho eu vou pra Brasil e moro com minha avó” Foi essa a escolha de vida dele. A minha escolha pra mim, pra minha esposa e pros outros dois foi essa, você tem uma segurança na Europa que você não tem. Se eu tivesse que ficar em Valencia, lá é um Rio de Janeiro seguro. Com mesmo clima, com tudo, seguro. Eu moraria tranquilamente em Valencia. Mas na Itália eu já não tinha problema de idioma, meus filhos falam e escrevem perfeitamente em italiano. Já estavam acostumados com o clima, eu não tinha dificuldade nenhuma. Eu tinha que voltar pro Brasil, tinha que andar com carro blindado, tem que morar num condomínio fechado, não pode parar no farol as 19 horas da noite, você vive mais prisioneiro de quem tá na cadeia. Essa é minha grande dificuldade de morar no Brasil hoje, você não tem segurança nenhuma, você sabe que sai, mas não sabe se volta. Tenho amigos que já tiveram as famílias sequestradas, e isso pra mim não é viver. Viver é você ter liberdade de fazer aquilo que você quer, quando e onde quiser. Você sair pra jantar com sua esposa e saber que volta onze e meia, meia noite e ninguém vai te encher o saco. Ninguém vai te dar nenhuma preocupação. Se você mora numa casa de rua aqui no Brasil, você tem que parra o carro, olhar se não tem ninguém, abrir o portão, entrar correndo. Essa coisa na Itália ainda não tem, pode ser que daqui um tempo tenha, mas ainda não. Eu sei que vou num hospital publico e vou ser bem atendido, não preciso ir no particular e pagar uma fortuna como no Brasil. Aqui você tem que ter um plano de saúde, eu não tenho isso. Você tem que pagar uma escola particular pra ter uma boa escola, lá não tem isso. Essas vantagens que a Itália ainda dá, que a Alemanha, a Espanha te dá, se chegar no Brasil você não vai ter. Você tem clima, tem estrutura, tem tudo, mas você não tem segurança, não tem uma boa escola, não tem uma boa rede de hospitais públicos. É isso que falta pro Brasil, essa é a minha escolha de ir pra Europa e não ir pro Brasil. Eu sou brasileiro e não vou deixar de ser e de amar meu país. Só que tenho minha família, tenho filhos pequenos e tenho que fazer uma escolha por eles, eles não podem escolher. Eles querem morar no Brasil. Mas eu sei que pra eles tem que ter uma segurança, tem que ter uma garantia atrás, e essa garantia eu posso dar na Europa.

Confira a terceira parte da entrevista no dia 30/07/2015.

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Marcel Diego Tonini

É doutor (2016) e mestre (2010) em História Social pela Universidade de São Paulo, sendo também bacharel (2006) e licenciado (2005) em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP - Campus de Araraquara). Integra o Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO-USP) e o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (LUDENS-USP). Tem experiência nas áreas de Ciências Sociais e História, com ênfase em Sociologia do Esporte, Relações Étnico-raciais, História Oral e História Sociocultural do Futebol, trabalhando principalmente com os seguintes temas: futebol, racismo, xenofobia, migração, memória e identidade.

Sérgio Settani Giglio

Professor da Faculdade de Educação Física da UNICAMP. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Esporte e Humanidades (GEPEH). Integrante do Núcleo Interdisicplinar de Pesquisas sobre futebol e modalidades lúdicas (LUDENS/USP). É um dos editores do Ludopédio.

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